Resumo: O presente artigo trata sobre a questão da apuração de crimes de menor potencial ofensivo enquanto atividade exclusiva de Polícia Judiciária. O tema apresenta-se oportuno em razão da recente decisão proferida no âmbito do Supremo Tribunal Federal pelo Ministro Gilmar Mendes no RE 1050631 SE que reconheceu a inexistência de nulidade na hipótese de termo circunstanciado elaborado pela Polícia Militar do Estado do Sergipe. Nesse sentido, vislumbrou-se que a expressão “Autoridade Policial”, contida no artigo 69 da Lei n.º 9.099/95 não pode ser interpretada de forma restritiva. Entendeu-se também o termo circunstanciado uma peça de natureza meramente informativa e não investigativa, em substituição ao Inquérito Policial.
Palavras-chave: Persecução Penal, Processo Penal, Polícia Judiciária, Termo Circunstanciado, Lei n.º 9.099/95.
1. A quem compete a elaboração de termo circunstanciado?
Trata-se de pergunta objeto de calorosos debates no meio jurídico que ganhou novo ânimo com o julgamento do RE 1050631 SE pelo Ministro Gilmar Mendes, ocorrido no dia 22 de setembro de 2017.
O referido recurso especial foi interposto pela Defensoria Pública do Estado do Sergipe em razão de elaboração de termo circunstanciado pela Polícia Militar. Argumentou-se que ocorreu violação ao artigo 144, §§ 4.º e 5.º da Constituição Federal de 1988, na medida em que o termo circunstanciado é procedimento administrativo de natureza investigatória, portanto, de atribuição exclusiva das polícias civis.
Contudo, entendeu o Ministro Gilmar Mendes que o termo circunstanciado substituiu o inquérito policial e o auto de prisão em flagrante delito no âmbito do procedimento sumaríssimo, orientado pelos critérios da informalidade, economia processual e celeridade, conforme a Lei n.º 9.099/95.
Assim, o termo circunstanciado relata de forma sumária as circunstâncias do fato, de modo a possibilitar a individualização da conduta, bem como a indicação das provas. Nesse sentido, a peça assemelhar-se-ia à notitia criminis e poderia ser elaborada por qualquer do povo, após o conhecimento de uma infração penal, nos termos do artigo 5.º, § 3.º do Código de Processo Penal.
A respeito do artigo 69 da Lei n.º 9.099/95, em relação à expressão “autoridade policial”, entendeu o Ministro Gilmar Mendes que, nesse caso, estende-se aos órgãos de segurança pública em geral, pois, como já dito, a peça não possui natureza investigativa.
2. Atividade exclusiva de Polícia Judiciária
No Brasil, as atividades preventiva e repressiva são desempenhadas por órgãos policiais distintos. Sendo a segurança pública atividade de atuação predominante dos estados-membros da federação, o debate sobre as atribuições dos órgãos policiais gravita em torno das Polícias Civis e Militares.
Nos termos do § 4.º do artigo 144 da CF de 88, às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
Por sua vez, o § 5.º daquele dispositivo estabelece que às polícias militares cabem as atividades de polícia ostensiva e preservação da ordem pública. Em relação aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil. Como mencionado, às polícias militares e corpos de bombeiros militares realizam a apuração de crimes somente aqueles previstos no Código Penal Militar2.
A apuração a que se refere o § 4.º do artigo 144 da CF de 88 se dá, em regra, pelo inquérito policial. Consiste em procedimento administrativo3, consistente4 na realização e documentação de atos investigatórios com a finalidade de se apurar autoria e materialidade de fatos previstos como crimes.
Em que pese as críticas, sobretudo no que se refere à sua dispensabilidade, é certo que a grande maioria das ações penais propostas pelo Ministério Público são precedidas pelo inquérito policial. Na prática, dificilmente o órgão ministerial possui, de imediato, elementos de prova suficientes para oferecimento da denúncia5.
Por outro lado, reconhece-se o inquérito policial ter função garantidora de direitos, na medida em que constitui uma barreira para ações penais temerárias6. Nesse sentido, exige-se do delegado de polícia a condição de bacharel em Direito, de modo a fazer a devida verificação da conduta do averiguado, das circunstâncias do fato, assim como pertinência e legalidade das provas colhidas.
