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Montesquieu, ACM, Velloso e FHC:

separação de poderes e suas perspectivas

01/08/1999 às 00:00
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1. Introdução

          Como se já não bastassem os crônicos problemas enfrentados pelo povo brasileiro, ultimamente, vive-se a expectativa do desenlace de crises institucionais motivadas por reiterados conflitos entre os Poderes da República.

          Na chefia do Executivo, um Presidente desacreditado, vencido pelo desemprego galopante que assola o país e pelo agravamento da crise social, tornou-se mero espectador de desentendimentos internos que corroem e desagregam sua própria base de sustentação política. No Judiciário, o recém empossado Ministro Carlos Velloso, enfrenta verdadeiro processo de enfraquecimento e descrédito da justiça motivado pela hipertrofia do poder econômico, globalizado e cada vez mais massacrante. No Legislativo, além das deselegantes "batalhas campais" travadas pelos chefes das suas duas Casas, o Presidente do Congresso, na posição de líder político que colheu frutos de diferentes fases de nossa história recente (inclusive daquela em que os direitos fundamentais da pessoa humana não passavam de "sonhos de consumo"), insiste numa arrogante posição coronelista, desconexa com os anseios e necessidades de um país que busca o crescimento.

          Em comum, um único ponto, as constantes ingerências de um Poder sobre o outro, algumas vezes necessárias para justificar a própria harmonia e independência entre eles, outras por mero capricho, vaidade e interesse pessoal de seus líderes.

É esse o quadro que nos instiga a traçarmos algumas breves linhas sobre a consagrada doutrina da "separação dos poderes" e sua perspectiva no Brasil atual.


2. Breve histórico

          Aristóteles, já na antigüidade, em sua Política, lançou aquela que seria a base de uma teoria acerca da separação das funções do Estado. Na concepção aristotélica o governo dividia-se em três partes: a que deliberava acerca dos negócios públicos; a que exercia a magistratura (uma espécie de função executiva) e a que administrava a Justiça.

          John Locke (Ensayo sobre el gobierno civil) e Rosseau (Du contrat social) também contribuíram para a construção da "separação de poderes" tendo a mesma sido realmente definida e divulgada por Montesquieu em seu De l’esprit des lois, transformando-se, assim, numa das mais importantes doutrinas políticas de todos os tempos, alçada à categoria de princípio fundamental da organização política liberal, consagrado pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (art. 16).

Não obstante ter o princípio da "separação de poderes" sido uma constante no ordenamento constitucional brasileiro segundo a fórmula preconizada por Montesquieu, a Constituição do Império, excepcionalmente, adotou a separação quatripartita: poderes Moderador, Legislativo, Executivo e Judiciário.


3. A "separação de poderes"

          A teoria da "separação de poderes" pressupõe a tripartição das funções do Estado, distinguindo-as em legislativa, administrativa (ou executiva) e jurisdicional.

          Conforme advertimos em nosso Eleições e Abuso de Poder, o poder, genericamente falando, "é uma forma de controle social, capaz de direcionar a conduta de um determinado grupo de pessoas. Todos os que dispõem de meios materiais para isto são detentores do poder, e quem o exerce não costuma medir esforços para nele se manter (...) Ocorre, porém, que o exercício do poder tende, naturalmente, a ultrapassar os limites estabelecidos pela lei. Ao serem ultrapassados esses limites cometido está o abuso. Daí a necessidade da constante alternância de poderes no regime democrático."(1)

          Ao lado desse poder, inerente ao exercício da soberania ao qual se confere a determinado cidadão ou grupo de cidadãos a representatividade necessária ao exercício das funções públicas, encontra-se o poder estatal ou político, que é uno.

          Entretanto, por tal unicidade consistir numa indesejosa concentração que conduz, necessariamente, a um governo do tipo absolutista, tende-se a repartir o exercício desse poder por órgãos distintos e independentes de forma que um desses não possa agir sozinho sem ser limitado pelos outros. É o que se conhece como sistema de freios e contrapesos que, há um só tempo, subsume a harmonia e independência entre os poderes.

