Capa da publicação Caso Oracle vs. Google: leitura a partir de Wittgenstein
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Oracle vs. Google:

Uma leitura a partir de Wittgenstein

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18/01/2021 às 11:50
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O caso da justiça americana envolvendo a Oracle e a Google é um dos principais na discussão da propriedade intelectual sobre os programas de computador. No litígio, a Google foi acusada pela Oracle de ter utilizado parte do programa de sua autoria, o Java.

INTRODUÇÃO

O embate Oracle America, Inc. v. Google, Inc.[1] na justiça americana é um dos mais recentes na discussão da Propriedade Intelectual nos programas de computador. O caso coloca frente à frente dois gigantes da tecnologia. Eles discutem se partes da linguagem Java desenvolvida pela Sun Microsystems (comprada pela Oracle em 2010) pertenceriam a ela ou não. Do mesmo modo, debatem se pelo fato de esses trechos de programação serem essenciais para a “conversa” entre diferentes sistemas, eles seriam de domínio público e livres para serem utilizados por qualquer um.

Wittgenstein, em seu livro Investigações Filosóficas, apresenta o conceito de jogos de linguagem. De acordo com seu entendimento, a existência de uma linguagem privada – hermética ao contato com os demais – seria impossível. Isso porque a linguagem pertenceria a um sistema de regras – a um jogo de linguagem –, que só faria sentido se essas regras pudessem ser apreendidas por um número ilimitado de pessoas.

No caso analisado na presente pesquisa, a Oracle moveu ação judicial contra a Google alegando que esta teria se apropriado de trechos de linguagens de programação do Java – os APIs -, para o desenvolvimento de seu sistema Android. Em sendo assim, a Google teria infringido a Propriedade Intelectual da Oracle. A Google, em sua defesa, por outro lado, argumentou que os trechos de código desenvolvidos pela primeira não seriam passíveis de proteção por Copyright[2] por consistirem de trechos de programação essenciais para a comunicação entre diferentes sistemas, devendo, portanto, ser considerados como domínio público.

A ação se iniciou em 2010 e continua a correr, já tendo sido julgado por duas Cortes distritais e a Corte Federal do Nono Circuito. Tratar-se-á, assim, da discussão ocorrida entre 2012 e 2014, a qual corresponde ao primeiro julgamento da corte distrital da Califórnia e da Corte Federal do nono circuito, pois tratavam justamente se o objeto (os APIs) poderia ter alguém como dono ou não.

Desse modo, far-se-á primeiramente uma apresentação do conceito de Copyright e de alguns dos principais elementos da teoria de Wittgenstein como: os jogos de linguagem a e a impossibilidade de uma linguagem privada; e onde a linguagem de programação e os APIs se encaixariam nessa teoria. Logo em seguida, será feito um breve resumo da fase da ação entre Oracle e Google que vai de 2012 até 2014, com os principais argumentos utilizados pelas partes a respeito da possibilidade da proteção da linguagem Java por Copyright. Por fim, analisar-se-á se as ideias de Wittgenstein – pela impossibilidade de uma linguagem ser privada – poderiam ter sido utilizadas pela Google na fundamentação de sua defesa – no sentido de o código em discussão não poder ter um dono.


1. IMPOSSIBILIDADE DE UMA LINGUAGEM PRIVADA, LINGUAGEM DE PROGRAMAÇÃO E API: DEFINIÇÕES E CONCEITOS

Antes de tratar do caso em si, é necessário entender o conceito de Copyright e algumas das principais ideias de Wittgenstein, especialmente sua teoria dos jogos de linguagem e sua defesa pela impossibilidade de uma linguagem ser privada. Do mesmo modo, é necessário explicar o que é uma linguagem de programação e o que viriam a ser os APIs, os quais são o principal objeto de polêmica no caso Oracle vs. Google. Com a explanação desses conceitos será possível analisar o caso com maior precisão.