Diante do crescimento do problema carcerário brasileiro, sobretudo em relação à incapacidade estatal de promover a ressocialização de condenados e da absorção de população no sistema prisional7, cresceu a demanda sobre a aplicação de medidas despenalizadoras em matéria penal8.
Assim, a CF de 88, no inciso I do artigo 98 estabeleceu a criação dos juizados especiais para o julgamento das infrações penais de menor potencial ofensivo, isto é, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos. O dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei n.º 9.099/95 que introduziu ao sistema processual penal brasileiro o rito sumaríssimo.
De fato, a Lei n.º 9.099/95 trouxe uma série de inovações, sobretudo no que se refere à mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal, a possibilidade de composição civil de danos, assim como outros institutos desburocratizantes.
Entre eles encontra-se o termo circunstanciado, peça informativa que dá início à persecução penal de crimes de menor potencial ofensivo e contravenções penais. Diferentemente do inquérito policial e do auto de prisão em flagrante delito, o termo circunstanciado cumpre a função de apurar de autoria e materialidade de crimes de menor potencial ofensivo e contravenções penais sem o rigorismo formal daqueles.
Não se trata, portanto, de mera peça informativa encaminhada diretamente ao juiz de direito. O menor rigor na documentação dos atos de polícia judiciária não significa menor rigor na verificação da tipicidade do fato, a análise da conduta do autor, assim como a legalidade e pertinência das provas colhidas. Tais providências, diga-se, são regulamentadas, sobretudo, pelo artigo 6.º do Código de Processo Penal, cuja aplicação é subsidiária.
Sendo assim, o termo circunstanciado necessariamente deverá ser presidido por delegado de polícia, sob pena de desvincular-se do modelo pré-processual brasileiro, cuja finalidade precípua é a garantia de direitos e garantias fundamentais do averiguado.
Diga-se, o comando do § 3.º do artigo 5.º do CPP estabelece qualquer do povo comunicar fato criminoso à autoridade policial que verificará a procedência das informações e instaurará inquérito policial. Portanto, não se confere a prerrogativa de qualquer do povo presidir termo circunstanciado e encaminhá-lo diretamente ao Poder Judiciário.
Aliás, admitir que qualquer do povo poderia elaborar termo circunstanciado faria letra morta o parágrafo único do artigo 69 da Lei n.º 9.099/95 que admite a prisão em flagrante delito caso o autor se recuse a prestar compromisso de comparecer em juízo.
Por outro lado, qual seria a solução se da apuração de contravenção penal ou crime de menor potencial ofensivo exsurgissem fatos mais graves? Restariam impunes?
3. Estudo de caso
No dia 22 de agosto de 2017, policiais militares da 3.ª Cia do 30 BPM compareceram no 1.º Distrito Policial de Mauá e apresentaram C. à autoridade policial por ter sido surpreendido na posse de um telefone celular produto de roubo.
Ainda que C. fosse maior de idade compareceu naquela Distrital P., que é mãe daquele.
Por se tratar de objeto material de roubo, foi convocada A., vítima do crime antecedente, para realizar o reconhecimento pessoal de C. A diligência se deu nos termos do artigo 226 do CPP, sendo que restou infrutífera.
C. foi entrevistado pela autoridade policial que disse ter recebido o telefone celular de P., sua mãe. P. por sua vez, disse ter adquirido o aparelho de R., pessoa conhecida por ser dada ao uso de drogas, assim como havia sido vista no bairro onde residem C. e P. portando um simulacro de arma de fogo. P. disse ter pago o valor de R$ 100,00 (cem reais) pelo telefone celular. P. admitiu que assumiu o risco de adquirir coisa produto de ilícito.
P., em tese, incorreu no crime de receptação culposa, previsto no § 3.º do artigo 180 do Código Penal, cuja pena é de detenção de um mês a um ano, ou multa, ou ambas as penas. A receptação culposa é, portanto, crime de menor potencial ofensivo, portanto, processada no âmbito dos Juizados Especiais Criminais.
