Resumo: O presente artigo busca demonstrar a diferenciação de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros no sistema constitucional vigente. Utiliza-se como ponto de partida análise das regras vigentes precedentemente ao advento do Código Civil Brasileiro de 2002, Lei nº 10.406/2002, bem como, posteriormente, na constância desse. A partir daí, suscita-se a discussão, traçando, assim, um debate quanto às mudanças aplicáveis ao direito sucessório dos companheiros, com foco total no artigo 1.790 da legislação referida, visivelmente discriminado no que tange ao dos cônjuges (artigo 1.829 da Lei em tela), culminando com abordagem acerca da declaração da inconstitucionalidade daquele pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no ano de 2017.
Palavras-chave: Direito sucessório. União estável. Sistema constitucional em vigor. Inconstitucionalidade.
Sumário: 1 INTRODUÇÃO. 2 UNIÃO ESTÁVEL COMO ENTIDADE FAMILIAR. 3 O DIREITO SUCESSÓRIO PRECEDENTE AO CÓDIGO CIVIL DE 2002. 3.1 Direitos sucessórios dos companheiros antes do CC/2002. 3.2 Direitos sucessórios dos cônjuges no Código Civil Brasileiro de 1916. 4 O DIREITO SUCESSÓRIO NA CONSTÂNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. 4.1 Direitos sucessórios dos cônjuges no Código Civil de 2002. 4.2 Direitos sucessórios dos companheiros no Código Civil de 2002 – comparação com as regras aplicáveis aos cônjuges. 5 A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. 6 CONCLUSÃO.
1. INTRODUÇÃO
A união de pessoas, fora do matrimônio, é antiga. No direito romano representava uma forma de união inferior ao casamento. No direito francês desconheciam-se seus efeitos jurídicos e a influência do direito canônico tendia a combatê-la. O Código Napoleônico, fonte inspiradora de diversas codificações, inclusive do Código Civil Brasileiro de 1.916, silenciou a respeito da matéria.
No Brasil, embora a união de pessoas sem casamento sempre tenha sido numerosa, não foi devidamente regulamentada pelo Código Civil de 1.916, pelo fato de os civilistas pátrios tradicionais compreenderem que se tratava de fenômeno estranho ao direito de família, gerando somente efeitos obrigacionais.
Até o advento da Constituição Federal Brasileira de 1.988 a família nascia exclusivamente do casamento solene e formal. Apenas eram reconhecidos direitos sucessórios ao cônjuge supérstite. As relações extramatrimoniais, antes denominadas concubinato, somente eram referidas na Lei para afastar direitos.
Para fins do presente trabalho interessa a sucessão sob o ponto de vista estrito, ou seja, transferência do patrimônio deixado por alguém em razão do evento morte.
O progressivo número de pessoas que mantinham relações sem formalização do casamento e a crescente aceitação na sociedade resultou na legitimação de tais uniões pela Carta Constitucional, que passou a denominá-las de união estável, garantindo-lhes a proteção do Estado.
A primeira Lei atinente aos direitos sucessórios dos companheiros, sob número 8.971/94, surgiu seis anos após a promulgação da Constituição Federal de 1.988 (CF/88). Dispunha a respeito do direito a alimentos e à sucessão. Posteriormente foi editada a Lei nº 9.278/96, regulando o § 3º do artigo 226 da Carta Constitucional. Referidas Leis conferiam aos companheiros praticamente os mesmos direitos que eram conferidos aos cônjuges pelo Código Civil da época.
Com a vigência do Código Civil Brasileiro de 2.002, a partir de 10.01.2003, foram introduzidas relevantes inovações pelo legislador no que se refere ao direito sucessório entre os companheiros. À evidência, em prejuízo desses, se cotejadas com aquelas pertinentes ao dos cônjuges. Dessa forma, desde então, travou-se intensa mobilização em prol do reconhecimento dos mesmos benefícios para aqueles.
