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Poderes instrutórios do juiz e a justiça material.

Quem deve ser impecável, o direito processual ou o advogado?

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11/08/2017 às 16:00
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4 ÔNUS DA PROVA E A INICIATIVA DO ESTADO-JUIZ

Não é incomum encontrar no bojo de decisões judiciais o fundamento de não ter sido “suficientemente“ provado determinado fato, sem, contudo, ser feito menção a eventuais dificuldades quanto ao meio de prova. Todavia, o ônus da prova e a instrução processual são autônomos, conforme passa a ser verificado a seguir.

Quando o sistema processual determina previamente que ao autor, por exemplo, incumbe o ônus da prova de fato constitutivo de seu direito, está simplesmente sendo levado em consideração o fato de que nem tudo poderá ser provado dentro do processo, e, dessa forma, assegurando a não perpetuação do processo (evitando o non liquet), pois, se não existisse tal ônus como regra, poderia acontecer, em alguns casos, do processo se perpetuar em um estágio inconclusivo.

A partir dessa ponderação, considerando a necessidade e finalidade de se fixar ônus da prova às partes, verifica-se que o ônus da prova não obsta (nem mesmo no plano filosófico) a iniciativa de instrução pelo juiz. É dizer: ônus e interesse não se confundem, e a lei não incumbe a prova às partes, mas o ônus da prova (ora, alguém teria que arcar com esse ônus).

Nesse contexto, vale ressaltar que o artigo 141 do CPC3 (correspondente ao 128 do CPC de 1973) não é norma que diz respeito ao princípio dispositivo, mas garantia de que o juiz deve conhecer apenas do objeto da lide, não substituindo as partes em sua vontade, isto é, trata de dimensão horizontal e não vertical, garantindo que a discussão esteja delimitada pelo interesse das partes.

Também não se vislumbra qualquer incompatibilidade entre o artigo supracitado e os amplos poderes instrutórios do juiz, uma vez que a iniciativa de produção de provas por parte desse deve respeitar os limites das controvérsias propostas pelas partes: uma questão de pertinência da matéria discutida.

Desse modo, quando o juiz toma iniciativa de conhecer melhor as questões suscitadas, está, na verdade, em interpretação a contrario sensu, observando regra dos artigos 141 e 370 (correspondente ao 130 CPC/1973), sendo forçoso concluir que os artigos citados dizem a mesma coisa sob vieses diferentes, em reforço recíproco portanto. Nesse ponto, vale citar o seguinte ensinamento:

Atualmente, é pacífica na doutrina a orientação de que o juiz detém amplos poderes instrutórios, devendo ter participação ativa no campo probatório, à luz de uma tendência publicista do processo.

A atuação do juiz independe da iniciativa das partes, de forma que a interpretação conjugada dos arts. 130 e 333 do CPC (LGL\1973\5) conduz à orientação de que incumbe às partes o ônus da prova, mas não está o juiz impedido de determinar, de ofício, a produção de provas necessárias à instrução do processo.

Não mais deve prevalecer, pois, a orientação de que o juiz somente podia agir ex officio no campo probatório, quando restasse evidenciado o estado de perplexidade ou de desigualdade entre as partes.

A par de uma tendência publicista, afigura-se que o juiz deve ter uma participação ativa no campo probatório, independentemente da iniciativa das partes, na medida em que um dos escopos da jurisdição vem a ser a outorga do acesso à ordem jurídica justa. (OLIVEIRA, 2007, p. 5).

Considerando que o ônus da prova há sempre de recair a uma das partes, seria inútil a previsão do artigo 370 do código processual se a iniciativa de produção da prova pelo juiz não fosse considerada legítima por substituir atividade das partes, pois, assim sendo, o processo não seria mais do que uma batalha de técnicas tendentes a esconder a verdade, sempre que essa fosse inconveniente, em que o vencedor sempre seria o que tem mais recursos para tanto, ou seja, o de situação econômica mais favorável.