C. foi formalmente ouvido e disse ter ciência de que o telefone celular que portava tratava-se de produto de roubo. Disse que sua mãe, P., também sabia daquilo. Isso porque o próprio R. disse a P. ter roubado o aparelho.
Foram providenciadas pesquisas junto ao acervo fotográfico do 1.º DP de Mauá, ocasião em que R. foi identificado pela vítima A. que também reconheceu L.
R. e L. haviam sido presos em flagrante delito por roubo dias atrás, sendo que o Poder Judiciário da Comarca de Mauá havia decretado a prisão preventiva daqueles.
Assim, P. e C. foram indiciados por receptação simples, nas modalidades adquirir e receber. R. e L., por sua vez, foram indiciados por roubo circunstanciado, na forma do artigo 157, § 2.º, II.
4. Conclusões
O termo circunstanciado trata-se de peça investigativa, na medida em que são realizados atos de polícia judiciária, tais como a oitiva de testemunhas, da vítima e do autor. O termo circunstanciado, igualmente, admite todos os meios de prova admitidos pelo direito processual penal brasileiro, tais como a prova pericial, o reconhecimento de pessoas e coisas. A realização de atos de polícia judiciária poderá levar à existência e a conclusão sobre autoria de fato criminoso, ainda que de menor potencial ofensivo ou contravenção penal.
Como dito anteriormente, o termo circunstanciado distingue-se do inquérito policial e do auto de prisão em flagrante delito na medida em que há menor rigorismo formal na documentação de atos de polícia judiciária.
Não se trata, portanto, de mero documento que relata fato de menor complexidade ao Poder Judiciário, na medida em que permanece a análise da conduta, tipicidade, pertinência e legalidade das provas.
Do estudo de caso abordado neste trabalho, verificou-se que a adequada apuração dos fatos por meio de atos de polícia judiciária, presididos por delegado de polícia levou ao esclarecimento de dois crimes de receptação e um de roubo. A apuração apressada, sem o conhecimento técnico necessário, conduziria, necessariamente, à impunidade de crimes.
Confundir a menor lesão a bens jurídicos causada pelas contravenções penais e crimes de menor potencial ofensivo e menor rigorismo na documentação de atos de polícia judiciária não é motivação idônea para se concluir que a elaboração de termo circunstanciado não é prerrogativa exclusiva das polícias judiciárias.
Ademais, ainda que o rito previsto na Lei n.º 9.099/95 preveja medidas despenalizadoras, a mitigação da obrigatoriedade da ação penal e a composição civil de danos, a elaboração de termo circunstanciado não perde a natureza de ato estatal de natureza coercitiva.
Argumentar que qualquer do povo poderia elaborar um termo circunstanciado deslegitima as instituições e, em última análise, coloca em risco o próprio estado democrático de direito.
Em realidade, a solução adequada seria dar meios às polícias civis de desempenharem suas funções institucionais satisfatoriamente. Sabe-se que aquelas sofrem com a escassez de recursos, sobretudo humanos. Por outro lado, em alguns estados-membros da federação, o efetivo da polícia militar rivaliza, em termos de números, com as próprias Forças Armadas.
A função das polícias militares é de primordial importância. O policiamento preventivo é, com efeito, a primeira linha de defesa da sociedade contra a marginalidade que assola as grandes cidades brasileiras. Todavia, considerando o modelo adotado pelo Brasil, o planejamento do efetivo das duas polícias deveria prever o óbvio: as atividades preventiva e repressiva se complementam. O problema, portanto, é estrutural.
Assim, qualquer lei ou ato normativo no sentido de atribuir atos de polícia judiciária, tais como o termo circunstanciado, a outros órgãos que não sejam as polícias civis estaduais ou a Polícia Federal violam frontalmente a CF de 88, em seu artigo 144, § 4.º. De fato, as polícias militares e bombeiros militares se valem do inquérito policial militar para a apuração de crimes militares. Todavia, o direito castrense possui regime jurídico distinto, portanto, o argumento de que poderiam praticar atos de polícia judiciária em relação a civis, como o termo circunstanciado, não convence.