          O Professor José Afonso da Silva, sobre o assunto, leciona que se ao "Legislativo cabe a edição de normas gerais e impessoais, estabelece-se um processo para sua formação em que o Executivo tem participação importante, quer pela iniciativa das leis, quer pela sanção e pelo veto. Mas a iniciativa legislativa do Executivo é contrabalançada pela possibilidade que o Congresso tem de modificar-lhe o projeto por via de emendas e até rejeitá-lo. Por outro lado, o Presidente da República tem o poder de veto, que pode exercer em relação a projetos de iniciativa dos congressistas como em relação às emendas aprovadas a projetos de sua iniciativa. Em compensação, o Congresso, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, poderá rejeitar o veto e, pelo Presidente do Senado, promulgar a lei, se o Presidente da República não o fizer no prazo previsto (art. 66).

          Se o Presidente da República não pode interferir nos trabalhos legislativos, para obter aprovação rápida de seus projetos, é-lhe, porém, facultado marcar prazo para sua apreciação, nos termos dos parágrafos do art. 64.

          Se os Tribunais não podem influir no Legislativo, são autorizados a declarar a inconstitucionalidade das leis, não as aplicando neste caso.

          O Presidente da República não interfere na função jurisdicional, em compensação os ministros dos tribunais superiores são por ele nomeados, sob controle do Senado Federal, a que cabe aprovar o nome escolhido (art. 52, III, a).

          São esses alguns exemplos apenas do mecanismo dos freios e contrapesos, caracterizador da harmonia entre os poderes. Tudo isso demonstra que os trabalhos do Legislativo e do Executivo, especialmente, mas também do Judiciário, só se desenvolverão a bom tempo, se esses órgãos se subordinarem ao princípio da harmonia, que não significa nem o domínio de um pelo outro nem a usurpação de atribuições, mas a verificação de que, entre eles, há de haver consciente colaboração e controle recíproco (que aliás, integra o mecanismo), para evitar distorções e desmandos. A desarmonia, porém, se dá sempre que se acrescem atribuições, faculdades e prerrogativas de um em detrimento de outro."(2)

          Em seguida, o eminente constitucionalista elenca algumas exceções previstas na Carta Magna ao sistema de freios e contrapesos como, por exemplo, a possibilidade de adoção, pelo Presidente da República de medidas provisórias, com força de lei (art. 62), e a autorização de delegação de atribuições legislativas ao Presidente da República (art. 68).(3)

          Criticável é, no entanto, a base científica da teoria de Montesquieu. O constante exercício de funções inerentes a um Poder por outro, acaba por relativizar a especialização inerente à separação tradicionalmente vergastada.

          O consagrado Manoel Gonçalves Ferreira Filho ressalta, entretanto, o papel histórico relevante desempenhado pela "separação de poderes", advertindo, todavia, que hoje "sua importância costuma ser minimizada; seu fim, profetizado; sua existência, até negada."(4)

          O ilustre Professor traz à baila, ainda, o ensinamento de Lowenstein constante em seu Political power and the governmental process, no qual sugere "uma nova tripartição das funções do Estado, que apelida "policy determination", "policy execution" e "policy control". As duas primeiras coincidem, grosso modo, com as funções governamental e administrativa referidas por Burdeau (...). A originalidade está em identificar a existência dessa função de controle, em que acertadamente vê o ponto crucial do regime constitucional." Diz ainda que, "esse controle é indispensável para a manutenção da democracia e para a salvaguarda da própria liberdade individual. De fato, não só deve ser fiscalizada a adequação das opções governamentais às opções populares, ou ao bem comum, controle político, para o qual está particularmente indicado o parlamento, como também a aplicação dessas decisões aos casos particulares – controle formal, para o qual é naturalmente indicado o Judiciário". E arremata – "Essa nova tripartição das funções abre, talvez, caminho para uma revisão da organização política ocidental, tarefa ingente e urgente. Todavia, do ponto de vista científico, deve-se reconhecer que a função de controle, na medida em que é verificação da concordância de um ato com outro superior, tem natureza administrativa (de acordo com a terminologia de Burdeau)".(5)


4. A doutrina de Montesquieu na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

          Inúmeros são os julgados do Excelso Pretório que consagram a teoria da "separação de poderes" e a sua inter-relação com o constitucionalismo pátrio (v.g. AGRAG-142348/MG, Rel. Min. Celso de Melo; RP – 94/DF, Rel. Min. Castro Nunes; AGRAG-171342 / RJ, Rel. Min. Marco Aurélio, etc.).