A propósito, abrilhanta a análise desse ponto do estudo a seguinte ponderação:

Para que o processo seja considerado instrumento da razão, não um estéril e árido mecanismo de submissão da força e da destreza, é necessário compreendê-lo como um método de cognição, isto é, como um modo para o conhecimento da verdade. Nesse contexto, os meios probatórios serviriam para fixar e alcançar a verdade; porém, não as verdades últimas e supremas, mas a verdade humilde e diária, aquela sobre a qual se discute nos debates judiciais, e que os homens normais e honestos, segundo a comum prudência e segundo a boa-fé, chamam e chamaram sempre de verdade. Porém, a finalidade do processo não é somente a busca da verdade, mas algo maior, isto é, a justiça, para a qual a determinação da verdade é somente uma premissa. Perseguindo essa finalidade, o processo deve visar a busca da justiça das decisões. (CAMBI, 2001, p. 77).

É dizer: sempre que, por iniciativa do juiz, a prova a ser produzida comprovar fato constitutivo de direito, pelo réu seria alegado um ilusório cerceamento de defesa e violação ao devido processo legal, o que, do mesmo modo, ocorreria com o autor em caso de prova que indique, ao final, fato extintivo, modificativo ou impeditivo do direito pretendido, o que seria um absurdo, por anular a previsão do referido artigo 370.

Percebe-se, portanto, que, quando o órgão judicial “auxilia“ a encontrar a verdade, não está ajudando nem substituindo nenhuma das partes, pois a justiça não dá benefícios, a grosso modo, apenas restitui o que foi retirado da parte lesada ou assegura que nada tenha sido ou seja retirado indevidamente.


5 CONTRADITÓRIO

O princípio do contraditório merece destaque no estudo do presente tema, uma vez que determina que sejam ouvidas as argumentações das diferentes partes do processo e assegura a essas uma participação isonômica na dialética processual, de modo que o juízo seja formado a partir da tese e da antítese, conforme ensinam Cintra, Dinamarco, e Grinover (2006).

Nesse contexto, poderia ser alegado que a produção de prova por iniciativa do juiz estaria ferindo o referido princípio? Na verdade, o que se percebe é que o contraditório não trata de qualquer restrição à atividade dos sujeitos processuais. Vale dizer: o juiz ao produzir prova, a priori, não cria tese, fazendo juízo de valor somente após ouvir as diferentes teses das partes, ou seja, em respeito ao contraditório. Além disso, é garantido, de forma isonômica às partes a produção de qualquer meio de prova lícita, independentemente do direito da outra parte de se manifestar a respeito.

Diante de tais considerações, verifica-se, portanto, que o contraditório não se configura como óbice à tese de incumbência ampla do juiz na instrução processual, pelo contrário: é um legitimador desse entendimento, uma vez que reforça a finalidade da atuação ex officio do juiz, consistente em conhecer os fatos, o que não prescinde da manifestação das partes no processo para melhor interpretação das informações obtidas. Nesse sentido, acrescente-se o seguinte aclareamento doutrinário:

Em segundo lugar, consoante já se assinalou, não há correlação necessária entre respeito do contraditório e inatividade do juiz em matéria de instrução. Reconhecer ao órgão judicial a possibilidade de colher provas ex officio de modo algum importa excluir a intervenção das partes no procedimento probatório. As duas questões são autônomas. (MOREIRA, 1984, p. 5).

Desse modo, diante de uma participação ativa do órgão judicial, é fundamental que seja dada oportunidade às partes para se manifestarem ou produzirem contraprova, em respeito ao contraditório.

Conforme lição de Arenhart (2005), o contraditório deve ser visto de forma abrangente no processo e deve ser conjugado a um papel ativo do órgão judicial para a construção da verdade. O contraditório visto como ferramenta para o processo, e não apenas como um direito dado por esse às partes, tem a pretensão de estabelecer coerência diante das ponderações feitas por essas, ou seja, de modo a reunir todas as argumentações desde a petição inicial, contestação, manifestações sobre provas, testemunhas, para que se construa (nas palavras do citado nobre processualista, com base em Habermas) uma “verdade factível” e alicerçada na argumentação dos sujeitos.

O contraditório, portanto, consiste em legítimo e imprescindível instrumento à disposição das partes para, dentre outras coisas, contextualizar os elementos probantes, permitindo ao juiz criar convicção. Ocorre que criar convicção acerca dos fatos é interesse do Estado-juiz, e a convicção a ser formada é que faz divergir os interesses das partes, podendo a atividade melhor desenvolvida por uma dessas ser determinante na aproximação da verdade, o que, por conseguinte, não deve servir de estímulo à inércia estatal.

