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Direito à moradia e ao meio ambiente equilibrado: ponderação entre direitos internacionais dos direitos humanos

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03/09/2017 às 18:20
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2 ASSENTAMENTOS HUMANOS EM ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE

Em linha de princípio, existe razoável incompatibilização entre as funções ambientais de preservação dos recursos naturais, da biodiversidade e a possibilidade de ocupação humana ou intervenções urbanísticas nessas áreas.

As áreas de preservação permanente, além de tutelar o fluxo gênico da fauna e da flora, protegendo o solo e a estabilidade geológica em áreas de riscos, asseguram o bem-estar da população humana. Afinal, não se pode olvidar que, segundo o art.225 da Carta Política, o meio ambiente equilibrado é direito de todos, “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo para as presentes e futuras gerações”.

Os artigos 64 e 65 da Lei n. 12.651, de 2012, admitem a regularização fundiária tanto de interesse social quanto de interesse específico em áreas de preservação permanente, nas hipóteses de assentamentos localizados em espaço urbano consolidado e que ocupam regiões não identificadas como área de risco, ficando a regularização ambiental admitida por meio de aprovação do respectivo projeto de regularização fundiária. Trata-se de exceção à regra, uma vez que a lógica da função e da finalidade da área de preservação permanente é a de não supressão da vegetação, devendo ser recuperada quando irregularmente suprimida.

Nos termos do artigo 8.º do mencionado Código Florestal, a intervenção ou a supressão de vegetação nativa em APP é possível tão somente nos casos de utilidade pública, interesse social ou de baixo impacto ambiental10. Já o artigo 4.º do mesmo diploma identifica as APPs em zonas urbanas e rurais, podendo outras ser especificadas por ato do Chefe Poder Executivo, conforme artigo 6.º, a exemplo de áreas cobertas com florestas ou outras formas de vegetação destinadas a conter a erosão do solo e mitigar riscos de enchentes e deslizamentos de terra e de rocha; abrigar espécies da fauna ou da flora ameaçados de extinção; proteger sítios de excepcional beleza ou de valor científico, cultural ou histórico; assegurar condições de bem-estar público; além de outras situações previstas na lei.

O Código Florestal ainda realça que as intervenções ou supressões da vegetação nativa em manguezais e restingas podem ser autorizadas, “excepcionalmente, em locais onde a função ecológica do manguezal esteja comprometida, para execução de obras habitacionais e de urbanização, inseridas em projetos de regularização fundiária de interesse social, em áreas urbanas consolidadas ocupadas por população de baixa renda” (§ 2.º do artigo 8.º da Lei 12.651/12).

Maria Luíza Machado Granziera aponta que, “independente das justificativas e das possibilidades que a lei prevê, a supressão de cobertura vegetal em APP representa a possibilidade de perda da função ambiental dessas áreas”. Eliminar essa vegetação é suprimir a proteção do espaço, o qual passará a ter outro fim, que não o de tutela ambiental (GRANZIERA, 2014, p.480).

Apesar de a supressão e a intervenção constituírem uma exceção, percebe-se que a legislação autoriza um leque amplo de situações que podem resultar numa discricionariedade técnica arriscada ao meio ambiente equilibrado. A excepcionalidade, contudo, há de ser um elemento fundamental para análise do órgão ambiental competente, objetivando conciliar os direitos fundamentais à moradia e ao meio ambiente equipendente.

A Lei n.º 13.465, de 11 de julho de 2017, que dispõe sobre regularização fundiária urbana e outros assuntos, em seu art.11 § 2.º, prevê que o Poder Público poderá, motivando a decisão administrativa, admitir a regularização de núcleos urbanos informais em APPs, em conformidade com o disposto no Código Florestal, quando inseridas em área urbana consolidada, desde que estudo técnico comprove que esta intervenção implicará na melhoria das condições ambientais em relação à situação de ocupação irregular anterior, inclusive com realização de compensações ambientais.

Reconhecer a legalidade de ocupações humanas em áreas de preservação permanente caracteriza mitigação das normas de proteção do meio ambiente, cuja situação realça teoricamente um retrocesso ambiental. Bruno Faro Eloy Dunda sustenta a necessidade de encontrar fundamentos para rejeitar a possibilidade de alteração na norma jurídica ambiental que implique uma redução dos padrões de proteção ou de qualidade ambiental já alcançados. “(…) o direito ambiental se caracteriza como um ramo do direito ao qual se aderem duas finalidades absolutamente claras e indissociáveis: uma luta ou uma reação contra a degradação do meio ambiente e a consequente necessidade de sua preservação” (DUNDA, 2014, p.89).

