A supremocracia e os limites da judicialização da saúde.

O fornecimento de medicamentos e tratamentos de alto custo pelo Sistema Único de Saúde (SUS)

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 8. COMPETÊNCIA DOS ENTES FEDERATIVOS

 Da perspectiva federativa, a Constituição Federal atribuiu competência concorrente à União, aos Estados e aos municípios para legislar sobre proteção e defesa da saúde, ou seja, os três entes que compõem a federação brasileira podem formular e executar políticas de saúde.  Enquanto que, de acordo com o artigo 23, inciso II, da Constituição Federal, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios possuem competência comum para cuidar da legislação no âmbito da saúde.

Ademais, conforme artigo 7º, inciso II, da Lei 8.080/90, a organização do Sistema Único de Saúde ocorre por meio de divisão administrativa regionalizada e hierarquizada com base no critério de complexidade das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos. Portanto, cabe ao Município a concretização de serviços de menor complexidade e fornecimento de medicamentos básicos, aos Estados os serviços de média e alta complexidade e fornecimento de medicamentos de média e alta complexidade e, à União, os serviços de alta complexidade e fornecimento de medicamento de média e alta complexidade.

Entretanto, o repasse de verbas e a aplicação são pautados por critérios diversos, além da complexidade das ações e serviços, também são consideradas a densidade populacional e a arrecadação tributária. Dessa forma, muitas vezes a divergência de critérios provoca a incompatibilidade, entre a verba recebida e a verba que há demanda de ser aplicada, tornando ineficazes -ou inexistente- políticas públicas de saúde.

Insta ressaltar o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF):

Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. POLÍTICAS PÚBLICAS. PREVISÃO EM PORTARIA MINISTERIAL. DESCUMPRIMENTO. REEXAME DO CONTEXTO FÁTICO-PROBATÓRIO E DA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL PERTINENTE. SÚMULA 279/STF E OFENSA REFLEXA. IMPLEMENTAÇÃO POR DETERMINAÇÃO JUDICIAL. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. VIOLAÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO, com APLICAÇÃO DE MULTA. I – É inadmissível o recurso extraordinário quando sua análise implica rever a interpretação de normas infraconstitucionais que fundamentam a decisão a quo, bem como reexaminar o conjunto fático-probatório constante dos autos, o que atrai a incidência da Súmula 279 do STF ou porque a afronta à Constituição, se ocorrente, seria apenas indireta. II- É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo. III – Agravo regimental a que se nega provimento, com aplicação da multa prevista no art. 1.021, § 4º do CPC.(ARE 964542 AgR, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 02/12/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-266 DIVULG 14-12-2016 PUBLIC 15-12-2016) (grifo nosso)

EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO À SAÚDE. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. SEPARAÇÃO DOS PODERES. VIOLAÇÃO. NÃO CONFIGURADA. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERATIVOS. PRECEDENTES. HIPOSSUFICIÊNCIA. SÚMULA 279/STF. 1. É firme o entendimento deste Tribunal de que o Poder Judiciário pode, sem que fique configurada violação ao princípio da separação dos Poderes, determinar a implementação de políticas públicas nas questões relativas ao direito constitucional à saúde. 2. O acórdão recorrido também está alinhado à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, reafirmada no julgamento do RE 855.178-RG, Rel. Min. Luiz Fux, no sentido de que constitui obrigação solidária dos entes federativos o dever de fornecimento gratuito de tratamentos e de medicamentos necessários à saúde de pessoas hipossuficientes. 3. A controvérsia relativa à hipossuficiência da parte ora agravada demandaria a reapreciação do conjunto fático-probatório dos autos, o que não é viável em sede de recurso extraordinário, nos termos da Súmula 279/STF. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.(ARE 894085 AgR, Relator(a):  Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 15/12/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-029 DIVULG 16-02-2016 PUBLIC 17-02-2016) (grifo nosso)

Tal posicionamento transmite a ideia de que se houver o inadimplemento de políticas públicas é possível ao Poder Judiciário determinar a implementação. Bem como que constitui obrigação solidária entre os entes federativos o dever de fornecimento gratuito de tratamentos e medicamentos necessários à saúde de pessoas hipossuficientes, ou seja, garante o mínimo existencial com a aplicação do princípio da isonomia -"tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades"-, devido a reserva do possível - possibilidade econômica da administração.


