Diante da decisão do Supremo Tribunal Federal, que aplicou ao senador Aécio Neves a medida cautelar de recolhimento domiciliar noturno, tem se discutido se tal restrição equivaleria a uma prisão e, consequentemente, se seria ou não necessário que a questão fosse decidida pelo Senado Federal. O objeto do presente artigo não é este.
Será analisada outra medida imposta ao Senador: a suspensão das funções parlamentares. Aliás, não é a primeira vez que medida cautelar dessa natureza é imposta a membros do Congresso Nacional, no curso da interminável Operação Lava Jato.
O Código de Processo Penal, com a reforma promovida pela Lei nº 12.403/2011 passou a prever, no inciso VI do caput do art. 319, entre as medidas cautelares alternativas à prisão, a “suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais”.[1]
Se a finalidade da medida é evitar a prática de novas infrações penais. Isto é, impedir que algum funcionário público investigado por crime cometido no exercício de sua função ou em razão dela possa continuar a se valer ilegalmente da mesma função para reiteração delitiva. Assim, em princípio, fica excluída sua aplicação no caso de acusados que estejam sendo investigados ou já tenham sido denunciados por crimes que não guardem relação com a função pública que exerçam porque, nesse caso, a função não contribuiria em nada para possibilitar a reiteração criminosa. Seu campo mais comum, portanto, será o dos crimes contra a administração pública. Por exemplo, poder-se-á suspender do exercício da função de um fiscal corrupto que exija dinheiro para não autuar empresas por ele fiscalizadas. Mas não se poderá suspende suas atividades, se o mesmo fiscal praticar, por exemplo, lesão corporal grave em uma briga de bar.
Todavia, não está claro, no dispositivo legal, que tipo de função pública poderá ser suspensa no curso do processo penal. Diante da pobreza do texto legislativo poderá haver dúvida sobre a possibilidade de a medida do inc. VI do caput do art. 319 ser imposta no caso de funções públicas decorrentes de mandatos eletivos.
Iniciamos o encaminhamento da resposta pelo direito estrangeiro em que há exemplos de expressa vedação de suspensão de mandato eletivo pelo juiz criminal.
O Código de Processo Penal italiano, de 1988, expressamente prevê que a medida de suspensão do exercício de função pública “não se aplica aos ofícios eletivos decorrentes de direta investidura popular”.[2]
Analisando a mesma questão no direito português, o Tribunal Constitucional, com fundamentos igualmente aplicáveis à situação do direito pátrio, negou tal possibilidade, observando que a lógica da situação legislativa “está em não permitir que um mandato emergente do mandato popular seja suspenso ou perdido senão a título de pena, em virtude de sentença condenatória definitiva por crimes praticados no exercício de funções. Na realidade, dificilmente seria congruente com a proeminência do princípio democrático que o exercício de um mandato popular pudesse ser suspenso a título de medida cautelar ou preventiva em processo penal, ainda mais antes mesmo da pronúncia definitiva da prática de um crime”.[3]
Na Espanha, semelhante é o posicionamento de Cuellar Serrano, ao analisar a possibilidade de suspensão do exercício de cargos ou funções públicas, de pessoa que integre ou se relacione com grupos armados ou indivíduos terroristas ou rebeldes, sem distinguir entre distintos cargos e funções públicas: “a soberania nacional reside no povo espanhol, a teor do art. 1.2 da C.E., e a restrição dos direitos políticos dos representantes dos eleitores dificilmente se justifica, a vista do direito da presunção de inocência e do ponto de vista da legitimidade democrática, antes que se profira sentença condenatória por delito que leve à pena acessória de suspensão do cargo público. De outra parte, os benefícios que a medida oferece – evitar a utilização das instituições democráticas em interesse dos grupos terroristas – são, sem dúvida, menores que os prejuízos que derivam da degradação do direito à presunção de inocência e a limitação, ainda que seja em volume muito pequeno, do princípio de democracia representativa”.[4]
Some-se a isto que, nos códigos italiano e português, há limites temporais fixados em lei para a duração da suspensão da função pública. Já no caso brasileiro, em que a lei não estabelece o prazo máximo de duração da medida, caso se interprete o conceito de função pública, de forma ampla, a abranger as funções decorrentes de mandatos eletivos, a suspensão da função poderá se prestar, facilmente, como um mecanismo para uma cassação, de fato, do mandato eletivo.
Não nos convence o argumento contrário de Andrey Borges Mendonça, no sentido de que, “se é possível a medida mais gravosa (prisão preventiva), não há restrição para aplicação de medidas menos graves (suspensão da função pública). O que não se pode é declarar a perda do cargo do Deputado ou Senador, pois isso depende de um procedimento constitucionalmente previsto”.[5] Primeiro, porque a prisão cautelar de parlamentar somente é possível no caso de prisão em flagrante delito e, mesmo assim, é necessária que a Câmara dos Deputados ou do Senado, “pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão” (CR, art. 53, § 2º). Não cabe, pois, a um juiz, decretar uma prisão preventiva de deputado federal ou senador.