No que se refere à expressão “Autoridade Policial”, contida no artigo 69 da Lei n.º 9.099/95 refere-se ao delegado de polícia. A razão disso é evidente: a CF de 88, ao ser promulgada recepcionou o § 3.º do artigo 5.º do CPP que estabelece a autoridade policial ser o agente público com a atribuição de instaurar inquérito policial. Igualmente, recepcionou o artigo 6.º do mesmo diploma legal que estabelece a atribuição de presidir atos de polícia judiciária. Em realidade, o artigo 69 da Lei n.º 9.099/95 ampliou as atribuições do delegado de polícia para presidir procedimento menos rigoroso sob o ponto de vista da documentação de atos de polícia judiciária, mas igualmente complexo no que se refere à elaboração daqueles.
5. Bibliografia
GONÇALVES, VICTOR EDUARDO RIOS. Direito Penal Parte Especial Esquematizado – 7.ª edição. São Paulo: Editora Saraiva.
LOPES JÚNIOR, AURY. Direito Processual Penal – 13.ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2016.
MACHADO, ANTÔNIO ALBERTO – 4.ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2012.
PACELLI, EUGÊNIO. Curso de Processo Penal – 21.ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2017.
PESSI, DIEGO; SOUZA, LEONARDO GIARDIN. Bandidolatria e Democídio: ensaio sobre o garantismo penal e criminalidade no Brasil – 2.ª edição. São Luis: Livraria Resistência Cultural Editora, 2017.
RANGEL, PAULO. Direito Processual Penal – 21.ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2017.
Notas
2 Segundo Aury Lopes Júnior (2016, p. 122): “Já o policiamento preventivo ou ostensivo é levado a cabo pelas Polícias Militares dos estados, que não possuem atribuição (como regra) para realizar a investigação preliminar. Em se tratando de inquérito policial, está ele a cargo da polícia judiciária (não cabendo à polícia militar realiza-lo, salvo nos crimes militares definidos no Código Penal Militar)”.
3 De acordo com Paulo Rangel (2013, p. 74), a respeito da natureza jurídica do inquérito policial (2013, p. 74): “Assim, sem muitas delongas, sua natureza jurídica é de um procedimento de índole meramente administrativa, de caráter informativo, preparatório da ação penal.”.
4 Como recorda Paulo Rangel (2013, p. 71), a legislação brasileira não define de forma clara o inquérito policial, havendo conceito aplicável oriundo do direito português, conforme o artigo 262 do Código de Processo Penal Português: “O inquérito policial compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.”.
5 Nesse sentido, Antônio Alberto Machado (2012, p. 87): “Na imensa maioria dos casos, as ações penais são mesmo precedidas do procedimento investigatório que se realiza no âmbito do inquérito policial. Este é, na verdade, o instrumento mais utilizado para a investigação dos crimes, para a reunião dos elementos que compõem a justa causa e, portanto, para a preparação da futura ação penal a ser ajuizada pelo seu respectivo autor, o Ministério Público, no caso de ação pública, ou o particular, no caso da ação penal privada.”.
6 Nas palavras de Paulo Rangel (2013, p. 71) “O inquérito policial, em verdade, tem uma função garantidora. A investigação tem o nítido caráter de evitar a instauração de uma persecução penal infundada por parte do Ministério Público diante do fundamento do processo penal, que é a instrumentalidade e o Garantismo penal.”.
7 Ao comentar o relatório de pesquisa e reincidência do IPEA/2015, Diego Pessi aduz o seguinte: “Fosse o relatório um trabalho científico e não um panfleto ideológico, teria esclarecido que o país com a quarta maior população carcerária do mundo está entre os cinco mais populosos do planeta. Mais que isso: teria o dever de informar (como fez o jornalista Felipe Moura Brasil) que, em termos proporcionais (considerando o número de presos por 100 mil habitantes), o país figurava (à época), no mínimo, 34.º lugar na lista do Centro Internacional de Estudos Prisionais.”.
8 Na lição de Eugênio Pacelli (2017, p. 343): “Na realidade, o problema penitenciário e prisional não é uma característica dos países denominados periféricos ou em desenvolvimento. O drama causado pela superpopulação de encarcerados e pelas condições desumanas de cumprimento das penas demonstra o desencanto com as prometidas funções destinadas às sanções penais e a consequente falência de todo sistema punitivo de privação da liberdade.”.