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A quantificação do dano moral e o sistema de precedentes. Liberdade ou vinculação?

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01/07/2017 às 13:14
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3. O SISTEMA DE PRECEDENTES BRASILEIRO

A adoção do sistema de precedentes vinculatório por parte do legislador processualista apresenta grande vantagem para o sistema jurídico brasileiro. A valorização do princípio constitucional da isonomia salta aos olhos. Não se fala daquela isonomia meramente formal na qual se atenta para uma igualdade perante a lei. O que se busca com os precedentes é uma igualdade perante o Direito, o que alcança uma amplitude maior do que aquela classicamente estabelecida.

Com isso, não será mais permitido que o mesmo caso concreto, apenas titularizado por pessoas diferentes, possa ser tratado de maneira diversa. Havendo mesmos fundamentos jurídicos e situações hipotéticas, a postura adotada deve ser a mesma. Neste sentido, segundo Tereza Arruda Alvim Wambier, essa igualdade é alcançada através da consideração de determinados aspectos de destaque de cada caso. A relevância alcançada resulta no reconhecimento da necessidade de decisão a partir do mesmo preceito.[9]

Outro princípio também alcançado é o da segurança jurídica. A uniformização de jurisprudência assegurará ao jurisdicionado o conhecimento da solução adotada pelo Poder Judiciário, o que resulta na criação de uma previsibilidade de resultado para certas demandas. Por consequência, tendo conhecimento da postura que irá ser designada pelo julgador, os jurisdicionados poderão evitar comportamentos que resultem em demandas judiciais, o que alcançaria uma maior estabilidade nas relações sociais.

Um alerta importante a ser feito é referente ao princípio do contraditório. Isso porque não haverá qualquer mitigação a este princípio. A identidade da situação apresentada ao magistrado com outra já decidida pelo Tribunal (seja de Segundo Grau ou Superior) não lhe permitirá a resolução de plano do feito, sem que haja a oitiva da parte contrária, salvo no caso de julgamento de improcedência liminar do pedido.

A manutenção do contraditório é de fundamental importância para a sustentação da lógica e da integridade do sistema. Isso porque a parte contrária tem o direito de demonstrar ao julgador que a situação a ele exposta não se adequa a entendimentos anteriormente existentes e consolidados. Deve ser assegurada a possibilidade de indicação de que se trata de uma hipótese diversa, o que afasta a incidência direta do precedente suscitado.

O atual legislador, ao trazer o sistema de precedentes expressamente previsto e positivado no Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105/2015, impôs à comunidade jurídica a necessidade de estudar as teorias deste sistema, seus conceitos, entender a jurisprudência como fonte do Direito, além de buscar intimidade com os seus elementos. Nesta toada, atentando-se aos limites deste estudo, importa tratar acerca das noções fundamentais sobre a ratio decidendi.

Precedente é a decisão judicial tomada sob a luz de um caso concreto, cujo núcleo essencial pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos[10].

Explica-se. Na fundamentação da decisão judicial, o órgão jurisdicional define a norma jurídica geral do caso concreto, ou seja, a interpretação decorrente de determinado texto legislativo em detrimento dos elementos fáticos postos à apreciação. Já a norma do caso concreto é a norma individualizada, que também parte do convencimento do magistrado após a análise das circunstâncias fáticas e jurídicas decorrentes da situação posta à julgamento para aquela determinada situação.

Esta norma jurídica geral, portanto, pode funcionar como um precedente. Significa dizer que outros sujeitos colocados em situação semelhante podem valer-se desta decisão anteriormente proferida para alcançar aquele posicionamento jurisdicional, norma geral, portanto, que não foi construída em decorrência do processo legislativo.

Daí a importância da fundamentação. É exatamente neste espaço que o juiz, partindo do texto legislativo, em harmonia com os elementos e detalhes fáticos, cria a norma geral do caso concreto que poderá ser utilizada para julgar outras causas semelhantes. Tal norma geral, portanto, é o precedente.

