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A teoria da segunda escravidão e sua contribuição para a renovação da historiografia brasileira

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15/01/2018 às 12:25
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O tráfico de africanos escravizados e o regime de trabalho escravista são passíveis de análise por múltiplos prismas, não se limitando à seara da antropologia, da história ou da política. A teoria da segunda escravidão busca reinterpretações sobre o tema, aceitando a dimensão global do capitalismo, mas revelando a imprescindibilidade da busca pelo relato histórico particular de cada nação.

INTRODUÇÃO 

Dos movimentos abolicionistas do século XIX aos dias atuais, a escravidão fora analisada por inúmeros prismas, tanto por liberais quanto marxistas em suas múltiplas ramificações. Paralelamente, pode-se mencionar ainda os estudos realizados no âmbito da antropologia e da sociologia neste campo.     

É patente que o objeto deste trabalho não se ateve a uma única seara nesta discussão. O tráfico de africanos escravizados e o regime de trabalho escravista são passíveis de análise por múltiplos prismas, não se limitando à seara da antropologia, da história ou da política.

Observou-se primeiro o pensamento de um personagem invulgar da política nacional, passando por uma obra ensaística de uma eminente figura intelectual brasileira da primeira metade do século XX, para só então adentrar ao campo da historiografia brasileira que guarda relação mais direta com a teoria da segunda escravidão.

Este percurso não se deu por acaso: a despeito das recorrentes menções a autores estrangeiros, buscou-se tratar da questão da escravidão no Brasil sob as perspectivas que aqui se desenvolveram, que ora reverberaram no campo da prática política institucional (como no caso da seção concernente a Joaquim Nabuco, figura efusivamente reverenciada por Gilberto Freyre como se verá), ora num âmbito mais estritamente acadêmico – como na refutação da teoria da escravidão consensual de Freyre pelos sociólogos da Universidade de São Paulo na década de 1970.

Destaque-se que a teoria da segunda escravidão não se trata de um mero modelo teórico a ser recepcionado pela historiografia brasileira. Ela é fruto de extensa pesquisa historiográfica, que abarcou as diferentes experiências coloniais nas chamadas Índias Ocidentais, incluindo-se neste ponto. Merece registro ainda o fato de o autor ter lecionado no Brasil em diversas oportunidades, trabalhando em cooperação com historiadores brasileiros, como Rafael de Bivar Marquese.


1. A RENOVAÇÃO DA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA SOBRE A ESCRAVIDÃO NAS ÍNDIAS OCIDENTAIS

A renovação da historiografia sobre a escravidão no Novo Mundo guarda relação com a reconfiguração do campo de análise e pesquisa da antropologia ao longo do século XX. O culturalismo de Franz Boas irá lançar um olhar crítico sobre seus predecessores, cujos trabalhos revelavam um viés etnocêntrico, consoante o ethos triunfal de uma Europa imperialista à época do surgimento das ciências humanas. Por esta razão, a antropologia pré-culturalista assumiu um viés instrumental, isto é, de fornecer à potência imperialista um “saber voltado à ‘gestão de populações’” (VILLAS BÔAS FILHO, 2007, p. 345).

Se antes a antropologia evolucionista de Lewis Morgan e Sumner Maine reproduziu esse triunfalismo eurocêntrico – de modo a ter-se a civilização ocidental como a medida da “evolução” dos povos estudados -, o século XX acompanhará a decadência desta linha de pensamento, seja por força do culturalismo boasiano, seja também pelo horror instaurado na Europa – ressignificando assim a autopercepção do europeu- com a I Guerra Mundial.

A ciência histórica ganhou novas bases teóricas para reescrever suas narrativas, o que se deu em grande parte pela contribuição deste movimento na antropologia. Dentro da corrente marxista, o costume de indagar-se sobre a formação do capitalismo do Brasil, tão somente à luz dos modelos “puros” da Inglaterra e das demais nações europeias, começou a ceder espaço para novas bases teóricas e metodológicas.

Tem-se, por exemplo, enquanto perspectiva diametralmente oposta àquela eurocêntrica, a teoria de Jacob Gorender, sobre o modo de produção escravista colonial, desloca o foco do olhar histórico e econômico do Brasil para suas causas endógenas – o que seria impensável num período anterior ao relativismo cultural proposto por Franz Boas.

