Audiência de custódia: previsão normativa e aplicabilidade no regime jurídico brasileiro

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16/05/2017 às 12:23
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Prazo para apresentação do preso.

A CADH exige a realização da audiência “sem demora”, sem estipular um prazo. Assim o fez considerando a realidade de cada Estado signatário. Essa cláusula geral, no entanto, deve ser interpretada no sentido de que a pessoa seja apresentada no menor prazo possível perante o juiz, sem delongas desnecessárias.

Pelo que se extrai das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o prazo máximo para a apresentação do preso perante o juiz seria de 4 (quatro) dias.

O art. 1º da Res. 213/15 do CNJ prevê um prazo de 24h da “comunicação” do flagrante à autoridade judicial competente. Considerando que o delegado de polícia tem 24h para lavrar o auto de prisão em flagrante, expedir nota de culpa e comunicar o juiz, o prazo para a realização da audiência de custódia, então, pode ser de até 48 da prisão em flagrante (24h + 24h).

Na prisão decorrente de ordem judicial, o art. 13 da mesma Resolução estipula o prazo de 24h do cumprimento do mandado.

Essa é a regra. Não obstante, o prazo pode ser aumentado de acordo com as peculiaridades do caso concreto, sempre de forma excepcional, como, p. ex., no caso de uma pessoa ser presa pela tripulação de um navio que navega em alto mar (caso concreto analisado pela Corte Europeia de Direitos Humanos). Outro exemplo, mais comum, seria a situação de preso alvejado em confronto com policiais e que permanece internado em hospital.

Há entidades de classe, como a CONAMP, que, diante da realidade brasileira, sugere um prazo de 72h.

O PLS 554/2011, que agora carece de aprovação da Câmara dos Deputados, estabelece o prazo de 24h para apresentação do preso, podendo esse prazo ser estendido até 72h, mediante decisão fundamentada do juiz, em decorrência de dificuldades operacionais da autoridade policial.

Conforme o PLS 554/2011, tratando-se de organização criminosa, a autoridade policial poderá deixar de cumprir os prazos previstos (24h ou 72h, nos termos do mesmo projeto de lei), desde que, dentro desses prazos, designe, em acordo com o juiz competente, data para apresentação do preso em no máximo 5 (cinco) dias.


Autoridade competente para realizar a audiência de custódia.

Conforme entendimento uniforma da Corte Interamericana de Direitos Humanos, somente o juiz, imparcial e independente, pode presidir a audiência de custódia. Membros do Ministério Público ou delegado de polícia não satisfazem essa garantia.

Vale frisar que o juiz (natural do fato) que participa da audiência de custódia não fica impedido ou comprometido para o julgamento do fato posteriormente. O juiz sempre analisou a legalidade da prisão em flagrante, ao receber a comunicação do auto de prisão em flagrante, e nem por isso foi considerado “contaminado”.

Quanto ao local de realização da audiência, em regra, deve-se realiza-la na sede do juízo competente, conforme estabelecido pela Lei de Organização Judiciária de cada Estado ou Provimento dos Tribunais. Normalmente os Tribunais têm destacado juízes especialmente para a realização das audiências de custódia, de forma que esse juiz não será o juiz do fato.

A Res. 213/15 do CNJ prevê a possibilidade do juiz ir até o preso, como, p. ex., na hipótese de preso internado em hospital após ser alvejado durante a sua captura. O juiz poderia, portanto, realizar a audiência de custódia no Hospital.

Discute-se sobre a possibilidade de se deprecar a realização de audiência de custódia, mormente nas hipóteses de cumprimento de mandado. Alguns juízes têm adotado essa postura na prática, muito embora os Tribunais superiores entendam que o exercício da jurisdição é indelegável, em razão do princípio do juiz natural. Nesse sentido, Andrey Borges de Mendonça entende que a carta precatória deve ficar restrita ao cumprimento de questões meramente executórias, o que denota a sua incompatibilidade com a realização da audiência de custódia, porquanto abrange atos decisórios (análise da legalidade e necessidade da prisão)[14].


Rito da audiência de custódia.

A Res. 213/15 do CNJ previu um rito para a realização da audiência de custódia, uma espécie de “procedimento incidental de liberdade”, conforme entende parte da doutrina.

Segundo o rito estabelecido, devem estar presentes na audiência de custódia o Ministério Público e a Defensoria Pública, caso o preso não tenha advogado constituído.

