5. CONTRADITÓRIO
O princípio do contraditório merece destaque no estudo do presente tema, uma vez que determina que sejam ouvidas as argumentações das diferentes partes do processo e assegura a essas uma participação isonômica na dialética processual, de modo que o juízo seja formado a partir da tese e da antítese, conforme ensinam Cintra, Dinamarco, e Grinover (2006).
Nesse contexto, poderia ser alegado que a produção de prova por iniciativa do juiz estaria ferindo o referido princípio? Na verdade, o que se percebe é que o contraditório não trata de qualquer restrição à atividade dos sujeitos processuais. Vale dizer: o juiz ao produzir prova, a priori, não cria tese, fazendo juízo de valor somente após ouvir as diferentes teses das partes, ou seja, em respeito ao contraditório. Além disso, é garantido, de forma isonômica às partes a produção de qualquer meio de prova lícita, independentemente do direito da outra parte de se manifestar a respeito.
Diante de tais considerações, verifica-se, portanto, que o contraditório não se configura como óbice à tese de incumbência ampla do juiz na instrução processual, pelo contrário: é um legitimador desse entendimento, uma vez que reforça a finalidade da atuação ex officio do juiz, consistente em conhecer os fatos, o que não prescinde da manifestação das partes no processo para melhor interpretação das informações obtidas. Nesse sentido, acrescente-se o seguinte aclareamento doutrinário:
Em segundo lugar, consoante já se assinalou, não há correlação necessária entre respeito do contraditório e inatividade do juiz em matéria de instrução. Reconhecer ao órgão judicial a possibilidade de colher provas ex officio de modo algum importa excluir a intervenção das partes no procedimento probatório. As duas questões são autônomas. (MOREIRA, 1984, p. 5).
Desse modo, diante de uma participação ativa do órgão judicial, é fundamental que seja dada oportunidade às partes para se manifestarem ou produzirem contraprova, em respeito ao contraditório.
Conforme lição de Arenhart (2005), o contraditório deve ser visto de forma abrangente no processo e deve ser conjugado a um papel ativo do órgão judicial para a construção da verdade. O contraditório visto como ferramenta para o processo, e não apenas como um direito dado por esse às partes, tem a pretensão de estabelecer coerência diante das ponderações feitas por essas, ou seja, de modo a reunir todas as argumentações desde a petição inicial, contestação, manifestações sobre provas, testemunhas, para que se construa (nas palavras do citado nobre processualista, com base em Habermas) uma “verdade factível” e alicerçada na argumentação dos sujeitos.
O contraditório, portanto, consiste em legítimo e imprescindível instrumento à disposição das partes para, dentre outras coisas, contextualizar os elementos probantes, permitindo ao juiz criar convicção. Ocorre que criar convicção acerca dos fatos é interesse do Estado-juiz, e a convicção a ser formada é que faz divergir os interesses das partes, podendo a atividade melhor desenvolvida por uma dessas ser determinante na aproximação da verdade, o que, por conseguinte, não deve servir de estímulo à inércia estatal.
Atente-se que o contraditório não existe somente entre as partes, mas entre essas e o juiz: as partes em regra não podem voltar a determinado ato processual (já concluído) e reformar certas deficiências (de conteúdo, não de forma), o que ocorre de modo diferente para o juiz, já que para esse a iniciativa de produção de provas não sofre preclusão, e que as citadas deficiências são naturais, o que torna a existência de dúvidas quanto ao mérito da causa algo também não raro e, ao mesmo tempo, exige o diálogo com as partes.
Esclareça-se, por oportuno, que não está aqui se falando da manifestação pelo órgão judicial de seu entendimento acerca de determinada questão antes do julgamento, mas de manifestação da dúvida, ou, simplesmente, de pontos que possam ser melhor esclarecidos. Como é cediço, o que parece óbvio para muitos, não raramente, não parece para muitos outros, e somente a partir da certeza é que se pode fazer um juízo que atenda aos anseios sociais e jurídicos.
