Sumário: 1. INTRODUÇÃO; 2. A ABERTURA HERMENÊUTICA E O FIM DO JUIZ REPETIDOR DA NORMA; 3. O SISTEMA DE PRECEDENTES BRASILEIRO; 4. A DIFÍCIL MISSÃO DA IDENTIFICAÇÃO DA RATIO DECIDENDI; 5. A QUESTÃO DAS AÇÕES INDENIZATÓRIAS POR DANOS MORAIS; 6. A SÚMULA 326 DO STJ. 7. DA QUANTIFICAÇÃO POR DANOS MORAIS; 8. A QUANTIFICAÇÃO DO DANO MORAL E A RATIO DECIDENDI. 9. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS
Resumo: O presente trabalho pretende realizar uma análise acerca do precedente vinculativo e a quantificação do dano moral. Para tanto, parte-se do questionamento acerca da possibilidade de conferir efeito vinculativo ao valor da indenização arbitrada pelo magistrado prolator do precedente, considerando, assim, como parte integrante da ratio decidendi. Portanto, o que se busca analisar é se o julgador, ao aplicar o precedente que reconhece a conduta como passível resultar em indenização por danos morais, estaria necessariamente obrigado a, também, imputar do valor arbitrado pelo juiz relator do caso paradigma, ou haveria uma vedação implícita do sistema em face da possibilidade de prévio tabelamento do valor do dano moral?
Palavras-chave: Precedente. Ratio Decidendi. Quantificação. Dano Moral. Tabelamento.
1. INTRODUÇÃO
O sistema jurídico brasileiro passará por mudanças profundas. A lei 13.105/2015 trouxe a lume o Novo Código de Processo Civil com grandes inovações na sua forma de instrumentalização. Dentre inúmeras alterações, a busca por uma prestação jurisdicional mais célere e dinâmica rege o seu núcleo de desenvolvimento.
Um dos pilares de sustentação dessa nova forma de encarar o sistema decisório brasileiro está na adoção dos precedentes exarados pelos Tribunais Superiores e daqueles consolidados pelos Tribunais de Segundo Grau. O Novo Código de Ritos disporá de uma outra fonte que os julgadores deverão adotar na construção de suas decisões. Inspirado no common law americano, o sistema de precedentes brasileiro vem como um mecanismo de revolução na forma de pensar a decisão e, também, no próprio substrato de decidir.
Ocorre, porém, que apesar de toda euforia atualmente existente na maior parte da doutrina, a sua análise deve ser feita de forma cuidadosa a fim de burilar algumas arestas que, sem sombra de dúvidas, surgirão no cotidiano forense. Diante dessa necessidade latente, o presente ensaio realizará um corte epistemológico em apenas um feixe decisório. Não será abordada a questão do precedente como um todo, nem mesmo a sua origem, mas apenas a sua incidência em decisões que envolvam quantificação por danos morais.
Para tanto, parte-se do seguinte questionamento: É possível haver a utilização de precedentes para incidência direta em decisões que busquem a quantificação da indenização por danos morais? A questão suscitada reveste-se de certa valia para o desenvolvimento da atividade judicante, na medida em que aborda aspecto rotineiro nos gabinetes forenses. Além disso, depara-se com uma situação bastante latente que envolve o aspecto da quantificação do dano moral e a estabilização da jurisprudência pátria.
Antes, porém de adentrar no cerne da questão deste trabalho, faz-se necessário esclarecer pontos fundamentais para a compreensão da construção do precedente e a sua formatação original. Somente após vencido este momento é que será possível discutir o aspecto central do tema proposto, cuja conclusão, desde já, deixa-se à disposição para apresentação de críticas e orientações para um desenvolvimento mais aprofundado.
2. A ABERTURA HERMENÊUTICA E O FIM DO JUIZ REPETIDOR DA NORMA.
Em artigo intitulado “Por que agora dá para apostar no projeto do Novo CPC!”, Lênio Streck refaz uma leitura das críticas por ele apresentadas ao que, na época, ainda era o embrião da Lei 13.105/2015. Neste seu ensaio divulgado na Internet, o mencionado autor relata pontos que, segundo seu ponto de vista, mereceriam destaque no projeto de lei, naquela época em comento. Dentre os aspectos em realce, encontra-se o que foi denominado de “estabilidade da Jurisprudência” que alcança diretamente a utilização dos precedentes.