No ano de 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF), em julgamento dos Recursos Extraordinários números 878694/MG, o qual tratava de união de casal heteroafetivo, e do 646721/RS, que abordava sucessão em uma relação homoafetiva, declarou o seguinte: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a diferenciação de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no artigo 1.829 do Código Civil.”.1
Assim sendo, a escolha do tema em tela para o presente artigo tem como ponto culminante a abordagem da declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, antes citada, a despeito de eventuais benefícios e prejuízos até então aplicáveis ao direito sucessório na união estável em cotejo ao casamento, não pretendendo quaisquer tipos de posições tendenciosas ou preconceituosas sobre o assunto exposto e analisado.
Começa-se pesquisando como o direito sucessório dos companheiros e dos cônjuges estava disposto no ordenamento pátrio precedente ao advento do Código Civil Brasileiro de 2002 (Lei nº 10.406/2002). Num segundo momento, são abordadas as regras aplicáveis na forma vigente na legislação referida, tecendo-se as devidas comparações pertinentes aos avanços e retrocessos no que concerne aos companheiros. Para finalizar, aborda-se a declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, no ano de 2017, atinente à diferenciação de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros.
Evidentemente que a discussão sobre o assunto não se esgotará, entretanto, tem-se por escopo induzir aqueles que, de alguma forma, tomarem conhecimento deste trabalho, a uma grande reflexão sobre a matéria em tela.
2. UNIÃO ESTÁVEL COMO ENTIDADE FAMILIAR
A união estável, no Código Civil Brasileiro de 2002, está disciplinada nos artigos 1.723 a 1.727. Por sua vez, o direito sucessório respectivo, estampado no 1.790.
Para melhor compreensão, na sequência são transcritos, inicialmente, os primeiros citados:
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
§ 1o A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.
§ 2o As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável.
Art. 1.724. As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.
Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.
Art. 1.726. A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil.
Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato2. […]
Por seu turno, a Constituição Federal Brasileira de 1988, acerca do tema, dispõe em seu artigo 226, § 3º:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[...]
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento3.
Como se percebe, a união estável configurada na convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família, entre pessoas não impedidas de casar, para efeito de proteção do Estado, foi reconhecida como entidade familiar.
Acrescente-se que, conforme ensinamentos de Márcio André Lopes Cavalcante em comentário de julgamento acerca da Súmula número 382 do Supremo Tribunal Federal: “O que a súmula quer dizer: a vida em comum sob o mesmo teto, também chamada de coabitação, não é indispensável à caracterização da união estável.”4.
As redações dos textos legais fazem menção à convivência entre homem e mulher, entretanto, atualmente, há refazer a leitura no sentido de ser possível entre pessoas do mesmo sexo.
Conforme ensina Flávio Tartuce:
“No julgamento da ADPF 132/RJ e da ADI 4.277/DF, em 5 de maio de 2011, o STF entendeu pela aplicação, por analogia, de todas as regras da união estável heteroafetiva para a união estável homoafetiva. […] Como a decisão tem efeito vinculante e erga ommnes, não se pode admitir outra forma de interpretação que não seja o enquadramento da união homoafetiva como família, com a incidência dos mesmos dispositivos legais relativos à união estável, aqui estudados.”5.
Prosseguindo, temos que a discriminação histórica no que tange às opções sexuais também é objeto de estudo e repúdio pelos estudiosos dos direitos humanos, sobretudo atendo-se a princípios constitucionais e internacionais pertinentes, sendo que, para essa ocasião, é importante a lição que segue, de Paulo Henrique Gonçalves Portela:
Na atualidade, encontra-se também difundida a visão de que os direitos humanos se fundam no reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da espécie humana, entendidos como iguais em sua essência, não obstante qualquer peculiaridade física, mental ou intelectual ou qualquer outro aspecto de sua existência. […]. Uma das principais características dos direitos humanos é a universalidade. Nesse sentido, os direitos humanos referem-se a todos os membros da espécie humana, sem distinção de qualquer espécie, seja de sexo, raça, cor, origem étnica, nacional ou social, nacionalidade, idade, religião, orientação sexual ou qualquer outra condição6.
