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Lei Maria da Penha e Estatuto da Criança e do Adolescente: um diálogo necessário

31/07/2017 às 11:30
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O presente texto trata da associação entre leis protetivas que albergam as crianças e adolescentes, bem como as vítimas de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Já não é novidade que o legislador, diante da necessidade de proteger determinados grupos da sociedade, marginalizados por questões histórico-sociais, passou a utilizar legislações específicas, a fim de melhor tutelá-los. Daí a necessidade e importância de leis como o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei 8.069/90) e a Lei Maria Penha (Lei 11.340/06).

Embora sejam diplomas normativos com graus de incidência distintos, devem ser aplicadas em conjunto. O Estatuto visa a proteção integral da criança e adolescente, seja em ambiente familiar ou não (art. 1º do ECA). Já a Lei Maria da Penha só se aplica dentro de relações domésticas e em situações em que a infração decorreu de uma relação de submissão, o que necessariamente perpassa pela discussão sobre o conceito de gênero (art. 5º da Lei 11.340/06).

Ao aplicador do direito cabe, ao se deparar com situações concretas, harmonizar referidos diplomas normativos, pois a incidência de um não implica a exclusão do outro, como hodiernamente se faz.

Essa necessidade está expressamente prevista na Lei Maria da Penha, mas especificamente no art. 13, ao prever que, no processo, julgamento e execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, será aplicada, dentre outras, a legislação específica relativa à criança e ao adolescente.

Feitas essas considerações iniciais, cabe apontar alguns pontos em que as leis protetivas dialogam e devem, por essa razão, ser aplicadas em conjunto.


I) Crime do art. 232 do ECA, em infrações praticadas na presença de menores

Dentre os crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, assim prevê o art. 232:

Art. 232. Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento:

Pena - detenção de seis meses a dois anos.

Resguarda o dispositivo a incolumidade psíquica da criança e adolescente, submetido a situação de vexame ou constrangimento. Por vexame se entende a afronta, o ultraje, qualquer situação que cause vergonha ao menor. Já constranger é obrigar alguém a uma atividade que a norma jurídica não impõe.

Não raras vezes, nas denúncias que envolvem vítimas de violência doméstica, tem-se um conflito entre marido/mulher, que, em muitos casos, já possuem filhos gerados na constância da relação. O que hodiernamente ocorre é que a violência empregada contra essa mulher é presenciada por essas crianças/adolescentes, que são, desse modo, submetidas ao constrangimento/vexame.

Nesses casos, deve-se também denunciar e, caso não tenha sido feito, aditar a denúncia, para que o agressor responda pelo crime do art. 232 do ECA, em que figurará como ofendido o menor constrangido por ter presenciado os fatos relatados pela vítima de violência doméstica.

Em termos práticos, referida operação é importante, pois, analisando a questão das penas, o crime do art. 232 do ECA possui pena mínima superior aos crimes que mais são relatados nos Juizados de Violência Doméstica, a saber, ameaça (art. 147 do CP) e lesão corporal leve (art.129, §9º, do CP), razão pela qual não pode o operador do direito ignorar a sua incidência.

Por derradeiro, em relação ao curso do processo, será referido crime julgado pelo Juizado especializado em violência doméstica, não havendo deslocamento de competência, diante da evidente conexão (art. 76 do Código de Processo Penal) com a infração tutelada pela Lei Maria da Penha.


II) Possibilidade de suspensão ou restrição das visitas aos filhos menores

Dentre as medidas protetivas de urgência, consta no art. 22, IV ,da Lei Maria da Penha:

Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:

IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

Percebe-se que, nesse ponto, a lei estende a sua proteção aos filhos do casal, evitando, assim, que o menor permaneça submetido à situação vexatória, diante do conflito existente entre seus genitores.

A lei teve atenção especial nesse ponto ao prever a necessidade do caso ser previamente analisado pelo setor multidisciplinar, para só depois se proceder com a restrição ou suspensão. Assegura-se, assim, o respeito ao direito do menor de ser educado e criado por sua família, direito previsto no art. 19 do ECA.