Também deve estar presente o detido, mesmo contra a vontade dele, tamanha é a importância dessa garantia. Caso o preso não possa ser apresentado, v. g., por estar internado no hospital, deve-se aguardar a sua liberação para que seja finalmente realizada a audiência de custódia.

A Res. 213/15 do CNJ silenciou a respeito da participação de eventual vítima (do crime que ensejou a prisão do custodiado) na audiência de custódia. Andrey Borges de Mendonça entende que é possível a participação da vítima, notadamente nos casos de violência doméstica, até como forma de se observar o CPP, que determina que a ofendida deva ser comunicado dos atos processuais, notadamente quando o preso for libertado[15].

Segundo o art. 4º, par. ún., da Res. 213/15 do CNJ, é vedada a presença dos agentes policiais responsáveis pela prisão ou pela investigação durante a audiência de custódia. Nesse sentido também caminha o PLS 554/2011, com redação parecida.

Definidos os personagens da audiência de custódia, inicia-se o rito propriamente dito, sendo que, antes, o preso tem o direito de se entrevistar prévia e reservadamente com seu defensor.

Na sequência, o juiz inicia a audiência expondo ao preso sobre (i) a imputação que está sofrendo, (ii) a finalidade do ato e (iii) seus direitos, devendo, para tanto, utilizar uma linguagem acessível ao preso.

A próxima etapa é o “interrogatório de garantia”, chamado de entrevista pelo art. 8º da Res. 213/15 do CNJ, no qual o preso irá exercer a ampla defesa e o seu contraditório argumentativo, basicamente sob dois pontos: a) sobre a legalidade da prisão e o respeito à sua integridade física e b) a posterior necessidade de aplicação de uma medida cautelar.

O juiz não deve analisar o mérito da imputação, mas apenas focar na análise da legalidade e necessidade da prisão. Se a questão for teleologicamente vocacionada às finalidades da audiência de custódia, o juiz poderá tomar conhecimento dos fatos.

Após esse interrogatório de garantia, serão possibilitadas perguntas às partes (acusação e defesa) que também não poderão entrar no mérito da imputação, salvo se vocacionadas às finalidades da audiência de custódia.

Depois das perguntas das partes, serão possibilitados requerimentos às partes.

Por fim, o juiz decidirá obrigatoriamente na audiência se a constrição da liberdade do preso foi legal e se foram respeitados seus direitos fundamentais, bem como decidirá sobre eventual imposição de medida cautelar diversa de prisão, quiçá decretação da prisão preventiva.

Quais as consequências da não realização da audiência de custódia?

Segundo decisões do STJ, prisões em flagrantes não podem ser consideradas ilegais pela mera ausência da realização da audiência de custódia, sobretudo quando são respeitados os direitos constitucionais e o CPP.

Em São Paulo, por exemplo, durante todo o ano de 2016, as audiências de custódia foram realizadas de segunda-feira à sexta-feira. Aos finais de semana, as prisões em flagrante foram analisadas pelo plantão ordinário, no qual o juiz fez a análise sem a presença do preso (mera análise documental). O mesmo ocorreu no recesso de fim de ano, sob críticas do Prof. Guilherme de Sousa Nucci, publicadas em sua página do Facebook no dia 17.12.2017.

Em 2016, o Min. Edson Fachin do STF, ao analisar o HC 135.575/RJ, no qual se questionava, dentre outas questões, a ausência da realização da audiência de custódia, muito embora tivesse sido feita a comunicação da prisão em flagrante, concedeu uma ordem de habeas corpus para que fosse realizada a audiência de custódia no prazo de 24 horas[16].


Conclusão.

Novos tempos acenam para um processo penal mais humanitário, fruto de uma evolução natural que exige uma releitura da persecução penal mais sintonizada com as disposições constitucionais e convencionais.

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A realização da audiência de custódia, portanto, é uma garantia fundamental de toda pessoa presa que se tornou uma realidade no Brasil, tardiamente, diga-se de passagem. Esse contato direto entre juiz e preso certamente permitirá um controle judicial imediato, tornando-se um importante meio idôneo para coibir prisões arbitrárias e ilegais.


Referência

Cunha, Rogério Sanches. Temas de Processo Penal – Audiência de Custódia. Acessível em, 2016.

Barroso, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

Bonfim, Edilson Mougenot. Reformas do Código de Processo Penal. Comentários à Lei n. 12.403, de 04 de maio de 2011. São Paulo: Saraiva, 2011.

Lopes Jr., Aury, e Paiva, Caio. Audiência de custódia aponta para a evolução civilizatória do processo penal. Acessível em: http://www.conjur.com.br/2014-ago-21/aury-lopes-jr-caio-paiva-evolucao-processo-penal.