Por sua vez, a perspectiva adotada pela teoria da segunda escravidão busca reinterpretar as duas visões, aceitando a dimensão global do capitalismo desde sua fase mercantilista, porém revelando a imprescindibilidade da busca pelo relato histórico particular a cada nação, sem limitar-se aos esquemas teóricos cunhados por Karl Marx em sua obra da maturidade[1] para tanto.

1.1. Antecedentes: Joaquim Nabuco           

Oriundo de família proeminente na política pernambucana e baiana, Joaquim Nabuco (1849-1910) nasceu em seio escravocrata para tornar-se importante personagem da luta abolicionista no país, participando inclusive da loja maçônica “América”, um dos baluartes antiescravistas da cidade de São Paulo, na qual também figuraram como membros seus contemporâneos Rui Barbosa e Luiz Gama.

Nabuco fora um político de facetas antagônicas, tendo exercido o mandato de deputado geral pela província de Pernambuco em duas oportunidades, nos anos de 1878 e 1887. Embora timidamente admitira uma certa superioridade da república sobre a forma de governo monarquista, inclinava-se muito transparentemente para o modelo britânico em detrimento do norte-americano (NABUCO, 1995, p. 20).

Seu entusiasmo pela monarquia parlamentarista britânica e pelo correspondente ideário liberal esclarece o que se pode enxergar como contradição em seu horizonte político, bem como explicar a maneira através da qual, para este parlamentar, a questão da escravidão articulava-se com os quadros mais amplos da política e da economia nacionais.

Em discurso, Nabuco teria ditoque “nenhuma reforma política produzirá o efeito desejado enquanto não tivermos extinguido de todo a escravidão, isto é, a escravidão e as instituições auxiliares” (apud FREYRE, 1948, p. 20). Quanto a estas “instituições auxiliares”, o político referia-se a natureza colonial da sociedade brasileira, sociedade esta que só ganhou um código comercial em 1850 e, até 1916, esteve carente de uma legislação civil capaz de avocar dos senhores de engenho o poder de regular as relações entre particulares.

Destarte, o discurso político de Joaquim Nabuco tem na abolição da escravatura o ponto de partida e o protagonista de uma reforma social, política e econômica muito mais profunda no Brasil, a qual elevaria a figura dos cativos e dos camponeses à do trabalhador assalariado, e que extinguiria a figura do senhor de engenho – isto é, do patrimonialismo rural – em favor da figura do empresário capitalista, devidamente submetido a um Estado de Direito.

Frise-se que, nessa crença, Nabuco estava fortemente influenciado por André Rebouças, pensador negro, seu companheiro de luta abolicionista, que foi pioneiro da formulação da necessidade de reformas estruturais que acompanhassem a abolição. É neste sentido sua crítica à “monopolização da terra” e ao “feudal”, de modo que não se deve levar estes termos em seu sentido mais restrito e preciso.                                              

No Brasil, (...) o abolicionismo é antes de tudo um movimento político, para o qual, sem dúvida, poderosamente concorre o interesse pelos escravos e a compaixão pela sua sorte, mas que nasce de um pensamento diverso: o de reconstruir o Brasil sobre o trabalho livre e a união das raças na liberdade. Nos outros países o abolicionismo não tinha esse caráter de reforma política primordial, porque não se queria a raça negra para elemento permanente de população, nem como parte homogênea da sociedade. (NABUCO, 2003, p. 38)

Ainda sobre a visão política de Joaquim Nabuco, são pertinentes as palavras de Gilberto Freyre:

Mais de uma vez [Joaquim Nabuco] teve que lamentar que dos moradores dos campos, espalhados pelo interior do Brasil – “homens livres que trabalham em terras alheias”- poucos dessem sinal de compreender que os abolicionistas, combatendo o feudalismo dominante, lutavam também por êles – moradores livres, porém pobres, de fazendas e de engenhos feudais: “para dar-lhes uma independência honesta, algumas braças de terra que êles possam cultivar como próprias, protegidos por leis executadas por uma magistratura independente e dentro das quais tenham um reduto tão inexpugnável para a honra das suas filhas e a dignidade do seu caráter, como qualquer senhor de engenho”. E que para Nabuco o abolicionismo não era apenas a libertação dos escravos negros do jugo dos senhores brancos, ou oficialmente brancos. Era também a libertação econômica e social, de moradores aparentemente livres de domínios essencialmente feudais. (1948, p. 18-19)