Outro ponto importante — e que constava de minha crítica — era sobre a obrigação dos tribunais manterem a estabilidade da jurisprudência. Dizia eu que a estabilidade é diferente da integridade e da coerência do Direito, pois a “estabilidade” é um conceito autorreferente, isto é, numa relação direta com os julgados anteriores. Já a integridade e a coerência guardam um substrato ético-político em sua concretização, isto é, são dotadas de consciência histórica e consideram a facticidade do caso. Pois muito bem. A inteligência do relator e de Fredie Didier foram cruciais para o acatamento de uma sugestão de caráter dworkiniano, simples, mas que poderá mudar a história da aplicação do direito de terrae brasilis: trata-se da exigência de coerência e integridade, ao lado da estabilidade. Explico: Coerência significa dizer que, em casos semelhantes, deve-se proporcionar a garantia da isonômica aplicação principiológica. Haverá coerência se os mesmos princípios que foram aplicados nas decisões o forem para os casos idênticos; mas, mais do que isto, estará assegurada a integridade do direito a partir da força normativa da Constituição. A coerência assegura a igualdade, isto é, que os diversos casos terão a igual consideração por parte dos juízes. Isso somente pode ser alcançado através de um holismo interpretativo, constituído a partir do círculo hermenêutico. Já a integridade é duplamente composta, conforme Dworkin: um princípio legislativo, que pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente, e um princípio jurisdicional, que demanda que a lei, tanto quanto o possível, seja vista como coerente nesse sentido. A integridade exige que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do direito. Trata-se de uma garantia contra arbitrariedades interpretativas. A integridade limita a ação dos juízes; mais do que isso, coloca efetivos freios, através dessas comunidades de princípios, às atitudes solipsistas-voluntaristas. A integridade é uma forma de virtude política. A integridade significa rechaçar a tentação da arbitrariedade. [1]
Apesar da complexidade da sociedade atualmente vivenciada, não se pode negar que ao se fazer um levantamento das matérias suscitadas nas inúmeras páginas que compõem um processo será possível identificar um rol de questões que se repetem. São teses jurídicas que se amoldam dentro de um parâmetro de identificação que, sem sombra de dúvidas, demandam decisões similares. Ocorre que, na realidade, não apresenta essa certeza decisória necessária a sustentar a estabilidade da jurisprudência.
A amplitude do território brasileiro aliado à formação cultural do magistrado resulta na apresentação de decisões que, em muitos casos, apresentam em posicionamentos completamente díspares perante casos similares. O ideal do Juiz neutro não se sustenta, pois a sua formação cultural e a porosidade do sistema de direito material civilista, por exemplo, viabiliza uma linha hermenêutica singular a cada magistrado. O Juiz como apenas um mero repetidor de normas, não mais existe; a “boca da lei” ficou nos livros de história e não possui mais espaço nos dias atuais, sob pena de fulminar a busca pela efetivação da justiça como um todo.
O clássico sistema do civil law puro passa a ser afastado através de profundas modificações trazidas na forma de construção das normas de direito material. O Código Civil vigente é um grande exemplo dessa nova vertente legislativa. Sob a coordenação de Miguel Reale, o Diploma Civilista extrapola os limites estabelecidos pelo seu precedente, o Diploma de Bevilaqua, na medida em que adota normas de conceitos indeterminados e abertos. Isso não implica maior instabilidade do sistema jurídico, aliás, ao contrário: com a adoção dessas medidas, o legislador busca a manutenção da integridade do Diploma com a segurança de uma duração dos seus efeitos por mais tempo, face às inúmeras e rápidas modificações experimentadas pela sociedade.
As alterações adotadas pelo direito material não poderiam passar despercebidas pelo direito processual. A abertura semântica adotada pelo Código Civil resultaria em reflexos no modo de decidir dos magistrados. O que antes era facilmente encontrado no texto legal, agora é apresentado a partir de normas com semântica ampliada. Não há mais como sustentar que a equiparação do caso prático com a norma através de uma simples subsunção resultará na decisão que busca garantir a efetivação da justiça.