          Destaque-se, nesse mister, o brilhante Acórdão proferido na ação direta de inconstitucionalidade n.º 98/MT, que teve como relator o incontestável Ministro Sepúlveda Pertence. Declarou-se, na ocasião, a inconstitucionalidade de dispositivos da Constituição de Mato Grosso que previa a transferência compulsória para a inatividade de Desembargador que, com trinta anos de serviço público, completasse dez anos no Tribunal de Justiça, norma essa que era extensiva aos Procuradores de Justiça e aos Conselheiros do Tribunal de Contas daquele Estado e que, no entender do eminente Ministro Relator contrariava a garantia de vitaliciedade dos juizes e, por conseguinte, o princípio da independência do Poder Judiciário.

          Espancou-se, também, na ocasião, norma da Carta estadual que previa um controle externo ao Poder Judiciário local realizado através de um colegiado de formação heterogênea no qual participavam agentes ou representantes dos outros Poderes. Eis alguns trechos do voto condutor do referido acórdão:

          "(...) Na estrutura do constitucionalismo federal brasileiro, se não se quer alçar às alturas conceituais dos princípios constitucionais uma série de normas pontuais, será necessário reconhecer a existência de uma terceira modalidade de limitações à autonomia constitucional dos Estados: além dos grandes princípios e das vedações – esses e aqueles, implícitos ou explícitos – hão de acrescentar-se as normas constitucionais centrais que, não tendo o alcance dos princípios nem o conteúdo negativo das vedações, são, não obstante, de absorção compulsória – com ou sem reprodução expressa – no ordenamento parcial de Estados e Municípios (cf. meus votos na Rcl 370, Galloti e na Rcl 382, Moreira, RTJ 147/404, 478/495).

          Nessa categoria insere-se induvidosamente o art. 93, VI, da Constituição Federal, a teor do qual, cuidando-se de magistrados, "a aposentadoria com proventos integrais é compulsória por invalidez e aos setenta anos de idade".

          Trata-se de norma de absorção forçada pelos Estados, na medida em que se insere – como explícito no caput do art. 93 – entre os "princípios" a serem observados no Estatuto da Magistratura, que é lei complementar cujo campo normativo abrange tanto os magistrados federais quanto os locais, como ressai da estrutura nacional do Poder Judiciário, delineada no art. 92, que compreende os juizes e tribunais da União e dos Estados. (...)

          Com mais razão, não há como admitir pudessem ou possam hoje, os Estados subtrair garantias inseridas nas regras constitucionais centrais do estatuto da magistratura: é ponto assente que as garantias constitucionais do juiz se impõem à necessária absorção do ordenamento estadual, sem discussão, pelo menos, desde a Constituição de 1934 – que explicitou, a propósito, o que a construção do Supremo Tribunal já extraíra do dogma da independência do Judiciário (cf. Leda Boechat Rodrigues, História do Supremo Tribunal Federal, v. I, cap. V, p. 82; VIII, cap. 13, p. 215, com farta referência jurisprudencial; Pedro Lessa, Do Poder Judiciário, 1915, p. 7; Castro Nunes, Teoria e Prática do Poder Judiciário, 1943, p. 62).

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          Sob esse prisma, ascende a discussão ao nível de um dos verdadeiros princípios fundamentais da Constituição, o dogma intangível da separação de poderes (CF, arts. 2º e 60, § 4º, III). Com efeito, é patente a imbricação entre a independência do Judiciário e a garantia da vitaliciedade dos juizes. A vitaliciedade é penhor da independência do magistrado, a um só tempo, no âmbito da própria Justiça e externamente – no que se reflete sobre a independência do Poder que integra frente aos outros Poderes do Estado.