Porém, apenas é possível pensar em ratio decidendi quando todos os membros do órgão analisam a causa de pedir. Assim, se uma causa de pedir é rejeitada por três votos a dois e a outra é acolhida por igual contagem, há como individualizar duas ratios decidendi. Contudo, se dos cinco juízes dois julgam a rescisória improcedente e cada um dos outros três acolhe causa de pedir distinta, é preciso que as três causas de pedir, cada uma delas rejeitada por quatro votos a um, tenham sido efetivamente discutida por todos os juízes para que possam dar origem a ratio decidendi.[11]

A utilização reiterada de um precedente gera a consolidação do entendimento de um órgão jurisdicional, de um Tribunal, passando-se ao status de jurisprudência que, uma vez se tornando dominante, pode ainda tornar-se súmula, que é o texto da norma geral reiteradamente aplicada.

Este texto, portanto, não pode ser aplicado sem o conhecimento das suas razões, dos motivos que levaram à sua edição. Disto, tem-se que interpretar os precedentes que foram repetidamente aplicados até formarem a jurisprudência dominante de um Tribunal, analisar e interpretar, pois, a origem, os casos que geraram as decisões repetidas. E, desta observação, faz-se o distinguishing, técnica de enfrentamento entre o caso julgado e o caso a ser julgado, reconhecendo-os, ou não, como semelhantes para a aplicação do precedente.

A ratio decidendi, por sua vez, é composta por três elementos: a) indicação dos fatos relevantes da causa; b) do raciocínio lógico-jurídico da decisão; c) juízo decisório[12]. Em seu livro Toeria da Argumentação Jurídica, Robert Alexy expressa que o fundamento central para a utilização do precedente é a universalidade, ou seja, tratar os iguais de maneira igual.

O ponto mais importante é que, por um lado, muitos enunciados dogmáticos estão incorporados também em precedentes e, por outro, as decisões judiciais são aceitas pela dogmática que pretende precisamente ser dogmática do direito vigente. O que especifica a dogmática consiste primordialmente em que a Ciência do Direito elabora seus enunciados, em grande medida, de forma sistemático-conceitual, propõe enunciados para a solução de casos que ainda não forma objetos de decisões judiciais e prepara possíveis soluções alternativas. O que caracteriza as decisões judiciais que criam precedentes, ao contrário, é não serem os enunciados das decisões judiciais usados apenas para a comunicação de propostas, mas também para a execução e atos.[13]

A norma jurídica geral, pois, retirada da decisão, compõe a ratio decidendi, que é o núcleo do precedente


4. A DIFÍCIL MISSÃO DA IDENTIFICAÇÃO DA RATIO DECIDENDI.

Thomas Bustamante apresenta um problema bastante interessante que não pode ser deixado de lado. Em seu livro Teoria do Precedente Judicial, o autor questiona “o que deve contar como precedente judicial para fins de sua aplicação no raciocínio jurídico?”[14]. Trata-se de uma pergunta de fundamental importância, na medida em que teoriza, exatamente, o que deve ser considerado como ratio decidendi[15], ou seja, o que deverá ser utilizado como elemento vinculante, ou paradigma.

Este é um questionamento, também trazido por Robert Alexy em sua obra Teoria da Argumentação Jurídica. Nela, o autor se questiona o que vem a ser a norma do precedente, chegando à conclusão de que “o uso de precedentes se mostra assim como procedimento de argumentação exigido por razões prático-erais (princípio da universalidade/regra de carga de argumentação), sendo, nessa medida, racional. Seu uso pressupõe argumentos adicionais, especialmente, argumentos práticos de tipo geral.”[16]

De fato, ao tratar acerca da ratio decidendi, deve-se ter em mente que o julgador criará uma norma com caráter vinculante, que, por consequência, obrigará as demais decisões a segui-las. Esta, por sua vez, trata-se de norma geral existente na decisão que deverá ser interpretada e compreendida de acordo com o caso concreto. Com isso, ultrapassa-se o efeito inter partes, comum das decisões jurídicas, para alcançar uma amplitude muito maior, pois resta assegurado o efeito erga omnes que, por tal condição, poderá ser utilizado por qualquer um que esteja em situação semelhante.[17]

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Pensar que todo o corpo decisório será considerado como ratio decidendi pode conduzir o intérprete ao erro. Sua identificação deverá ser feita a partir da busca de argumentos jurídicos que conduzirão ao posicionamento exposto pelo julgador. É o núcleo do precedente, o que significa dizer que com este não se confunde, por ser sua parte integrante.