Mendonça, Andrey Borges de. Audiência de Custódia. 7º Congresso Jurídico Online de Ciências Criminais – CERS, 2016.

Moura, Maria Thereza Rocha de Assis. As reformas no Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

Oliveira, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 21ª Ed. São Paulo: Atlas, 2017.


Notas

[1] Em que pese tenha nascido para o mundo jurídico meio de Decreto-lei, espécie normativa vigente à época, o Código de Processo Penal foi recepcionado por ser materialmente compatível com as Constituições posteriores, inclusive com a Constituição Federal de 1988 que lhe atribui a natureza de lei ordinária.

[2] Curso de Processo Penal, 21ª Ed. São Paulo: Atlas, 2017.

[3] Lopes Jr., Aury, e Paiva, Caio. Audiência de custódia aponta para a evolução civilizatória do processo penal. Acessível em: http://www.conjur.com.br/2014-ago-21/aury-lopes-jr-caio-paiva-evolucao-processo-penal.

[4] O STF firmou entendimento no sentido de que os tratados internacionais sobre direitos humanos devidamente ratificados e internalizados na ordem jurídica brasileira, porém não submetido ao processo legislativo estipulado pelo novel artigo 5º, § 3º, da Constituição Federal, possuem posição hierárquica supralegal, ou seja, estão abaixo da Constituição e acima da lei. Esse status normativo paralisa a eficácia de toda a legislação infraconstitucional conflitante, bem como impede que o Estado afronte as disposições dos citados tratados com a edição de novas leis.

[5] A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem decidido reiteradamente que “o simples conhecimento por parte de um juiz de que uma pessoa está detida não satisfaz essa garantia, já que o detido deve comparecer pessoalmente e render sua declaração ante ao juiz ou autoridade competente” (Corte IDH. Caso Acosta Caldeón Vs. Equador. Sentença de 24.06.2005).

[6] Nesse sentido, o Ministro Luiz Fux afirmou que o provimento questionado não regulou normas de Direito nem interferiu na competência de outros Poderes, na medida em que apenas promoveu atos de autogestão do tribunal, estipulando comandos de mera organização administrativa interna.

[7] Conforme noticia o sitio da Câmara dos Deputados, a sua mesa diretora decidiu apensar o texto final do PLS 554/11 (agora PL 6.620/16) ao projeto que trata da reforma do Código de Processo Penal (PL nº 8.045/2010), em 12 de dezembro de 2016. Essa medida da mesa direto da Câmara dos Deputados certamente acarreta uma análise muito mais extensão ao projeto de lei de regulamentação da audiência de custódia, que já havia tramitado durante cinco anos no Senado Federal.

[8] Audiência de Custódia. 7º Congresso Jurídico Online de Ciências Criminais – CERS, 2016.

[9] Impressões pessoais dificilmente são fielmente registradas com a mesma vivacidade nas frias laudas que compõem um auto de prisão em flagrante delito. Por mais hábil que seja com as palavras, o delegado de polícia dificilmente terá tempo suficiente nos tumultuados plantões policiais para redigir um auto de prisão em flagrante delito com exatamente todas as suas minúcias.

[10] Na hipótese de concessão de liberdade provisória pelo delegado de polícia em sede policial, nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 anos (CPP, art. 322), a prisão deverá ser comunicada ao juiz, ao Ministério Público e ao Defensor (constituído ou público), mediante os respectivos ofícios.

[11] O PLS pretende positivar a audiência de custódia apenas no Capítulo do CPP que trata da prisão em flagrante.

[12] Idem.

[13] Idem.

[14] Idem.

[15] Idem.

[16] Segundo o Min. Edson Fachin, “a interpretação da jurisprudência da Corte permite a conclusão de que a audiência de apresentação constitui direito subjetivo do preso e, nessa medida, sua realização não se submete ao livre convencimento do Juiz, sob pena de cerceamento inconvencional. Prova disso é que, ultrapassando a recomendação exarada na ADI 5240/SP, a Corte, na ADPF 347/DF, tendo como condicionamento único o prazo de 90 (noventa) dias, determinou que Juízes e Tribunais ‘devem’ realizar o ato em apreço” (HC 135.575/RJ).

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Sobre o autor
Adriano Menechini

Pós-graduado em Direito Público em 2004, exerceu a advocacia por três anos, até assumir o cargo de delegado de polícia no Estado de São Paulo, em 2007, com atuações na Grande SP, DHPP e Capital.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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