3 O DIREITO SUCESSÓRIO PRECEDENTE AO CÓDIGO CIVIL DE 2002
3.1 Direitos sucessórios dos companheiros antes do CC/2002
A sucessão do companheiro não constava do Código Civil de 1916. Entretanto, como decorrência dos novos mandamentos constitucionais insculpidos no § 3º do artigo 226 da Constituição Federal de 1988, foram editadas leis especiais garantidoras daqueles direitos. No que tange à união estável, surgiram as de números 8.971/94 e 9.278/96, dando aos companheiros direitos à meação e herança, ao usufruto vidual e ao direito real de habitação, dentre outros.
De acordo com as lições de Cristiano Chaves de Farias e de Nelson Rosenvald:
Na sequência do Texto Constitucional, foi editada a Lei nº 8.971/94, que veio a disciplinar o direito dos companheiros aos alimentos e à sucessão, impondo como requisitos para a configuração da união estável que os companheiros fossem solteiros, divorciados ou viúvos e tivessem convivência mínima de cinco anos ou a existência de prole. Já a Lei nº 9.278/96, também regulando a união estável, mas não ab-rogando a lei anterior, extirpou os requisitos acima mencionados, passando a considerar a união estável como a entidade familiar de convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família, afastando, de uma vez por todas, a exigência temporal. Confirmou-se a produção de efeitos sucessórios, inclusive o direito real de habitação e o usufruto vidual7.
Márcio André Lopes Cavalcante, por seu turno, em comentários ao REsp 1.124.85g-MG, STJ, 2ª secção, julgado em 26/11/2014 (info 556), vai adiante, tece abordagem distinguindo os direitos dos companheiros precedentemente à Lei nº 9.278/96 e também após essa, citando exemplo que torna cristalino o tema, conforme sequência:
ANTES da Lei 9.278/96, quando chegava ao fim uma união estável, cada companheiro somente teria direito aos bens sobre os quais contribuiu para a formação do patrimônio comum. Não havia presunção legal de esforço comum para a partilha de bens. Ao término do relacionamento, os bens amealhados no período eram divididos proporcionalmente ao esforço comprovado, direto ou indireto, de cada convivente. Ainda vigorava, em parte, o raciocínio da súmula 380 do STF quanto à necessidade de provar o esforço comum.
DEPOIS da Lei 9.278/96, foi criada uma presunção legal de comunhão dos bens adquiridos a título oneroso durante a união estável. Quando há a dissolução da união estável, para que o(a) companheiro(a) tenha direito aos bens adquiridos durante a relação, ele(a) não precisará provar que contribuiu para a aquisição. Com a edição desta, os bens a partir de então adquiridos por pessoas em união estável passaram a pertencer a ambos em meação, salvo se houver estipulação em sentido contrário ou se a aquisição patrimonial decorrer do produto de bens anteriores ao início da união. Ficou superada a súmula 380 do STF.
Imagine que uma União estável tenha começado em 1990 e terminado em 2000. Somente o homem trabalhava. Em 1995, ele comprou dois apartamentos. Em 1999, adquiriu uma casa e um sítio. Em 2000, chegou ao fim a união. As regras da Lei 9.278!96 poderão ser aplicadas para todos os bens adquiridos durante a união (dois apartamentos, uma casa e um sítio)? Presume-se que a mulher tenha direito aos dois apartamentos, à casa e ao sítio? NÃO. Os bens adquiridos anteriormente à Lei 9.278/96 têm a propriedade - e, consequentemente, a partilha ao fim da união - disciplinada pelo ordenamento jurídico vigente quando da respectiva aquisição. Assim, tem-se o seguinte:
• Quanto aos bens adquiridos antes da Lei 9.278/96 (dois apartamentos): aplica-se o regime da prova do esforço comum (Súmula 380 do STF).