Atente-se que o contraditório não existe somente entre as partes, mas entre essas e o juiz: as partes em regra não podem voltar a determinado ato processual (já concluído) e reformar certas deficiências (de conteúdo, não de forma), o que ocorre de modo diferente para o juiz, já que para esse a iniciativa de produção de provas não sofre preclusão, e que as citadas deficiências são naturais, o que torna a existência de dúvidas quanto ao mérito da causa algo também não raro e, ao mesmo tempo, exige o diálogo com as partes.

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Esclareça-se, por oportuno, que não está aqui se falando da manifestação pelo órgão judicial de seu entendimento acerca de determinada questão antes do julgamento, mas de manifestação da dúvida, ou, simplesmente, de pontos que possam ser melhor esclarecidos. Como é cediço, o que parece óbvio para muitos, não raramente, não parece para muitos outros, e somente a partir da certeza é que se pode fazer um juízo que atenda aos anseios sociais e jurídicos.

Nesse sentido, conclui-se que o juiz deve interagir com as partes e agir ex officio para sanar não apenas falhas de formalidades, mas de clareza ou de inexistência de informações acerca de determinada questão. Cita-se, como exemplo, o artigo 139, VIII, do CPC, o qual orienta que o juiz poderá a qualquer momento inquirir as partes para instrução processual, sem que esse depoimento importe em confissão. Ora, se o depoimento nessas circunstâncias não importa em confissão, então se depreende que a primordial função de tal ato decorrente do poder instrutório do juiz é a de indicar meios de prova para o órgão judicial.

Não obstante, quando a prova é produzida pelo julgador, o contraditório mantém sua função intacta de associar as informações produzidas às diferentes pretensões em discussão, por meio da argumentação, a qual, como dito, em nada prejudica o processo e seus fins, em que pese ser possível em nada acrescentar de relevante.

Por outro lado, ainda que possam ocorrer certas violações a direitos fundamentais pela ampla liberdade de instrução processual pelo juiz, há de se ponderar que a prestação jurisdicional efetiva também é um direito fundamental, prevalecendo sobre outros, conforme se atesta pela seguinte lição:

Os direitos fundamentais da ampla defesa e do contraditório jamais poderão ser impeditivos para a concretização dos direitos fundamentais da prestação jurisdicional efetiva e da razoável duração do processo. Caso contrário, teremos, por certo, urna extrapolação na análise dos direitos fundamentais da ampla defesa e do contraditório, com a configuração, muitas vezes, de um abuso no direito de defesa. Nesse sentido, é importante uma reflexão a respeito da lealdade processual e da boa-fé, como um dos instrumentos de efetividade da justiça e de garantia da razoável duração do processo.

Assim, enfatizando a lição de MARINONI que no Estado constitucional não se pode pretender que o processo seja neutro em relação ao direito material, na medida em que este mesmo Estado tem o dever de proteger os direitos fundamentais, mediante normas de tutela administrativa e da tutela jurisdicional dos direitos. (SOUZA et al., 2015, p. 369).

Por isso que o exercício de amplos poderes instrutórios pelo juiz merece prestigiada posição na condução processual, pois sem esse seria necessária uma atuação perfeita do advogado, ou então, como dito anteriormente, uma falha na produção de provas, por menor que seja, passaria a ser determinante para o julgamento do mérito, reduzindo esse a um julgamento apenas formal, ou seja, ineficaz em fazer justiça material.

Ademais, sem a ocorrência do contraditório sob o viés ora suscitado, ou o advogado toma conhecimento (antes de iniciar um processo e quando possível) do perfil de conduta do juiz quanto ao modo que esse dirige a instrução processual e faz a valoração das provas4, ou, ilusoriamente, confia o causídico na própria perfeição e excelência.

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Sobre o autor
Guilherme Nunes

Advogado. Pós-graduado em Direito Processual Civil. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Bahia – UNEB – Campus VIII – Paulo Afonso.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NUNES, Guilherme. Poderes instrutórios do juiz e a justiça material.: Quem deve ser impecável, o direito processual ou o advogado?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5154, 11 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59395. Acesso em: 18 abr. 2024.

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