No que tange especificamente ao atendimento multidisciplinar, previsto na Lei 11.340/06, disciplina o art. 30, que deve a equipe fornecer subsídios por escrito ao Juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente, em audiência, e desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos adolescentes.


III) A menor como vítima e a aplicação da Lei Maria da Penha

A Lei Maria da Penha é clara, em seu art. 2º, ao prever:

Art. 2º  Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Não há limitação quanto à questão etária, razão pela qual a vítima pode ser criança, adolescente, adulta ou idosa. Contudo, cabe a observação de que a Lei Maria da Penha somente poderá tutelar, como já dito alhures, pessoas do gênero feminino, razão pela qual as Medidas Protetivas de Urgência, que são, diga-se de passagem, a grande novidade da Lei, não podem resguardar crianças e adolescentes do gênero masculino.

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Já no que se refere à competência, existe importante enunciado da Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (COPEVID) sobre o assunto:

 Enunciado nº 22 (004/2015): O Ministério Público deve zelar para que, existindo Vara Especializada em Crimes contra Crianças e Adolescentes, quando a vítima for do sexo feminino em contexto de violência doméstica e familiar, a competência para conhecimento e julgamento seja das Varas Especializadas e não dos Juízos de Violência Doméstica, por se tratar de crime contra a vulnerabilidade da infância e juventude, reafirmando a competência do Juízo da Infância e Juventude quanto às medidas de proteção previstas no ECA. (Aprovado na Plenária da I Reunião Ordinária do GNDH e pelo CNPG em 23/03/2015).

Portanto, de acordo com tal entendimento, deve o processo ser julgado no Órgão Jurisdicional que aprecia os crimes contra as crianças e adolescentes, afastando a competência do Juizado Especializado em Violência Doméstica.


IV) Educação nas escolas

A Lei Maria da Penha, além dos mecanismos repressivos, prevê uma série de medidas preventivas, com relação à violência doméstica e familiar contra a mulher, algumas delas especialmente destinadas às crianças e adolescentes:

Art. 8º  A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretrizes:

(...)

V - a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres;

(..)

IX - o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.

Nesses pontos destacados, procurou o legislador promover, através da educação, a conscientização de meninos e meninas de noções básicas, que incutirão em sua formação moral e social.

Desse modo, espera-se evitar que, no futuro, quando esses menores se tornem homens e mulheres, vivenciem um ciclo de violência doméstica e assumam o papel de vítima e réu em um processo criminal.


Bibliografia

- ISHIDA. Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente - doutrina e jurisprudência. 17ª edição. Salvador: Editora Juspodivm, 2016.

- CUNHA. Rogério Sanches / ROSSATO, Luciano Alves. Estatuto da Criança e do Adolescente - comentado artigo por artigo. 8ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2016.

- CUNHA. Rogério Sanches / PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: comentada artigo por artigo. 6ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

- LIMA. Renato Brasileiro. Legislação Criminal Especial Comentada. 2ª edição. Salvador: Editora Juspodivm, 2014.

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Sobre o autor
Geraldo de Sá Carneiro Neto

Mestre em Perícias Forenses da Universidade de Pernambuco – UPE (Campus Camaragibe). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP (2012). Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade Damásio de Jesus (2014). Especialista – MBA em gestão do Ministério Público pela Universidade de Pernambuco – UPE (Campus Benfica). Analista Ministerial da área jurídica do Ministério Público do Estado de Pernambuco, lotado em Promotoria de combate à violência doméstica. Professor de cursos preparatórios de concurso e Palestrante. ex-analista jurídico do Tribunal de Justiça de Pernambuco

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NETO, Geraldo Sá Carneiro. Lei Maria da Penha e Estatuto da Criança e do Adolescente: um diálogo necessário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5143, 31 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59393. Acesso em: 19 abr. 2024.

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