Copyright, de acordo com Marcos Wachowicz (2010, p. 02), seria um direito reservado desde a concessão do primeiro monopólio à indústria editorial e de comércio de livros, tratando-se esse do Copyright Act da Rainha Ana, de 1709. Discorre o autor que, em realidade, esta lei teria concedido um privilégio de reprodução e que isso teria consubstanciado a visão anglo-americana do Copyright, que nunca fora abandonada. Complementa Ascensão (1997, p. 04) que na base do Copyright estaria a materialidade do exemplar e o exclusivo da reprodução deste.

Assim, continua Wachowicz (2010, p. 02), o Copyright precederia historicamente o Direito de Autor, mas com este não se confundiria, pois o Copyright seria muito mais limitado aos direitos de exploração econômica de obras registradas. Concluindo sua argumentação, ele comenta que os países Europeu-continental e Latino-americanos adotaram o sistema de direito autoral criado pela Convenção de Berna (1886).

O Digital Millennium Copyricht Act (DMCA) americano, datado de 1998 é a legislação que regula o sistema de Copyright aplicado nos EUA. Em sua seção 102(a) ele define o que estaria sujeito à proteção por Copyright:

A proteção por Copyright subsiste, de acordo com esse título, em trabalhos autorais originais fixados em qualquer meio tangível de expressão, agora conhecidos ou posteriormente desenvolvidos, dos quais eles possam ser percebidos, reproduzidos ou de alguma outra forma comunicados, seja diretamente ou com o auxílio de uma máquina ou aparelho[3].

Em sua seção 102(b), o DMCA estabelece alguns casos em que a proteção por Copyright não se aplica – como por exemplo em procedimentos, processos, sistemas ou métodos de operação. Ver-se-á, nos parágrafos seguintes, se a definição de linguagem de Wittgenstein se encaixaria em alguma dessas exceções.

Ludwig Wittgenstein foi um filósofo austríaco naturalizado britânico responsável pelas principais contribuições na virada analítica ou linguística, durante o século XX (VON WRIGHT, 1955, p. 527). Alguns autores identificam em Wittgenstein duas fases bem distintas, conhecidas como “Primeiro Wittgenstein” e “Segundo Wittgenstein” (HINTIKKA, 1994), dada a diferente abordagem trazida em seus trabalhos posteriores como o Investigações Filosóficas quando comparados com trabalhos prévios como o Tractatus.

De modo geral, sua visão de linguagem em suas primeiras obras se baseava na ideia de que as palavras designam objetos e que o significado da palavra seria o objeto que ela substitui (BRITTO, 2005, p. 86). Assim, seria possível se concluir que cada pessoa poderia criar sua própria designação de um objeto no mundo real. Desse modo, criando sua própria linguagem – uma linguagem privada.

Entretanto, o “Segundo Wittgenstein” mudou sobremaneira suas ideias a respeito da linguagem. De acordo com sua nova visão, uma linguagem compreendida somente por seu criador seria impossível. O autor estabelece duas críticas principais a essa concepção de linguagem. A primeira crítica se dirige ao fato de que tal imagem da linguagem, que a resume a seu aspecto meramente designativo, é uma imagem muito limitada; a segunda crítica postula que, além de disso, esta imagem da linguagem como meramente designativa é uma imagem inadequada, dado o fato de não ser imediatamente compreensível (BRITTO, 2005, pp. 86 e 90).

Para fundamentar essas críticas e propor uma solução, Wittgenstein introduz o conceito de Jogos de Linguagem. Tal conceito foi inicialmente trazido 1930 em uma analogia dos sistemas axiomáticos com o xadrez (GLOCK, 1998, p. 225). Em 1932, ele estende essa analogia à linguagem como um todo com a função de enfatizar os pontos em comum entre jogos e linguagem. Sobre o ponto de partida dessas analogias, discorre Ruy (2008, p. 01):

A linguagem é uma atividade guiada por regras. Em primeiro lugar, bem como num jogo, a linguagem possui regras de constituição, a saber, as regras da gramática. Essas regras gramaticais, diferentemente de regras de estratégia, não nos informam que lance – no caso do jogo, ou proferimento – no caso da linguagem, terá sucesso, e sim o que é correto ou faz sentido, definindo assim o jogo ou a linguagem