Nesse sentido, conclui-se que o juiz deve interagir com as partes e agir ex officio para sanar não apenas falhas de formalidades, mas de clareza ou de inexistência de informações acerca de determinada questão. Cita-se, como exemplo, o artigo 139, VIII, do CPC, o qual orienta que o juiz poderá a qualquer momento inquirir as partes para instrução processual, sem que esse depoimento importe em confissão. Ora, se o depoimento nessas circunstâncias não importa em confissão, então se depreende que a primordial função de tal ato decorrente do poder instrutório do juiz é a de indicar meios de prova para o órgão judicial.
Não obstante, quando a prova é produzida pelo julgador, o contraditório mantém sua função intacta de associar as informações produzidas às diferentes pretensões em discussão, por meio da argumentação, a qual, como dito, em nada prejudica o processo e seus fins, em que pese ser possível em nada acrescentar de relevante.
Por outro lado, ainda que possam ocorrer certas violações a direitos fundamentais pela ampla liberdade de instrução processual pelo juiz, há de se ponderar que a prestação jurisdicional efetiva também é um direito fundamental, prevalecendo sobre outros, conforme se atesta pela seguinte lição:
Os direitos fundamentais da ampla defesa e do contraditório jamais poderão ser impeditivos para a concretização dos direitos fundamentais da prestação jurisdicional efetiva e da razoável duração do processo. Caso contrário, teremos, por certo, urna extrapolação na análise dos direitos fundamentais da ampla defesa e do contraditório, com a configuração, muitas vezes, de um abuso no direito de defesa. Nesse sentido, é importante uma reflexão a respeito da lealdade processual e da boa-fé, como um dos instrumentos de efetividade da justiça e de garantia da razoável duração do processo.
Assim, enfatizando a lição de MARINONI que no Estado constitucional não se pode pretender que o processo seja neutro em relação ao direito material, na medida em que este mesmo Estado tem o dever de proteger os direitos fundamentais, mediante normas de tutela administrativa e da tutela jurisdicional dos direitos. (SOUZA et al., 2015, p. 369).
Por isso que o exercício de amplos poderes instrutórios pelo juiz merece prestigiada posição na condução processual, pois sem esse seria necessária uma atuação perfeita do advogado, ou então, como dito anteriormente, uma falha na produção de provas, por menor que seja, passaria a ser determinante para o julgamento do mérito, reduzindo esse a um julgamento apenas formal, ou seja, ineficaz em fazer justiça material.
Ademais, sem a ocorrência do contraditório sob o viés ora suscitado, ou o advogado toma conhecimento (antes de iniciar um processo e quando possível) do perfil de conduta do juiz quanto ao modo que esse dirige a instrução processual e faz a valoração das provas4, ou, ilusoriamente, confia o causídico na própria perfeição e excelência.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise sistemática do direito processual permite concluir que, além do preceito de amplo poder instrutório do órgão judicial existir em harmonia com outros diferentes institutos, tal alçada é imperativa; isto é, não facultativa para os moldes do processo em nossa sociedade, restando apenas aparência de conflito de normas e princípios ligados ao tema. Vale destacar: a amplitude dos poderes instrutórios em questão tem respaldo nos escopos do processo, nos valores sócio-constitucionais, e, portanto, na pacificação social, considerada de forma concreta.
Convém lembrar que a busca pela verdade real é um princípio que, embora deva estar presente a todo momento no curso processual, não é, muitas vezes, capaz de obter o resultado desejado, isto é, alcançar a verdade real. Entretanto, como dito, tal princípio deve estar presente em todos os aspectos do processo: desde a produção de provas, à interpretação adequada das provas produzidas (e da motivação de não terem sido produzidas), até a aplicação das regras de julgamento.
Somente após o esforço na busca pela verdade real deve o processo ser considerado concluso para julgamento e, ainda nesse ponto, o juízo sobre as provas produzidas deve estar em sintonia com as circunstâncias do caso em concreto e com a realidade social.
Também é a busca pela verdade a causa de serem dados amplos poderes instrutórios ao juiz, pois somente com tal amplitude de poderes poderia o direito processual resguardar seus escopos, especialmente o da justiça material.