          Desse modo, a vitaliciedade do juiz integra a regime constitucional brasileiro de separação e independência dos Poderes.

          O princípio da separação e independência dos Poderes, malgrado constitua um dos signos distintivos fundamentais do Estado de direito, não possui fórmula universal apriorística: a tripartição das funções estatais , entre três órgãos ou conjuntos diferenciados de órgãos, de um lado, e, tão importante quanto essa divisão funcional básica, o equilíbrio entre os poderes, mediante o jogo recíproco dos freios e contrapesos, presentes ambos em todas elas, apresentam-se em cada formulação positiva do princípio com distintos caracteres e proporções.

          Dado que o Judiciário é, por excelência, um Poder de controle dos demais Poderes – sobretudo nos modelos positivos de unidade e universalidade da jurisdição dos Tribunais, como o nosso – parece incontestável, contudo, que a vitaliciedade ou outra forma similar de salvaguardar a permanência do Juiz na sua função será, em cada ordem jurídica considerada, marca característica da sua tradução positiva do princípio da independência dos poderes. (...)

          Daí não se segue, entretanto, que ao legislador subordinado à Constituição Federal – incluído o titular do poder constituinte instituído dos Estados – possa criar outras modalidades de cessação da investidura vitalícia: as únicas hipóteses previstas na Lei Fundamental – a invalidez e a idade limite – inerem ao estatuto constitucional da vitaliciedade, quais únicas modalidades admissíveis de cessação compulsória da estabilidade no cargo e na função do titular da garantia.

          Acrescer-lhes outros casos de inatividade obrigatória é, por tudo isso, afrontar o art. 95, I, que de modo exaustivo os prescreve, e, via de conseqüência, os arts. 2º e 60, § 4º, III, da Constituição, que erigem a separação e a independência dos poderes a princípio constitucional intangível pelo constituinte local. (...)

          Declaro, pois, a inconstitucionalidade dos arts. 92, V; 109, parág. único, 50, § 4º, e 42 do Ato das disposições Transitórias da Constituição do Estado de Mato Grosso.

          O segundo tópico da argüição volta-se contra a instituição no Estado de um órgão de controle externo do Poder Judiciário, o Conselho Estadual de Justiça. (...)

          Não há dúvida de que o princípio da separação e independência dos Poderes – instrumento que é da limitação do poder estatal -, constitui um dos traços característicos do Estado Democrático de Direito.

          Mas, como há pouco assinalava neste mesmo voto, é princípio que se reveste, no tempo e no espaço, de formulações distintas nos múltiplos ordenamentos positivos que, não obstante a diversidade, são fiéis aos seus pontos essenciais.

          Por isso, quando erigido, no ordenamento brasileiro, em princípio constitucional de observância compulsória pelos Estados-membros, o que a estes se há de impor como padrão não são concepções abstratas ou experiências concretas de outros países, mas sim o modelo brasileiro vigente da separação e independência dos Poderes, como concebido e desenvolvido na Constituição da República.

          A identificação dos signos característicos de um sistema de positivação do princípio menos importará talvez a divisão tripartite das funções jurídicas do Estado – vale dizer a separação dos poderes, cujas linhas básicas são mais ou menos constantes – do mecanismo dos freios e contrapesos – que, delimitando as interferências permitidas a um na área da função própria de outro, permitem, em contraposição, apurar a dimensão real da independência de cada um dos Poderes, no modelo considerado.

          Ora, pelo menos na formulação do constitucionalismo republicano brasileiro, como assinalou no precedente o Ministro Gallotti – o autogoverno do Judiciário e sua autonomia administrativa -, além de espaços variáveis da autonomia financeira e orçamentária – têm sido reputados corolários da independência do Poder.

          Naquele caso, para acompanhar o voto do Relator, observei que, a meu ver, pregação, no Brasil, a título de controle externo do Judiciário, do transplante da experiência européia dos conselhos superiores da magistratura, tem decorrido, quando não de má-fé, de uma leitura distorcida do significado da instituição nos países que a tem admitido.