Wittgenstein (2000, § 130) faz o seguinte alerta para o uso dessa teoria:

Nossos jogos de linguagem claros e simples não são estudos preparatórios para uma regulamentação futura da linguagem, não são, por assim dizer, aproximações preliminares, sem levar em conta o atrito e a resistência do ar. Os jogos de linguagem estão aí muito mais como objetos de comparação, os quais, por semelhança e dissemelhança, devem lançar luz nas relações de nossa linguagem.

Fazendo um comparativo da linguagem com o jogo, presume-se que para ele ser jogado, seria necessário que todos seus participantes entendessem suas regras. Ainda assim, o próprio autor admite que há situações em que uma linguagem privada seria possível (WITTGENSTEIN, 2000, §243):

Um homem pode encorajar a si mesmo, dar ordens a si mesmo, obedecer a si mesmo, castigar a si mesmo colocar-se uma pergunta e respondê-la. Poder-se-ia também imaginar homens que falassem somente monólogos, que fizessem acompanhar suas atividades com solilóquios. -Um pesquisador que os observasse e escutasse seus discursos poderia conseguir traduzir sua linguagem para a nossa. (Com isso ele seria capaz de antever corretamente as ações dessas pessoas, pois ele as ouve também fazer propósitos e tomar decisões.)

Porém, Wittgenstein vai refutar a possibilidade da linguagem privada argumentando que os jogos de linguagem inevitavelmente fazem a intermediação entre o objeto e o homem, especialmente ao falar da percepção de sentimentos, que em uma linguagem privada só deveriam poder ser percebidos por seu originador (WITTGENSTEIN, 2000, §243):

Mas seria também pensável uma linguagem na qual alguém pudesse, para uso próprio, anotar ou exprimir suas vivências interiores – seus sentimentos, seus estados de espírito? – não podemos fazer isto em nossa linguagem costumeira? – acho que não. As palavras dessa linguagem devem referir-se àquilo que apenas o falante pode saber; às suas sensações imediatas, privadas. Um outro, pois, não pode compreender esta linguagem.

Analisando o texto de Wittgenstein, Britto (2005, p. 96) tece as seguintes conclusões:

O pressuposto da linguagem privada é: existem sensações que apenas uma pessoa tem, que são inacessíveis para outras pessoas, por isso esta linguagem não poderia ser compreendida por ninguém mais, sendo intraduzível. Ora, para descrever estas sensações seria preciso valer-se de definições ostensivas privadas, para determinar quais símbolos representariam quais sensações. Isto porque, a linguagem exige regularidade para que possa ser coerente e compreensível, inclusive para seu próprio originador. Esta regularidade depende de regras de correção. Regras são necessariamente públicas, logo, a ideia de linguagem privada se auto refuta.

Percebe-se, assim, que o caráter necessariamente público da regra é um ponto central do argumento de Wittgenstein contra a linguagem privada. De acordo com o mesmo (2000, § 202), seria impossível seguir uma regra privadamente, pois “‘seguir a regra’ é uma práxis. E acreditar seguir a regra não é seguir a regra. E daí não podermos seguir a regra ‘privadamente’; porque, senão, acreditar seguir a regra seria o mesmo que seguir a regra”. Considerando que a regra de linguagem seria um procedimento de aplicação da língua, tal entendimento estaria condizente com a exceção do artigo 102(b) do DMCA, mencionado acima.

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Essa definição de uma regra ser necessariamente pública também faz sentido quando se parte para a definição de linguagem de programação. De acordo com Paulo Blauth Menezes (2000, p. 01), a Teoria das Linguagens Formais teria sido desenvolvida na década de 1950 com o objetivo de se estudar e compreender as estruturas, características e propriedades das linguagens naturais. Logo se verificou, contudo, que a essa teoria era fundamental para se estudar as linguagens artificiais, especialmente as linguagens da Ciência da Computação. Desde então, de acordo com Menezes, o estudo das Linguagens Formais teria se desenvolvido significativamente, com ênfase nas áreas da Análise Léxica e Sintática de linguagens de programação.