Nessa linha de intelecção, conclui-se que, ao invés de servir como fundamento do juízo, obsta o julgamento do mérito a deficiente instrução processual, a não ser que essa corresponda a: requisito objetivo da lide (como juntada de peça processual); meios de prova que dependem exclusivamente de quem tem, concomitantemente, interesse e condição de produzi-la; ou, ainda, a excessiva dificuldade de produzir prova por qualquer parte.
Significa dizer que, sempre que possível a colheita de determinada prova ou informações relevantes, antes de assim ser feito, não é coerente com a sistemática processual que seja julgado o mérito, devendo a regra (de julgamento) do ônus da prova ser utilizada apenas quando desconhecidos (pelo julgador) os meios viáveis de prova e a tentativa de conhecê-los.
Nesse contexto, o contraditório tem a fundamental importância de assegurar que as partes tenham oportunidade de se manifestar no processo, legitimando, assim, a tese de poderes instrutórios amplos do órgão judicial.
Entrementes, ainda que amplos sejam os poderes instrutórios do juiz, tem o advogado indispensável função para a administração da justiça, não apenas quanto ao conhecimento dos institutos jurídicos e manejo dos direitos em interesse, mas, de igual importância, para a comprovação e esclarecimento dos fatos e, assim, viabilizar uma justa decisão pelo magistrado.
REFERÊNCIAS
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Notas
1 Tal entendimento pode ser verificado, por exemplo, em: ARENHART, Sérgio Cruz; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel: Novo curso de processo civil, v.1, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 451. DIDIER JR, Fredie: Curso de direito processual civil, v.2, Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 85. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini: Teoria Geral do Processo, 22 ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 72. CÂMARA, Alexandre Freitas: Lições de direito processual civil, v. 1, São Paulo: Atlas, 2014, p. 174. THEODORO JÚNIOR, Humberto: Prova – Princípio da verdade real – Poderes do juiz - Ônus da prova e sua eventual inversão – Provas ilícitas – Prova e coisa julgada nas ações relativas à paternidade (DNA), Revista de Direito Privado, vol. 17, p. 9, jan. 2004. MOREIRA, José Carlos Barbosa: O problema da "divisão do trabalho" entre juiz e partes: aspectos terminológicos, Revista de Processo, v. 41, p. 7, jan. 1986. Outros doutrinadores entendem ser amplos, em regra, os poderes instrutórios do juiz, sendo exceção apenas os casos em que as partes possuem mesma suficiência econômica e técnica. Dentre esses: MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Processo civil moderno, v.1, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 238.
2 Em relação ao tema, merece destaque o julgamento do Agravo em Recurso Especial Nº 201.310 - PE (2012/0141937-0) do STJ, em que são citados diversos precedentes e, em síntese, assevera que "ainda que as partes não tenham requerido produção de provas, mas sim o julgamento antecipado da lide, se esta não estiver suficientemente instruída, de sorte a permitir tal julgamento, cabe ao juiz, de oficio, determinar as provas necessárias à instrução do processo".
3 Art. 141. O juiz decidirá o mérito nos limites propostos pelas partes, sendo-lhe vedado conhecer de questões não suscitadas a cujo respeito a lei exige iniciativa da parte.
4 Tal hipótese evidentemente fere de morte a filosofia autorizada: “Como explica HABERMAS, 'a razão comunicativa distingue-se da razão prática por não estar adscrita a nenhum ator singular nem a um macrossujeito sociopolítico. O que torna a razão comunicativa possível é o medium lingüístico, através do qual as interações se interligam e as formas de vida se estruturam. Tal racionalidade está inscrita no telos lingüístico do entendimento, formando um ensemble de condições possibilitadoras e, ao mesmo tempo, limitadoras'. Aqui, a razão não é buscada apenas no íntimo do sujeito cognoscente, mas na argumentação, baseada no relacionamento humano — o que traz o aporte de elementos outros, que não apenas o conhecimento 'científico', tal como da moral e a história” (ARENHART, 2005, p. 15).