6. Crime Econômico: artigo 4º da Lei 8.137/90
A Lei 8.137/90 no Capítulo II – “Dos Crimes Contra a Ordem Econômica e as Relações de Consumo” prevê em seu artigo 4º :
“Constitui crime contra a ordem econômica:
I - abusar do poder econômico, dominando o mercado ou eliminando, total ou parcialmente, a concorrência mediante:
a)ajuste ou acordo de empresas;
b)aquisição de acervos de empresas ou cotas, ações, títulos ou direitos;
c)coalizão, incorporação, fusão ou integração de empresas;
d)concentração de ações, títulos, cotas, ou direitos em poder de empresa, empresas coligadas ou controladas, ou pessoas físicas;
e)cessação parcial ou total das atividades da empresa;
f)impedimento a constituição, funcionamento ou desenvolvimento de empresa concorrente.
II - formar acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes, visando:
a)à fixação artificial de preços ou quantidades vendidas ou produzidas;
b)ao controle regionalizado do mercado por empresa ou grupo de empresas;
c)ao controle, em detrimento da concorrência, de rede de distribuição ou de fornecedores.
III - discriminar preços de bens ou de prestação de serviços por ajustes ou acordo de grupo econômico, com o fim de estabelecer monopólio, ou de eliminar, total ou parcialmente, a concorrência;
IV - açambarcar, sonegar, destruir ou inutilizar bens de produção ou de consumo, com o fim de estabelecer monopólio ou de eliminar, total ou parcialmente, a concorrência;
V - provocar oscilação de preços em detrimento de empresa concorrente ou vendedor de matéria-prima, mediante ajuste ou acordo, ou por outro meio fraudulento;
VI - vender mercadorias abaixo do preço de custo, com o fim de impedir a concorrência;
VII - elevar, sem justa causa, o preços de bem ou serviço, valendo-se de posição dominante no mercado. (Redação dada ao inciso pela Lei nº 8.884, de 11.06.1994)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.”
6.1. Observações Preliminares.
Percebe-se pela simples leitura do dispositivo legal supra citado, que a técnica empregada para a descrição do tipo penal econômico foi diferenciada da utilizada normalmente.
Trata-se de uma norma jurídica que prevê um tipo penal aberto, com utilização de diversos conceitos normativos de natureza econômica, como elementos de valoração, para se alcançar a sua tipicidade.
Outrossim, descreve várias condutas que podem ser praticadas por uma pessoa física, no exercício de uma atividade empresarial, visando afetar de maneira efetiva e concreta o bem jurídico tutelado pela norma.
6.2. Objeto Jurídico.
A objetividade jurídica está na repressão às condutas efetivamente nocivas a ordem econômica, visando coibir e impedir situações abusivas e prejudiciais à coletividade, como titular da proteção legal.
Em resumo, preocupou-se o legislador ordinário em atender ao princípio de que a exploração direta de qualquer atividade econômica deve sempre fundar-se na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, com o fim de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, reprimindo-se quando necessário, o abuso do poder econômico, a tentativa de eliminar a concorrência ou de aumentar arbitrariamente os lucros.
Não se pode olvidar, conforme já restou explanado neste trabalho, que a lei penal deve ter sua eficácia restrita a coibir às práticas ilícitas que as normas de caráter não criminal falharam em repreender.
6.3. Sujeito Ativo e Passivo.
Sujeito ativo do crime previsto no artigo 4º da Lei 8.137/90, será a pessoa física que pratique as ações ou omissões puníveis no tipo penal, no exercício legal ou ilegal de uma atividade econômica.
Cabe esclarecer que será o sujeito ativo a pessoa que tiver poderes para decidir sobre as questões relativas à sociedade. Podendo, portanto, referido crime ser praticado pelo administrador ou procurador da empresa, ou qualquer pessoa que tenha poderes de decisão.
Já, o sujeito passivo do crime econômico será a coletividade, como titular bem jurídico protegido pela lei. Mediatamente, a prática do crime poderá atingir a esfera jurídica de particulares (empresas, investidores, etc.).
6.4. Tipo Objetivo.
O inciso I do dispositivo legal, em estudo, descreve uma série de condutas puníveis, desde que a prática delas atinjam os conceitos normativos nele mencionados: abuso do poder econômico, domínio de mercado ou eliminação, total ou parcialmente, da concorrência.