Mas, ainda que se admita tal possibilidade, a partir da amplíssima interpretação que o Supremo Tribunal Federal passou a dar a tal norma constitucional, desde a prisão “em flagrante” do senador Delcídio do Amaral, é importante atentar para a circunstância de que, na prática, suspender, sem limitação temporal, o exercício da função do deputado federal ou senador, principalmente no período final do mandato, significará, de fato, determinar a perda do cargo, com base em cognição sumária de órgão do Poder Judiciário, e sem observar o regramento constitucional.
Além disso, no direito comparado, há previsão de que a medida de suspensão da função pública, mesmo que não decorrente de mandato eletivo, somente pode ser aplicada nos casos em que da futura condenação puder resultar a interdição dos mesmos direitos como penas acessórias ou efeito da condenação.[6] Embora não se possa aplicar a medida cautelar com a finalidade de antecipação de pena, não há como negar a existência de uma relação de proporcionalidade entre a pena a ser aplicada e a medida cautelar que poderá ser imposta para assegurá-la, não sendo admissível uma medida cautelar mais gravosa que a pena que ela pretende assegurar.[7] Pode-se dizer, com Cordero que, “medida cautelar e quantificação da pena são termos correlativos”.[8] Na medida cautelar o acusado não deve pagar um preço que ele provavelmente não será chamado a pagar nem mesmo depois da condenação.[9]O acessório (cautelar) deve seguir o principal (condenação), não podendo impor uma interdição mais gravosa que a provável pena. Assim sendo, realmente, não é possível admitir uma medida cautelar de suspensão da função pública num processo que tenha por objeto um crime que, em caso de condenação, não terá como efeito secundário, a possibilidade de suspensão ou perda do cargo.[10] Por exemplo, o crime de “emprego irregular de verbas ou rendas públicas” é apenado com detenção de 1 a 3 meses, ou multa (CP, art. 315). Não tem sentido, neste caso, aplicar ao funcionário público, no curso do processo, a medida de suspensão da função pública, se nem ao final ele corre o risco de perder o cargo.[11]
Em suma, no processo penal brasileiro, mesmo no silêncio da lei, a questão inicial, merece uma resposta negativa: o Poder Judiciário não pode suspender o exercício de um mandato eletivo.
Notas
[1] Medida semelhante já era encontrada na Lei 11.343/2006, cujo art. 56, § 1.º, prevê a possibilidade de afastamento cautelar do funcionário público de suas atividades, no caso dos crimes dos artigos 33, caput, e § 1.º e 34 a 37 da mesma lei.
[2] CPP italiano, art. 289, comma 3.
[3] Fernando Gonçalves e Manuel João Alves, (A Prisão Preventiva e as Restantes Medidas de Coacção: A providência do Habeas Corpus em Virtude de Prisão Ilegal. Coimbra: Almedina, 2004, p. 123) transcrevem o acórdão do Tribunal Constitucional de Portugal, nº 41, de 26 de janeiro, Processo nº 481/97, que decidiu “interpretar a norma constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 199.º do Código de Processo Penal como não abrangendo os titulares de cargos políticos”.
[4] Proporcionalidad y Derechos … cit., p. 222.
[5] O argumento é de Andrey Borges de Mendonça, Prisão e outras Medidas Cautelares Pessoais, Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2011, p. 442.
[6] Nesse sentido, o § 132a da StPO alemã prevê que: “Se existirem fundados motivos para supor que virá a ser aplicada uma inabilitação (§ 70 do Código Penal), o juiz pode decidir a proibição provisória do exercício de profissão, de um ramo da profissão, de ofício ou de um ramo de ofício”. No mesmo sentido manifesta-se Manuel Lopes Maia Gonçalves (Código de Processo Penal Anotado. Coimbra: Almedina, 2005.p. 429), em relação ao processo penal português, embora não haja regra expressa. Entre nós, idêntico posicionamento é defendido, em relação à medida do inc. VI do caput do art. 319 do CPP, por Marcellus Polastri Lima, Da Prisão e da Liberdade Provisória (e demais medidas cautelares substitutivas da prisão) Na Reforma de 2011 do Código de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 160.
[7] Para referências doutrinárias e legais sobre o tema, cf.: Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró, A Prisão preventiva e o princípio da proporcionalidade. in: Lima, Marcellus Polastri e Ribeiro, Bruno de Morais (Orgs.) Estudos Criminais em Homenagem a Weber Martins Batista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 159-185.
[8] Franco Cordero, Procedura penale, 5 ed. Milano: Giuffrè, 2000 cit., p. 475. No mesmo sentido, Vittorio Grevi (Misure cautelari, in CONSO, Giovanni; GREVI, Vittorio (Orgs.). Profili del nuovo Codice di Procedura Penale. Padova: Cedam, 1996, p. 299) analisando o princípio da proporcionalidade, refere-se a uma “congruência (sob o perfil da deminutio libertatis que implica ao imputado) em ração à gravidade do fato imputado e, portanto, ao quantum de pena que, em concreto (a luz do conjunto da situação processual) possa ser lhe aplicada”.
[9] Enio Zappalà, Le misure cautelari, in D. Siracusano; A. Galati; G. Tranchina; E. Zappalà, Diritto processuale penale. 2. ed. Milano: Giuffrè, 1996, v. 1, p. 447.
[10] O CP prevê, no art. 92, caput, I, como efeito da condenação penal, “a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo: a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública; b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos”.
[11] Isso não impede, porém, que sejam tomadas as medidas cabíveis no âmbito administrativo.