          É certo, assinalei, que, a partir da Constituição republicana da Itália, se vêm difundindo, em quase toda a Europa continental, órgãos do tipo do Conselho Superior da Magistratura italiano, composto de magistrados e representantes de outros Poderes, encarregados da disciplina e de certas tarefas de administração da Justiça, particularmente as que dissessem com a própria carreira judicial.

          Sigo convencido de que não é apenas o fato de serem regimes parlamentaristas – onde menos rígido o dogma da separação dos Poderes – o que explica que não se lhes tenha oposto o princípio da independência do Judiciário.

          A explicação é antes histórica de que sistemática, e se liga ao preconceito antijudiciarista da Revolução Francesa, racionalizado e sublimado por uma leitura radical do princípio da separação dos poderes que implicou atribuir ao Executivo – especificamente aos Ministros da Justiça – todo o governo do sistema judiciário (cf., v.g., Luis Mosquera, El Poder Judicial y la Constituición Espanõla de 1978 (direção de Predieri e García de Enterría), p. 721, 723).

          Em Portugal, porque a composição atual dá prevalência aos membros designados pelo Presidente e pela Assembléia da República sobre os magistrados eleitos por seus pares, Canotilho e Vital Moreira (...), negam ao Conselho o título de órgão de autogoverno da magistratura; reconhecem-lhe, não obstante, a função essencial de "garantir a autonomia dos juizes dos tribunais judiciais, tornando-os independentes do Governo e da Administração".

          O mesmo se dá na Espanha, a propósito do Consejo General del Poder Judicial, composto do Presidente do Tribunal Supremo e de vinte membros nomeados pelo Rei, doze entre magistrados, quatro propostos pelo Congresso de Deputados e quatro pelo Senado (...) – o Conselho é, no entanto, órgão da independência do Poder Judiciário, na medida em que desvinculou do Governo setores mais relevantes da administração da Justiça – "el núcleo duro del gobierno interno de la magistratura" – segundo Lópes Aguilar – vale dizer, da carreira e da disciplina dos magistrados.

          Na França mesmo, "malgré tout" – superadas, com a reforma de 1994, as vicissitudes do autoritarismo "gaullista" – ao Conseil Supérieur de la Magistrature se volta a emprestar a função de "assegurar a independência dos magistrados" (...)

          Essa completa dependência administrativa dos Tribunais ao Ministro da Justiça durou até os processos europeus de democratização do segundo pós-guerra das últimas décadas: a Itália conhecia um conselho Superior da Magistratura desde 1907, mas com funções consultivas, despido, até 1946, de qualquer poder decisório (...)

          Por isso mesmo, também anotei no precedente, debalde se procurará na literatura européia a caracterização de tais Conselhos como órgãos do chamado "controle externo" do Poder Judiciário: muito ao contrário – porque historicamente a sua instituição tenha representado a superação, ainda que parcial, dos tempos de completa submissão da administração da Justiça e sobretudo da carreira judicial ao Executivo – toda a ênfase dos escritores recai no seu papel de garante da independência da magistratura.

          (...) Tudo isso vem só a propósito e reafirmar que, num prisma tão delicado da arquitetura constitucional como do regime de poderes, não é possível transplantar instituições de outras plagas sem atenção à diversidade entre o seu significado na origem e o que assumiria aqui.

          Na Europa, como visto, os conselhos superiores da magistratura representam representam um avanço significativo no sentido da independência do Judiciário, na medida em que nada lhe tomaram do poder do poder de administrar-se, de que nunca dispuseram, mas, ao contrário, transferiram a colegiados onde a magistratura tem presença relevante, quando não majoritária, poderes de governo judicial que historicamente eram reservados ao Executivo.

          Ao contrário, a mesma instituição traduziria retrocesso e violência constitucional, onde, como sucede no Brasil, a idéia de independência do Judiciário está extensamente imbricada com os predicados de autogoverno crescentemente outorgados aos Tribunais.

          Na mesma linha de raciocínio, há um último ponto a sublinhar: em todos os países que têm instituído os conselhos de formação heterogênea para o governo do Judiciário – com a única exceção, que passou a adotar o princípio da unidade jurisdicional (Const. de 1978, art. 117, 5) - , à magistratura judicial – por motivos históricos similares aos já recordados - , jamais, se entregou nem o controle da legalidade da administração, nem muito menos o de constitucionalidade das leis.