Em tópicos anteriores deste trabalho, analisou-se detalhadamente, referidos conceitos, inclusive, concluiu-se a necessidade de apreciação do órgão administrativo competente, no sentido de declará-los relevante para efeito de proteção legal.
Nesse sentido, não é qualquer conduta praticada por alguém, consistente em ajuste ou acordo de empresas; em aquisição de acervos de empresas ou cotas, ações, títulos ou direitos; em coalizão, incorporação, fusão ou integração de empresas; em concentração de ações, títulos, cotas, ou direitos em poder de empresa, empresas coligadas ou controladas, ou pessoas físicas; em cessação parcial ou total das atividades da empresa; ou impedimento a constituição, funcionamento ou desenvolvimento de empresa concorrente; que necessariamente atingirá o bem jurídico tutelado pela norma.
Pelo contrário, conforme já visto, pode haver acordos entre agentes econômicos legítimos; pode haver concentração e cooperação entre empresas que sejam de interesse coletivo, que não necessariamente configurem abuso de poder econômico ou atinjam um mercado relevante, de forma a afetar a concorrência.
Os demais incisos do dispositivo legal também descrevem situações que para terem alguma eficácia penal dependem da valoração de conceitos e institutos econômicos.
Enfim, pode acontecer que determinado fenômeno empresarial, apesar de objetivamente descrito no tipo, não cause lesão ao bem jurídico tutelado.
Daí, a importância da tese que se pretende defender nesta obra.
6.5. Tipo Subjetivo.
Consiste na vontade livre e consciente do agente (dolo) em atingir efetivamente o bem jurídico tutelado pelo artigo 4º da Lei 8.137/90.
Trata-se, o que parte da doutrina denomina de elemento subjetivo especial, consistente na vontade deliberada em alcançar o resultado delituoso.
Tal raciocínio, implica em aceitar que se o agente não teve interesse em atingir o fim especial protegido pela lei, a conduta por ele praticada é atípica. Pode sua ação ou omissão até ter repercussão na esfera administrativa ou cível, mas jamais na penal.
Nesse contexto, inadmissível a responsabilidade culposa do agente, em âmbito penal.
6.6. Consumação.
O crime econômico, em análise, ocorre com a prática das ações ou omissões previstas no tipo penal, desde que se atinja o resultado criminoso.
Trata-se de crime material por exigir o tipo penal, resultado concreto e efetivo em atingir a ordem econômica, e por conseqüência, a coletividade como um todo. Sendo material o crime, admite-se a tentativa.
7. A relação entre o tipo penal econômico (artigo 4º da Lei 8.137/90), a manifestação do órgão administrativo (CADE) e a garantia constitucional do devido processo legal.
Primeiramente, a afirmação que deve ser feita é que a decisão administrativa do órgão administrativo (CADE), no que se refere a existência de infração econômica, é elemento essencial para a integralização do tipo penal econômico “sub examine”.
Conforme já explicitado, o Direito Penal Econômico com a amplitude de seu conteúdo, é um direito de superposição. É exatamente por causa deste fenômeno que os tipos delituosos econômicos não incidem diretamente sobre os fatos, mas, antes, sobre normas jurídicas que regulam situações de fato.
Neste diapasão, a preocupação de se realizar uma análise crítica sobre os conceitos, institutos e leis econômicas, torna-se ainda mais relevante, para a constatação de um juízo de tipicidade.
Ou seja, só poderá ocorrer a declaração da responsabilização penal do agente quando e na medida em que estes elementos consubstanciem valorações reconhecidas e seguras, sob pena de trazer a insegurança social.
Daí, a importância da apreciação administrativa realizada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica.
O CADE é o órgão competente legalmente e tecnicamente, em sede de julgamento de processo administrativo, para declarar a existência de abuso do poder econômico, ou para impedir que ele aconteça.
Neste contexto, exsurge evidente que sem a prévia declaração do referido órgão, não se pode afirmar que houve violação do bem jurídico tutelado.
Ademais, todos sabem que na via administrativa as questões econômicas são geralmente bem resolvidas, sobretudo quando se trata de questões de fato. Via especializada, onde se lida exclusivamente com questões de fato com muito mais adequação. Daí porque a supressão do direito do acusado, de ter examinadas as suas razões na via administrativa, antes do inicio da ação penal, é da maior relevância.
Ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica compete com propriedade avaliar se um determinado fenômeno empresarial merece proteção legal.
Sobretudo, se levar em consideração que nem todas as condutas previstas no tipo penal, em estudo, se ocorridas, necessariamente infringirão a ordem econômica.