Luis Alberto Warat (1995, p. 11) destaca, inclusive, que a tentativa de se considerar os signos como objeto específico de um conhecimento científico teria se originado de estudos e investigações realizados pelos linguistas contemporâneos em torno da linguagem natural, e pelos lógicos-matemáticos com relação às linguagens artificiais formalizadas.

Desse modo, assim como em uma linguagem natural, o estudo das linguagens formais se preocupa com seus problemas de sintaxe, de semântica e sintáticos, ou seja, suas regras. Discorre Menezes (2000, p. 02) que sintaticamente falando não existiria uma noção de programa “errado”: neste caso simplesmente não seria um programa. Assim, o jogo, em uma linguagem de programação, teria de ser rigorosamente definido, caso contrário não seria entendido pelo terminal/computador responsável por reconhecer determinada linguagem (chamado no jargão da Ciência da Computação de “autômato”). Linguagens de programação, nesse sentido, seriam constituídos de regras públicas necessárias para a criação de programas que possam ser lidos por diferentes tipos de autômatos.

Por fim, é necessário definir o conceito de API e sua origem. A empresa Sun Microsystems (comprada posteriormente pela Oracle) lançou a “plataforma” Java para a programação de computadores em 1996. Seu objetivo era o de facilitar o trabalho de programadores de ter de escrever diferentes versões de seus programas de computador para diferentes sistemas operacionais ou aparelhos. A plataforma Java, através do uso de uma máquina virtual, permitia a desenvolvedores de programas de computador escrever programas que conseguiam rodar em diferentes tipos de hardware sem ter de reescrever esses programas para cada tipo de máquina. Com Java, um programador podia escrever um programa uma vez e rodar em qualquer lugar[4].

O Java Virtual Machine (JVM) cumpria um papel central na plataforma Java. A programação Java em si – a qual inclui palavras, símbolos e outras unidades, assim como regras de sintaxe para usar esses símbolos para criar instruções – é a linguagem em que um programador de Java escreve códigos-fonte, a versão de um programa que é compreensível numa “linguagem humana”. Para as instruções serem executadas, elas precisariam ser convertidas em código binário, consistindo em 0s e 1s, os quais seriam entendidos por um autômato em particular. No sistema Java, o código-fonte era primeiro convertido em bytecode, uma forma intermediária, antes de ser convertida em código binário pelo JVM que fora desenhado para aquele autômato[5].

A empresa Sun escreveu certo número de programas Java pré-programados para realizar funções de computação comuns e organizou esses programas em grupos que chamou de ‘pacotes’. Esses pacotes, que são os APIs (Application Programming Interfaces) em discussão na apelação, permitem que programadores utilizem esse código pré-programado para desenvolver certas funções em seus próprios programas, ao invés de ter de escrever do zero seus próprios códigos para realizar essas mesmas funções. Eles são atalhos. A empresa Sun chamou o código para uma específica operação (função) de ‘método’. Ela definiu ‘classes’ para que cada classe consista de métodos específicos somadas as variáveis e outros elementos nos quais os métodos operariam. Para organizar essas classes para os usuários, então, ela agrupou essas classes (juntamente de outras ‘interfaces’ relacionadas) em ‘pacotes’. Tanto a Oracle quanto a Google não contestaram a analogia da corte: a coleção de pacotes de API da Oracle é como uma livraria, cada pacote é como uma estante na livraria, cada classe é como um livro na estante e cada método como um capítulo de instruções em um livro[6].

Apresentadas as principais ideias de Wittgenstein – a relação das linguagens naturais com as linguagens de programação e o conceito de API – passa-se agora à descrição do caso Oracle vs. Google

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Lukas Ruthes. Oracle vs. Google:: Uma leitura a partir de Wittgenstein. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6410, 18 jan. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61385. Acesso em: 26 abr. 2024.

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