Em suma, Nabuco vislumbrou para o Brasil a ideologia liberal que parecia triunfar na Inglaterra, a qual abarcava o anti-escravismo por razões históricas muito complexas. A despeito destas razões, predominava o argumento de que o capitalismo industrial era incompatível com as formas de trabalho compulsórias, senão por questões éticas, em razão da sua produtividade, e este pensamento aderiu profundamente a sua retórica sobre a escravidão.

Ainda que o autor credite a origem do seu abolicionismo a uma ética paralela a sua mentalidade liberal, é difícil dissociá-lo dos limites da mentalidade liberal anglo-saxã de sua época. O autor dedica um capítulo do seu livro memorialista a Walter Bagehot, influente em sua formação intelectual como monarquista.

Com efeito, quando entro para a Câmara, estou inteiramente sob a influência do liberalismo inglês, como se limitasse às ordens de Gladstone; esse é em substância o resultado de minha educação política: sou um liberal inglês - com afinidades radicais, mas com aderências whigs- no Parlamento brasileiro; esse modo de definir-me será exato até o fim, porque o liberalismo inglês, gladstoniano, macaulayiano, perdurará sempre, será a vassalagem irresgatável do meu temperamento ou sensibilidade política; no entanto, depois do primeiro ensaio, a feição política tornar-se-á secundária, subalterna, será substituída pela identificação humana com os escravos e esta é que ficará sendo a característica pessoal, tudo se fundirá nela e por ela. (NABUCO, 1995, p. 149)

Forçoso destacar que a obra de Joaquim Nabuco absorveu o discurso antropológico do darwinismo social, em voga na intelectualidade brasileira desde as últimas décadas do século XIX (PERLATTO, 2007) - o qual de certa forma procurou justificar os flagelos sociais decorrentes da Revolução Industrial através do que hoje se tem por “racismo científico”, lastreado em interpretações antropológicas questionáveis da teoria da evolução de Charles Darwin, circunscrita na área das ciências biológicas (HUNT; SHERMAN, 2013, p. 132).

Muitas das influências da escravidão podem ser atribuídas à raça negra, ao seu desenvolvimento mental atrasado, aos seus instintos bárbaros ainda, às suas superstições grosseiras. A fusão do catolicismo, tal como o apresentava ao nosso povo o fanatismo dos missionários, com a feitiçaria africana, influência ativa e extensa nas camadas inferiores, intelectualmente falando, da nossa população, e que pela ama-de-leite, pelos contatos da escravidão doméstica, chegou até aos mais notáveis dos nossos homens; a ação de doenças africanas sobre a constituição física de parte do nosso povo; a corrupção da língua, das maneiras sociais, da educação e outros tantos efeitos resultantes do cruzamento com uma raça num período mais atrasado de desenvolvimento; podem ser consideradas isoladamente do cativeiro. Mas, ainda mesmo no que seja mais característico dos africanos importados, pode afirmar-se que, introduzidos no Brasil, em um período no qual não se desse o fanatismo religioso, a cobiça, independente das leis, a escassez da população aclimada, e sobretudo a escravidão, doméstica e pessoal, o cruzamento entre brancos e negros não teria sido acompanhado do abastardamento da raça mais adiantada pela mais atrasada, mas de gradual elevação da última. (NABUCO, 2003, p. 132-133)                                                                                                                                                            

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Ao mesmo tempo em que estabelece o “atraso” dos povos africanos, tomando-lhes por “raça” – termo deslocado da biologia evolutiva-, oferecendo-lhes a mera possibilidade de “gradual elevação” a partir da experiência com o branco, paradoxalmente, Joaquim Nabuco parece prenunciar alguns termos do culturalismo antropológico, que ganhará espaço no Brasil cerca de duas décadas após a sua morte, com o trabalho de Gilberto Freyre.