Seria absurdo admitir a hipótese de alguém vir a ser processado criminalmente, ou até mesmo, condenado, e, posteriormente, o CADE declarar que a mesma situação de fato analisada não constituiu infração econômica.
Assim, constitui grave equívoco, portanto, afirmar ser irrelevante, para o Juízo penal, a decisão da autoridade administrativa competente que declara a inexistência de infração à ordem econômica.
Ao contrário, trata-se de uma questão de direito material, e ao seu adequado deslinde é essencial à unidade do direito.
Em admirável voto vencido, asseverou o Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, com inteira propriedade, que proclamada a inexistência do ilícito, ainda que administrativamente, não pode o Ministério Público, com esteio no mesmo fato, promover a imputação criminal. “Seria contraditório, afrontando a unidade do Direito, o Estado (na espécie o Estado de Santa Catarina), num momento enuncia licitude e a seguir proclama a criminalidade”[27].
Tem-se, portanto, de adotar o que o Min. Marco Aurélio denomina uma interpretação “homenageante do devido processo legal, avesso, a mais não poder, às soluções que, embora práticas, resultem no desprezo à organicidade do Direito”[28].
Outrossim, não se pode olvidar, conforme já exposto, que a lei atual define o crime econômico como crime material, ou de resultado. Sua configuração exige que se defina a existência da infração econômica, com efetiva lesão ao bem jurídico tutelado.
O tipo penal cumpre, além da função fundamentadora do injusto, também uma função limitadora do âmbito penalmente relevante. Assim, tudo o que não corresponder a um determinado tipo de injusto será penalmente irrelevante.[29]
Assim, a manifestação definitiva da autoridade da Administração é indispensável para que se possa ter como configurado típicamente o crime econômico.
Garante a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LV, que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Infere-se, portanto, que é induvidoso o direito do agente econômico ao ser processado administrativamente por infração à ordem econômica, de ver respeitado os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.
Neste raciocínio, admitir a possibilidade de se propor a ação penal por crime econômico, sem que a autoridade administrativa competente tenha dito existente o próprio objeto do cometimento ilícito, é excluir o direito do agente de ter apurada na via própria a existência do ilícito econômico.
Sobretudo agora, que existe a possibilidade legal do agente realizar um acordo, colaborando com as investigações, antes da denúncia, tendo por efeito a extinção da punibilidade penal, é evidente que o acusado tem o direito de ter regularmente apurada a existência da infração econômica, e questionado sobre o interesse em realizar o acordo de leniência.
Aceitar, portanto, a tipicidade criminal, em análise, antes da decisão definitiva da autoridade administrativa, afirmando a existência da infração econômica é admitir a existência de um processo criminal como um verdadeiro instrumento de constrangimento ilegal do acusado, contrariando flagrantemente a garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa no processo administrativo.
É suprimir o direito de defesa, concernente ao processo administrativo, porque neste se inclui, induvidosamente, o direito de demonstrar a inexistência da infração econômica, perante o órgão competente, sem ser coagido pela ameaça de um processo criminal.
Além disso, concluído o procedimento administrativo, tem o agente econômico direito de discutir a sua decisão em Juízo.
Em nossa opinião, como a decisão administrativa proferida pelo CADE tem natureza de ato vinculado, pode o Poder Judiciário, inclusive, reavaliar o mérito da decisão.
Destarte, como nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser excluída da apreciação do Judiciário, é induvidoso o direito da pessoa processada de ter apreciada judicialmente as divergências que ela puder apurar com o órgão público competente.
Posta a questão em Juízo, tem-se então uma questão prejudicial, cujo deslinde deve ser aguardado pelo Juízo criminal.
Não se trata de simples formalidade processual, mas uma garantia da apuração da verdade real concernente à ocorrência do ilícito penal. Por isto mesmo Antonio Corrêa, com larga experiência na judicatura, ensina que se “a apuração da verdade real para convencimento do julgador depender da solução de uma questão jurídica, deve ser admitido que esta, precisamente a questão jurídica sem solução, é um obstáculo ao exercício da ação penal”[30].
É evidente que negar a precedência do Juízo cível implica violência ao direito do acusado, de ter deslindada ali a questão de saber se é, ou não, infrator econômico.
Também aqui não se trata de aplicar apenas os dispositivos do Código de Processo Penal. Trata-se de aplicar a Constituição Federal.