Cintia Maria Scheid, todavia, reforça, ainda que superficialmente, a primazia do direito social à moradia em relação ao meio ambiente natural, sobretudo em área de preservação permanente quando a situação já se encontra consolidada e irreversível. “Quando houver relevante interesse social, como é o caso da moradia consolidada de quem habita essas áreas, a desafetação já se concretizou no mundo dos fatos, de forma que a lei ambiental não se configura como justificativa para a não regularização desses assentamentos” (SCHEID apud COSTA, 2013).

Segundo dados da ONU-HABITAT, cerca de 1 bilhão de pessoas pobres vivem em favelas no mundo. Desse quantitativo, mais de 930 milhões vivem em favelas nos países em desenvolvimento, constituindo 42% da população urbana11. Não precisa de muito esforço para concluir que há um grande número de núcleos urbanos informais ocupando área de proteção ecológica, existindo assim elevado passivo de ocupações irregulares, ocasionado por ausência de políticas urbanas e crescimento desordenado das cidades e de regiões metropolitanas ao redor do mundo.


3 PROPORCIONALIDADE E PONDERAÇÃO COMO ELEMENTOS PARA RESOLUÇÃO DO CONFLITO ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS À MORADIA E AO MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO

A proporcionalidade aqui realçada se apresenta como técnica de solução do conflito entre direitos fundamentais. Irrefragavelmente, o conteúdo de ambos os direitos ora abordados integram a dimensão valorativa dos direitos humanos e, portanto, fazem parte constitutiva da própria dignidade da pessoa humana.

A lógica da proporcionalidade, enquanto técnica de solução de controvérsia, afeta diretamente valores constitucionais, levando-se em conta a valorosa finalidade pública a justificar a restrição de outros princípios fundamentais. Para esse exame, faz-se necessário observar a licitude do propósito perseguido, o meio adequado, ou seja, o instrumento que leva ao alcance do fim, e a necessidade do meio utilizado para alcançar esse mesmo fim.

Humberto Ávila orienta que se deve fazer a seguinte indagação quando do exame da proporcionalidade: “O grau de importância da promoção do fim justifica o grau de restrição causada aos direitos fundamentais? Ou, de outro modo: As vantagens causadas pela promoção do fim são proporcionais às desvantagens causadas pela adoção do meio?” (ÁVILA, 2015, p. 217).

Contextualizando a indagação, seria o caso de examinar se o direito fundamental à moradia adequada, consolidado em áreas de preservação permanente, pode sobrepor-se ao direito fundamental ao meio ambiente equilibrado. Ou se este último, enquanto direito difuso e transindividual tem prevalência sobre o direito humano social à moradia digna, igualmente reconhecido como direito internacional dos direitos humanos.

Norma Sueli Padilha aponta que a relação de precedência, por meio do qual se estabelece o peso relativo de um direito fundamental sobre outro no caso concreto, reside nas razões suficientes que justificam e fundamentam a tomada de decisão, consubstanciada na racionalidade da ponderação que se aperfeiçoa mediante a máxima da proporcionalidade (PADILHA, 2006).

Parece não merecer guarida o entendimento generalizado em prol da primazia de um direito fundamental sobre o outro. As peculiaridades de cada caso concreto devem ser consideradas, analisando, por exemplo, se a mitigação à tutela do meio ambiente não tem compensação ou correspondência nas vantagens ofertadas a uma coletividade que anseia por moradia adequada e uma melhor qualidade de vida nos centros urbanos, autorizando assim o sacrifício daquele direito humano difuso.

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Klaus Bosselman mostra que a preocupação com a proteção dos direitos humanos, incluindo-se o direito social à moradia, e a preocupação com a proteção do meio ambiente se reforçam reciprocamente e deve ter como ponto de partida uma racionalidade ecológica fincada na sustentabilidade.

Os paradigmas de racionalidade aproximam sistemas de valores. Os sistemas de valores se referem à importância relativa atribuída a valores concorrentes. Se, por exemplo, o bem-estar humano for considerado superior ao bem-estar ambiental, as colisões serão resolvidas de maneira que favoreça as necessidades humanas (em todo seu espectro) em detrimento das necessidades ambientais. Em consequência, o grau em que a superioridade presumida é usada determina o grau de proteção ambiental. E se essa superioridade se manifesta em direitos irrestritos à propriedade, ao crescimento econômico e ao utilitarismo sem medidas, então está claro que o meio ambiente sofrerá (BOSSELMANN, 2015, p.144).

Evidentemente, existe uma preocupação no sentido de equilibrar esses valores humanos, conciliando-os e até mesmo oportunizando a realocação das pessoas envolvidas nos assentamentos informais e nas favelas erguidas em áreas ambientalmente protegidas. Sempre no exame da situação concreta, em algumas situações haverá de prevalecer o direito humano ao meio ambiente equilibrado, bem de uso comum do povo cuja disponibilidade não se vincula a determinados grupos, mas aos interesses de todos os seres humanos.