 9. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS E TRATAMENTOS DE ALTO CUSTO

 Primeiramente, necessário dizer que é compreensível a intervenção do Poder Judiciário, mediante determinações à Administração Pública para que forneça gratuitamente medicamentos em uma variedade de hipóteses, como uma alternativa de realizar a promessa constitucional de prestação universalizada do serviço de saúde. Pois, verificada a transgressão ao mínimo existencial, deve ser reconhecida a validade da atuação judicial em situações concretas não alcançadas pelas políticas públicas apropriadas. Nessas situações, o direito individual à saúde se sobrepõe à tese da reserva do possível do Estado e aos argumentos de ordem administrativa, como o cumprimento de políticas de universalização da prestação aos demais cidadãos.

Ademais, sobre o tema medicamentos de alto custo, no Recurso Extraordinário 566.471 o Ministro Marco Aurélio fixou a seguinte tese de repercussão geral: "O reconhecimento do direito individual ao fornecimento, pelo Estado, de medicamento de alto custo, não incluído em Política Nacional de Medicamentos ou em Programa de Medicamentos de Dispensação em Caráter Excepcional, depende da comprovação da imprescindibilidade -adequação e necessidade-, da impossibilidade de substituição do fármaco e da incapacidade financeira do enfermo e dos membros da família solidária, respeitadas as disposições sobre alimentos dos artigos 1.694 a 1.710 do Código Civil".

Nesse sentido também é a jurisprudência do egrégio Supremo Tribunal Federal, que é harmoniosa quanto à obrigatoriedade de fornecimento de medicamentos a pessoa hipossuficiente por parte do Estado.

Todavia, é preciso estabelecer critérios para o fornecimento de medicamentos pela via judicial, tanto para a primeira modalidade de judicialização de saúde, a que envolve pedido de medicamentos já incorporados pelo Sistema Único de Saúde, os medicamentos incluídos na política pública de saúde (presentes nos protocolos do SUS e listas de dispensação), devendo ser objeto de dispensação gratuita, e a segunda modalidade, a que envolve pedido de fármacos que não estejam incorporados no âmbito do SUS.

Na modalidade de demandas judiciais por medicamentos incorporados pelo SUS, a atuação do judiciário é somente para efetivar as políticas públicas de saúde já formuladas pelo Sistema Único de Saúde, independente do valor do medicamento, sendo preciso comprovar que o remédio é eficaz e indispensável para tutelar o direito à saúde do requerente, bem como fazer prova do prévio requerimento do fármaco à administração e ter ocorrido a denegatória ou grande demora em proferir decisão.

E na modalidade de demandas judiciais por medicamentos não incorporados pelo SUS, o Ministro Luís Roberto Barroso (Recurso Extraordinário - 566.471) propôs cinco requisitos cumulativos que devem ser observados pelo Poder Judiciário para o deferimento de uma prestação de saúde, são eles: a incapacidade financeira do requerente para arcar com o custo correspondente (comprovação da hipossuficiência); a demonstração de que a não incorporação do medicamento não resultou de decisão expressa dos órgãos competentes (escolha técnica dos expertises da comissão da CONITEC deve prevalecer); a inexistência de substituto terapêutico incorporado pelo SUS (não haver na lista do SUS fármaco alternativo que possa ser usado no tratamento da doença em questão); a comprovação de eficácia do medicamento pleiteado à luz da medicina baseada em evidências (como consta no Enunciado 59 aprovado na II Jornada de Direito da Saúde realizada pelo CNJ "As demandas por procedimentos, medicamentos, próteses, órteses e materiais especiais, fora das listas oficiais, devem estar fundadas na Medicina Baseada em Evidências"); a propositura da demanda necessariamente em face da União (os entes da federação respondem solidariamente pelo oferecimento de fármacos presentes nos protocolos clínicos e nas listas de dispensação organizadas no plano federal, porém somente a União, de acordo com a Lei nº 8.080/90, tem a possibilidade de decidir pela incorporação ou não de uma nova tecnologia em saúde, por meio da CONITEC e do Ministério da Saúde).

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Além disso, o Ministro Luís Roberto Barroso propôs que se deve exigir um parâmetro procedimental alusivo à realização de diálogo interinstitucional entre o Poder Judiciário e entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, com finalidade de verificar a presença dos requisitos de dispensação e determinar aos órgãos competentes e, em caso de deferimento judicial do medicamento avaliar a possibilidade da incorporação pelo SUS.