Ao magistrado, coube abrir mão da posição de repetidor e profundo conhecedor dos dispositivos legais para imiscuir-se no âmbito de hermeneuta que conjuga norma e princípio a fim de assegurar a tão sonhada paz social. O Julgador que apenas aplica a legislação e fecha os olhos para demais fatores principiológicos, venda os olhos diante do conflito existente. A ele, a partir de então, caberá interpretar o dispositivo para realizar identificação da linha de raciocínio mais adequada.
Ocorre que como em toda quebra, há os traumas dela resultantes. A viabilização de uma maior atuação do magistrado no momento da elaboração da sua sentença, acabou por trazer certa instabilidade no âmbito das decisões. Casos similares sorteados a juízes diferentes, em alguns casos, não alcançavam a mesma decisão. No meio desse conflito de posicionamentos encontra-se o jurisdicionado que espera a aplicação da justiça em seu pleito e o seu patrono que faz preces e orações quando distribui uma ação a fim de que o seu processo “caia na mão do juiz que defende seu ponto de vista”.
A relação do magistrado com os fatos é completamente diversa daquela existente entre o advogado e os mesmos acontecimentos. Este último, defende o interesse do seu cliente e, na construção da peça vestibular, ou contestatória, buscará apresentar ao juiz os pontos que merecem destaque na busca pela efetivação do direito que batalha. Por sua vez, o magistrado, deve-se manter imparcial – não se acredita na neutralidade do julgador, posto ser este membro imerso na sociedade da qual a lide surge – e afastado do calor da emoção imposta por cada uma das partes.
Portanto, a possibilidade de haver julgadores que despontam em sentidos diversos sobre questões idênticas resulta em grave insegurança jurídica. Não pode o jurisdicionado apostar na sua sorte quando da distribuição para que seu processo seja direcionado para um juiz simpático à tese desenvolvida pelo seu advogado. O que cabe a um sistema coerente é, sim, o desenvolvimento de linhas de raciocínio que despontem no sentido de garantir a segurança jurídica necessária para que se tenha a ideia da postura a ser adotada pelo julgado diante daquele caso.
É bem verdade que em um primeiro momento, este pensamento pode representar o engessamento do Poder Judiciário. A tentação em imaginar um sistema de equações lógicas no qual se oferta um problema e extrai-se uma solução imediata é inevitável para aqueles que se deparam com a ideia dos precedentes. A função do juiz, poderia, então, ser substituída por um computador, onde bastaria o preenchimento de certos formulários para que, diante disso, houvesse a extração de um resultado jurídico revestido de sentença?
Não, efetivamente, não! Pensar dessa forma, como dito, é uma mera tentação iniciante, pois defender o engessamento do julgador a este ponto seria como retroagir a período mais crítico do positivismo estrito, no qual a norma existente era considerada como suficiente para a busca da paz social. Não se trata de engessamento do magistrado, mas sim do rompimento do sistema do civil law que reinava absoluto no sistema jurídico brasileiro – assim como em outros países de origem romana – para resultar numa aproximação maior com o modelo do common law[2].
O que há de novo no momento vindouro com o Novo Código de Processo Civil é a atenção a uma fonte do direito decorrente diretamente de uma decisão judicial. Aproxima-se do sistema jurídico que durante muitos anos conviveu do outro lado da fronteira, sem, contudo, abandonar as origens. A promulgação da legislação processualista viabilizará a estabilização da relação jurídica não apenas a partir de uma lei – como aconteceu, por exemplo a partir da promulgação da súmula 301 do STJ que, posteriormente, veio a ser convertida em texto normativo através da Lei nº 12.004/2009 que alterou o texto da Lei 8560 – mas, também, a partir de decisões judiciais emanadas por Tribunais Superiores ou estabelecidas por Tribunais de Segundo Grau como jurisprudência pacífica.