A razão de decidir, numa primeira perspectiva, é a tese jurídica ou a interpretação da norma consagrada na decisão. De modo que a razão de decidir certamente não se confunde com a fundamentação, mas nela se encontra. Ademais, a fundamentação não só pode conter várias teses jurídicas, como também considerá-las de modo diferenciado, sem dar igual atenção a todas. Além disso, a decisão, como é óbvio, não possui em seu conteúdo apenas teses jurídicas, mas igualmente abordagens periféricas, irrelevantes enquanto vistas como necessárias à decisão do caso.[18]

Um equívoco comum é vincular a ratio decidendi à fundamentação da decisão. Isso porque, ela pode ser considerada tanto como sendo a razão da decisão, como a razão a que se decida, o que significa dizer que a ratio ultrapassa os limites da fundamentação.[19]

A identificação da ratio decidendi de uma sentença é de suma importância para evitar que situações outras que não sejam o núcleo da demanda – no caso, denominada de obter dictum – recebam o efeito vinculante mencionado anteriormente.

Por isso, se entendermos essa exigência de aplicação imparcial e universalista do Direito como algo que se exige não apenas do juiz individual, mas de todos os tribunais, chegamos à conclusão de que o fundamento do dever de respeitar o precedente não está apenas na autoridade, na força jurídica atribuída ao ato de criação judicial do Direito. Pelo contrário, parece claro que a exigência de universalizabilidade – núcleo da concepção Kantiana de racionalidade prática – é o principal fundamento para a técnica do precedente judicial.[20]

Diversas teorias buscam estabilizar o processo de identificação da ratio decidendi. A primeira a ganhar destaque envolve a teoria desenvolvida por Eugène Wambaugh, segundo o qual deve-se destacar o fundamento da decisão e transformá-lo numa proposição. Feito isso, o intérprete deverá inverter o seu sentido da proposição e verificar se houve alteração semântica na decisão. Caso ocorra, se estará diante de uma obter dictum. Caso contrário, havendo modificação do mérito da decisão o fundamento analisado consistirá numa ratio decidendi, o que demonstra que este método considera a ratio como elemento intrinsecamente indispensável à decisão.

No Brasil, José Rogégio Cruz e Tucci desponta como um dos grandes defensores desta linha de raciocínio, idealizando o mesmo pensamento, pois segundo seus ensinamentos, para que seja possível identifica-la, deve-se inverter o núcleo decisório para que se verifique se o teor da ordem judicial permanece o mesmo. Caso isso aconteça, o núcleo analisado será afastado da condição de ratio decidendi e classificado como obter dictum.[21]

Outra abordagem doutrinária acerca do tema foi desenvolvida por Athur Goodhart que, ao contrário daquela anteriormente apresentada, não representa uma fórmula rígida de identificação. Segundo sua linha de intelecção, a ratio seria constituída pelos fatos considerado materiais pelo juiz ao julgar a causa, ou seja, aquilo que o magistrado considerou como importante e relevante na resolução do feito. Isso implica dizer que, para o autor, a ratio não poderia ser confundida com a fundamentação e, também, não representaria, por si só, um dado indispensável para o julgamento do feito.

Diante disso, Goodhart deixa transparecer que não há regras ou fórmulas capazes de identificar de forma exata o que vem a ser a ratio decidendi. O que deseja é evidenciar que a busca da ratio deve ser feita a partir de elementos subjetivamente considerados pelo magistrado. Sendo assim, afirma o autor que: “The phrase “ratio decidendi” is misleading because the reason which the judge gives for his decision is not binding and may not correctly represent the principle”[22]. Em sua abordagem, pois, parece afirmar que não há nada aprioristicamente essencial que possa ser identificado como um preceito generalizável. Isso significa dizer que o precedente não seria o resultado de uma identificação objetiva, mas sim o substrato de uma interpretação[23].

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Sobre o autor
Salomão Resedá

Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal da Bahia - Ufba. Especialista em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito - Ufba. Professor da Unifacs (Universidade Salvador). Assessor do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Autor de Livros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RESEDÁ, Salomão. A quantificação do dano moral e o sistema de precedentes. Liberdade ou vinculação?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5113, 1 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58852. Acesso em: 18 mai. 2024.

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