          Quanto aos órgãos da jurisdição constitucional, é significativo notar que mesmo onde – como sucede na Espanha (tomas y Valiente, Los Jueces y la Constitución, ob. cit., p. 86) – e em Portugal (Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., art. 212º, II/323) – o Tribunal Constitucional exerce jurisdição e se reputa integrante do Poder Judiciário, é dele próprio o seu governo e a ninguém ocorreria submeter os seus juizes ao poder disciplinar dos Conselhos Superiores.

          No sistema brasileiro, todo órgão judiciário é juiz da legalidade da administração e da constitucionalidade das leis.

          É um dado a mais para evidenciar o trauma que representaria ao modelo positivo brasileiro de independência do Judiciário, que tem um dos seus pilares no autogoverno, a introdução em Estado-membro de um órgão de administração e disciplina em cuja heterogênea formação se abrissem flancos à intromissão dos outros Poderes. (...)

          Em conseqüência, julgo procedente in totum a ADIn 98 e prejudicada a ADIn 183: é o meu voto."(6)

          Extrai-se, pois, do precedente jurisprudencial acima transcrito que o Supremo Tribunal Federal, com relação ao tão decantado "controle externo", não olvidará em declarar a inconstitucionalidade de emenda constitucional que vise suprimir a independência funcional e administrativa do Judiciário.


5. Conclusão

          O poder político exercido por uma pluralidade de órgãos deve, necessariamente, pautar-se por normas de lealdade constitucional de forma que seus titulares, em regime de cooperação, realizem os objetivos traçados na Constituição Federal.

          Ocorre que isto só é possível se existir respeito mútuo, restando afastada toda e qualquer forma de retaliação gratuita. É sabido que as instituições são maiores que os homens. Estes passam, aquelas devem subsistir independentes e harmônicas como vislumbrou Montesquieu.

          Destaque-se, por fim, a necessidade grandiosa de termos um Judiciário atuante e fortalecido. Fiel da balança que é, não deve, jamais, submeter-se aos bons ou maus humores do Executivo e Legislativo.

          Lembrando magistral lição de José Antônio Pimenta Bueno, "a independência da autoridade judiciária do magistrado consiste na faculdade que ele tem, e que necessariamente deve Ter de administrar a justiça, de aplicar a lei como êle exata e conscienciosamente entende, sem outras vistas que não sejam a própria e imparcial justiça, a inspiração do seu dever sagrado. Sem o desejo de agradar ou desagradar, sem esperanças, sem temor algum... A independência do magistrado deve ser uma verdade, não só de direito como de fato; é a mais firme garantia dos direitos e liberdades, tanto civis como políticas do cidadão; é o princípio tutelar que estabelece e anima a confiança dos povos na reta administração da justiça; é preciso que o povo veja e creia que ela realmente existe. Tirai a independência ao Poder Judiciário, e vós lhe tirareis a sua grandeza, sua força moral, sua dignidade, não tereis mais magistrados, sim comissários, instrumentos ou escravos de outro Poder".(7)


NOTAS

          1. AIDE Editora, Rio de Janeiro, 1998, p. 17;

          2. Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros, 10ª ed., p. 111/112;

          3. ob. cit., p. 113;

          4. Curso de Direito Constitucional, Saraiva, 21ª ed., p. 119;

          5. ob. cit., p. 119/120;

          6. STF, Tribunal Pleno, ADIn 98/MT, Relator Min. Sepúlveda Pertence, DJ 31.10.97, p. 55539;

          7. em Direito Público Brasileiro e análise da Constituição do Império, 1957, p. 322.

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Sobre o autor
Marcelo Silva Moreira

assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Maranhão, professor universitário, pós-graduando em Direito Civil e Processual Civil pela FGV

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Marcelo Silva. Montesquieu, ACM, Velloso e FHC:: separação de poderes e suas perspectivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 34, 1 ago. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60. Acesso em: 2 nov. 2024.

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