E, atualmente, o recurso extraordinário 566.471 está suspenso, ele trata do fornecimento de remédios de alto custo não disponíveis na lista do SUS e de medicamentos não registrados na ANVISA. Votaram até o momento o relator, ministro Marco Aurélio, e os ministro Luís Roberto Barroso e Edson Fachin, sendo que os três propuseram teses diferentes e, está suspenso pois o falecido ministro Teori Zavascki havia pedido vista, assim o sucessor de Teori está responsável por devolver a vista para a retomada do julgamento.

Insta ressaltar que os mecanismos processuais aplicáveis aos casos em que o paciente pleiteia a assistência farmacêutica perante o Poder Judiciário são: a ação civil pública, disciplinada pela Lei nº 7.347/85; o mandado de segurança; e as ações condenatórias de obrigação de fazer ou de obrigação de dar.

Em síntese, conforme o que foi exposto acima, e também diante do artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, é legítima a intervenção jurisdicional que visa afastar lesão ou ameaça ao direito de saúde, entretanto, na judicialização da saúde é necessário haver critérios de deferimento pelos magistrados e Tribunais com relação aos pedidos de medicamentos e tratamentos de alto custo.


 10. EFEITOS ORÇAMENTÁRIOS DAS DECISÕES JUDICIAIS

 Em relação aos efeitos orçamentários, é visível que as decisões judiciais afrontam o princípio da dotação orçamentária prévia e o princípio constitucional da legalidade orçamentária, visto que a verba calculada é destinada à compra de medicamentos previstos no programa do Ministério da Saúde.

Ademais, a interferência judicial desordenada acarreta graves consequências, como: a desorganização administrativa, porque os recursos precisam ser desviados do seu orçamento e de sua execução natural para o cumprimento das ordens judiciais; a ineficiência alocativa, devido as compras, para cumprir decisões judiciais, se darem em pequena escala, sem o benefício das compras de atacado; a seletividade, porque as soluções providas em decisões judiciais beneficiam apenas as partes na ação, sem que sejam universalizadas.

Dessa forma, tais excessos e inconsistências põem em risco a continuidade das políticas de saúde pública, ou mesmo pode impedir que políticas coletivas sejam devidamente implementadas. Bem como pode acabar ocorrendo a concessão de privilégios a alguns jurisdicionados em prejuízo da generalidade dos cidadãos, que continuam a depender das políticas universais promovidas pelo Poder Executivo.

Além disso, não há sistema de saúde que consiga resistir a um sistema em que todos os remédios, independentemente de seu custo e impacto financeiro, possam ser disponibilizados pelo Estado a todos as pessoas. Portanto, resta claro que há necessidade de estabelecer critérios e limites para distribuição de medicamentos e tratamentos gratuitos.

E na visão do Poder Executivo as decisões judiciais privam a Administração da capacidade de se planejar, comprometendo a efetividade administrativa no atendimento ao cidadão, pois fundamentam que as decisões atendem às necessidades imediatas do jurisdicionado, mas impedem a otimização das possibilidades estatais no que toca à promoção da saúde pública.

Nesse sentido, sustenta-se que quando o magistrado decide o caso concreto, o juiz fatalmente ignora outras necessidades importantes e a imposição inevitável de administrar recursos insuficientes para o atendimento de demandas ilimitadas.

Entretanto, quanto ao argumento de que não haveria recursos suficientes para atender à demanda das decisões judiciais e continuar o atendimento das demais políticas públicas, deve-se acentuar que o direito fundamental à saúde deve ser prioritário, uma vez que garante o atendimento aos direitos fundamentais à vida e à dignidade da pessoa humana.

Destarte, os problemas orçamentários não podem obstaculizar o implemento de direito sociais fundamentais, incluindo o direito à saúde. Assim como declarou a Ministra Cármen Lúcia em entrevista (no dia 8 de novembro de 2016 ao Jovem Pan Notícias): "eu sou juíza, eu tenho uma constituição que diz que é garantido o direito à saúde, eu estudo que a medicina pode oferecer uma alternativa para essa pessoa viver com dignidade e, convenhamos, a dor tem pressa".

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Sobre os autores
Jeferson Dessotti Cavalcante Di Schiavi

Agente de Polícia Federal

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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