Essa aproximação com o common law, porém, apresenta resistência de pessoas críticas ao sistema por considera-lo como uma usurpação de poderes, haja vista que o Poder Judiciário, segundo argumentam, estaria legislando, função esta que não lhe acomete.
O common law costuma ser visto, em boa parte dos países de civil law, como um sistema jurídico diferente, complexo e, sobretudo, completamente desinteressante para os juristas, especialmente para os processualistas. Há, inclusive, no Brasil enorme preconceito em relação ao direito americano, tentando-se negar importância aos institutos de common law sem se conhecê-los, surgindo, por conseqüência, alegações mal fundadas sobre o papel do juiz e acerca dos limites da jurisdição. Fala-se de um juiz que cria o direito e de um legislativo que não ocupa o seu espaço, como se o juiz do common law fosse um “ser estranho” e a jurisdição deste sistema pudesse, sem qualquer pudor, adentrar na esfera de poder reservada ao Parlamento.[3]
Na realidade, não se trata de usurpação de poderes, mas sim de consolidação de um posicionamento jurisprudencial. Nos dizeres de Lourival Vilanova “o sistema vai se completando através da decisão jurisdicional integrativa. Por isso, não se tem de dar como pressuposto para o dever-de-julgar a existência de norma geral prévia, dentro da qual o caso já se inclua.”[4]
A expectativa anteriormente existente dos países vinculados ao civil law de que os enunciados existentes no texto legal impresso era a única forma de origem da norma coercitiva perde espaço para novos contornos. A segurança trazida pelos amplos textos codificados muda, passando a haver a consolidação da premissa segundo a qual o processo de interpretação é fundamental para a configuração da norma jurídica e esta, por sua vez, não se resume apenas ao texto emanado pelo legislador abstrato. Seguindo a intelecção de Humberto Ávila, texto e norma não podem ser confundidos, pois o conteúdo jurídico é decorrente de processo interpretativo, o que autoriza os órgãos jurisdicionais a interpretar os textos legislativos.[5]
Nesta dimensão fica claro que um precedente não é somente uma decisão que tratou de dada questão jurídica com determinada aptidão, mas também uma decisão que tem qualidades externas que escapam ao seu conteúdo. Em suma, é possível dizer que o precedente é a primeira decisão que elabora a tese jurídica ou é a decisão que definitivamente a delineia, deixando-a cristalina.[6]
A amplitude hermenêutica conferida ao magistrado com as normas de conceitos abertos, por sua vez, viabiliza a adoção de posicionamentos disformes, como mencionado anteriormente. Diante disso, através do mecanismo de precedentes vinculantes, o Poder Judiciário poderá determinar a linha de raciocínio adotada, solidificando, assim, aquela postura que não demanda mais discussão por ser pacificada no tribunal hierarquicamente superior ao prolator da decisão. Estando incólume de dúvidas neste âmbito, não há razão para se manter conflitos ideológicos no âmbito inferior, razão esta que chancela a utilização do precedente como fonte decisória do direito brasileiro.
A decisão é ato que qualifica deonticamente a situação controvertida. O ato jurisdicional não se constitui como uma proposição declarativa (descritiva ou teorética), mas como proposição prescritiva. Uma controvérsia pede decisão, que se verte em norma. O juiz nem pronuncia juízo-de-realidade, nem puro juízo-de-valor. O existencial do fato e o critério-de-valor entram como componentes do juízo normativo. E esse juízo normativo não é de ordem moral, ou religiosa, ou atinente à etiqueta ou aos uso-e-costumes. É especificamente jurídico.[7]
Os primeiros passos já foram dados em direção a um novo sistema jurídico que comunga da efusão dos dois anteriormente existentes. No direito brasileiro, não há viabilidade para sustentar um sistema apenas calcado no civil law em face da possibilidade interpretativa conferida ao magistrado, principalmente diante das hipóteses de inexistência de norma legal. Por sua vez, também não é possível manter a pureza das características do common law, exatamente em face da outra moeda, ou seja, da existência de dispositivos legais que regem as relações sociais. Desta feita, o novo Código de Processo Civil descortinará um sistema misto que buscará, em seu âmago, a manutenção da coesão e lógica das decisões jurídicas.[8]