Por outro lado, visando à efetividade do direito fundamental à moradia, preocupação também de uma agenda mundial que objetiva alcançar o princípio da dignidade da pessoa humana, não raras as vezes haverá de ser utilizada a técnica da proporcionalidade, ponderando-se os valores constitucionais em conflitos, respeitando a ética ambiental mas numa perspectiva de que a regularização fundiária ou qualquer empreendimento voltado às políticas habitacionais de interesse social deverá ser planejado diante das valorosas vantagens para o bem-estar de grupos vulneráveis e excluídos dos direitos à cidade.

Diferentemente do conflito de regras, que se resolve mediante a invalidação de uma delas ou por meio de uma cláusula de exceção para eliminação do conflito, ocorrendo colisão entre princípios, a solução é a ponderação. Natália Pires e Cibele Rodrigues destacam que nesses casos um princípio deverá ceder, diante de determinadas circunstâncias, haja vista que não há uma precedência básica entre eles, nenhum possui uma precedência absoluta (PIRES; RODRIGUES, 2005, p.527).

Quando a ocupação ou o assentamento humano estiver em área que seja de uso comum do povo, como praças e ruas, bem assim em áreas urbanas de interesse da preservação ambiental, a exemplo de margens de rios e lagos, encostas e matas ciliares, dentre outros casos considerados como de preservação permanente, é facultado ao Poder Público assegurar o exercício do direito de moradia, por meio da Concessão de Uso Especial (CUEM), título de Legitimação de Posse, Legitimação Fundiária12, desapropriação por interesse social, Concessão de Direito Real de Uso (CDRU), doação e outros institutos jurídicos, em local diverso que atenda aos requisitos desse direito social fundamental. O Poder Público também garantirá ao possuidor esse direito quando a área de ocupação acarretar risco à vida ou à sua saúde.

Inobstante a situação concreta possa resultar remoções forçadas, algumas vezes interpretadas como uma violação dos direitos humanos, impõe ao Poder Público oferecer condições melhores de habitabilidade àquelas pessoas removidas que não devem ficar desabrigadas, em circunstância de vulnerabilidade pior do que a anterior.

De outro norte, em consonância com o art.11, parágrafos 2.º, 3.º, 4.º da Lei n.º 13.465, de 2017, quando os assentamentos humanos estiverem inseridos em núcleos urbanos informais consolidados, ainda que em Áreas consideradas de Preservação ambiental Permanente, Unidade de Conservação de Uso Sustentável ou de Proteção de Mananciais, o Poder Público poderá, por decisão fundamentada, aplicar o princípio da proporcionalidade e ponderar os valores em choque, desde que se comprove, mediante estudo técnico, que a intervenção urbanística a ser precedida da concessão da titularidade, implique em melhorias nas condições ambientais em relação à situação de ocupação irregular anterior, por meio de recuperação de áreas degradas e daquelas não passíveis de regularização, resultando sobretudo num padrão mínimo de sustentabilidade urbano ambiental.

A mesma lógica poderá ser seguida nos casos de Regularização Fundiária Urbana de assentamentos informais consolidados às margens de reservatórios artificiais de água destinados à geração de energia ou abastecimento público, devendo, entretanto, ser considerada como faixa da área de preservação permanente a distância entre o nível máximo operativo normal e a cota máxima maximorum do reservatório (§ 4.º, art.11, Lei 13.465/2017).

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Sobre o autor
José Herbert Luna Lisboa

Mestre em Direito pela UNISANTOS-SP. Foi Professor do Centro Universitário de João Pessoa - UNIPÊ por duas décadas, professor da Escola Superior da Magistratura da Paraíba -ESMA, especialista em Direito Notarial e Registral pela Faculdade Arthur Thomas, Londrina-PR, especialista em ciências criminais pela Universidade Potiguar-RN, especialista em Direito Imobiliário pela Escola Paulista de Direito-SP; Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Anhaguera-SP, Juiz de Direito titular da 4.ª Vara Cível da Comarca de João Pessoa-PB e ex-membro da Turma Recursal da Capital-PB, Diretor do Foro da Capital-PB, Juiz Auxiliar da Corregedoria da Justiça na Paraíba no período de 2003 a 2006 e 2017 e 2018, ex-promotor de justiça (94/95). Autor de diversos livros, a exemplo, da Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia e a Regularização Fundiária, editora Dialética, 2022. Atualmente cumula suas funções jurisdicionais com a de membro da Comissão do 2º Concurso para as Serventias Extrajudiciais do Estado da Paraíba e de Diretor do Foro Cível da Capital-PB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LISBOA, José Herbert Luna. Direito à moradia e ao meio ambiente equilibrado: ponderação entre direitos internacionais dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5177, 3 set. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59593. Acesso em: 26 abr. 2024.

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