• Quanto aos bens adquiridos após a Lei 9.278/96 (casa e sítio): aplica-se a presunção legal de que a' mulher tem direito à meação dos bens, independentemente de prova do esforço comum8.
A primeira Lei atinente aos direitos sucessórios dos companheiros, sob número 8.971/94, surgiu seis anos após a promulgação da Constituição Federal de 1.988 (CF/88). Dispunha a respeito do direito a alimentos e à sucessão. Posteriormente foi editada a Lei nº 9.278/96, regulando o § 3º do artigo 226 da Carta Constitucional. Referidas Leis conferiam aos companheiros praticamente os mesmos direitos que eram conferidos aos cônjuges pelo Código Civil da época.
3.2 Direitos sucessórios dos cônjuges no Código Civil Brasileiro de 1916
Tecidas considerações como contextualização, conceitos e abordagem acerca da existência, forma e aplicação do direito sucessório aos companheiros precedentemente ao advento do Código Civil Brasileiro de 2002, nesta parte abordar-se-ão as regras aplicáveis aos cônjuges, de modo a que na parte final, quando da análise de eventuais diferenças e retrocessos dos direitos daqueles em relação aos desses, bem como da declaração da inconstitucionalidade do artigo 1.790 da legislação referida, existam dados suficientes para o cotejo.
No que tange à sucessão de cônjuge, relativamente ao Código Civil Brasileiro de 1916, denotam-se de relevante importância os respectivos artigos 1.603, 1.611, 1.721 e 1.725, transcritos na sequência:
Art. 1.603. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - Aos descendentes.
II - Aos ascendentes.
III - Ao cônjuge sobrevivente.
IV - Aos colaterais.
V - Aos Estados, ao Distrito Federal ou a União.
V - aos Municípios, ao Distrito Federal ou à União.
Art. 1.611 - A falta de descendentes ou ascedentes será deferida a sucessão ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estava dissolvida a sociedade conjugal.
§ 1º O cônjuge viúvo se o regime de bens do casamento não era o da comunhão universal, terá direito, enquanto durar a viuvez, ao usufruto da quarta parte dos bens do cônjuge falecido, se houver filho dêste ou do casal, e à metade se não houver filhos embora sobrevivam ascendentes do "de cujus".
§ 2º Ao cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da comunhão universal, enquanto viver e permanecer viúvo será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habilitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem daquela natureza a inventariar.
Art. 1.721. O testador que tiver descendente ou ascendente sucessível, não poderá dispor de mais da metade de seus bens; a outra pertencerá de pleno direito ao descendente e, em sua falta, ao ascendente, dos quais constitui a legítima, segundo o disposto neste Código (arts. 1.603 a 1.619 e 1.723).
Art. 1.725. Para excluir da sucessão os parentes colaterais, basta que o testador disponha do seu patrimônio, sem os contemplar.
Conforme lição de Euclides de Oliveira e Sebastião Amorim relativamente à ordem sucessória, eram classes diferenciadas de herdeiros que se excluíam entre si em face da prioridade de chamamento estabelecida na lei, de modo que, chamados a suceder os beneficiários de determinada, ficavam automaticamente afastados os das subsequentes9.
Prosseguindo, da leitura dos dispositivos legais números 1.721 e 1.725, tem-se que, no período anterior ao Código Civil de 2002, somente os descendentes e os ascendentes eram herdeiros necessários. O cônjuge era herdeiro facultativo.
Ainda, conforme se extrai dos §§ 1º e 2º do artigo 1.611 do Código Civil Brasileiro de 1916, ao cônjuge supérstite eram assegurados, dentro das condições neles estabelecidas, usufruto vidual e ao direito real de habitação.