A raça negra não é, tampouco, para nós, uma raça inferior, alheia à comunhão, ou isolada desta, e cujo bem estar nos afete como o de qualquer tribo indígena maltratada pelos invasores europeus. Para nós, a raça negra é um elemento de considerável importância nacional, estreitamente ligada por infinitas relações orgânicas à nossa constituição, parte integrante do povo brasileiro. (NABUCO, 2003, p. 39 - grifo nosso)

Quanto à forma pela qual se daria a abolição, Joaquim Nabuco manifestou-se contrário às rebeliões sociais, escravas ou não, e favorável a uma reforma legislativa levada a cabo pelo parlamento tupiniquim – onde é possível observar novamente sua influência pelo modelo parlamentarista de governo britânico.

A escravidão não há de ser suprimida no Brasil por uma guerra servil, muito menos por insurreições ou atentados locais. Não deve sê-lo, tampouco, por uma guerra civil, como o foi nos Estados Unidos. [...] Não é, igualmente, provável que semelhante reforma seja feita por um decreto majestático da Coroa, como o foi na Rússia, nem por um ato de inteira iniciativa do governo central, como foi, nos Estados Unidos, a proclamação de Lincoln. A emancipação há de ser feita, entre nós, por uma lei que tenha os requisitos, externos e internos, de todas as outras. É assim, no Parlamento e não em fazendas ou quilombos do interior, nem nas ruas e praças das cidades, que se há de ganhar, ou perder, a causa da liberdade. Em semelhante luta, a violência, o crime, o desencadeamento de ódios acalentados, só pode ser prejudicial ao lado que tem por si o direito, a justiça, a procuração dos oprimidos e os votos da humanidade toda. (NABUCO, 2003, p.44-45)

A despeito das considerações sobre sua relação com o darwinismo social, sua trajetória política guarda certo relevo dentro do debate histórico que se deu a partir da década de 1950, sobre a formação do capitalismo no Brasil – questão esta central na teoria da segunda escravidão-, dada a importância do debate sobre a escravidão e sobre o tráfico negreiro neste âmbito e dada a preocupação do autor com o desenvolvimento nacional e seu embate com um regime que ele entende por feudal, em tom relativamente progressista para a época.

O parcelamento feudal do solo que ela [a escravidão] instituiu, junto ao monopólio do trabalho que possui, impede a formação de núcleos de população industrial, e a extensão do comércio no interior. Em todos os sentidos foi ela, e é, um obstáculo ao desenvolvimento material dos municípios; [...] não edificou escolas, nem igrejas, não construiu pontes, nem melhorou rios, não canalizou a água nem fundou asilos, não fez estradas, não construiu casas, sequer para os seus escravos, não fomentou nenhuma indústria, não deu valor venal à terra, não fez benfeitorias, não granjeou o solo, não empregou máquinas, não concorreu para progresso algum da zona circunvizinha. O que fez foi esterilizar o solo pela sua cultura extenuativa, embrutecer os escravos, impedir o desenvolvimento dos municípios, e espalhar em torno dos feudos senhoriais o aspecto das regiões miasmáticas, ou devastadas pelas instituições que suportou, aspecto que o homem livre instintivamente reconhece. (NABUCO, 2003, p. 146)

De maneira sintética, pode-se afirmar que a leitura política de Joaquim Nabuco - “um desertor de sua casta, de sua classe, de sua raça” segundo Freyre (1948, p. 10) – lhe coloca na verdade não numa posição de desertor, mas de conciliador dos mais antagônicos interesses que se manifestavam no Brasil na segunda metade do século XIX, reconhecido o esmero deste político ao tratar a escravidão para além do discurso humanitarista – inócuo no âmbito da política institucional, quando considerado por si mesmo-, vinculando tal discurso aos aspectos mais amplos da economia e da política nacionais.

1.2. Gilberto Freyre e o culturalismo antropológico

No ano de 1933, é publicado Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, no qual o autor irá debruçar-se sobre a formação histórica da sociedade brasileira numa perspectiva eminentemente ensaística, destrinchando o hibridismo cultural brasileiro a partir do estudo dos três grupos distintos que influenciaram mais diretamente a concretude das relações sociais que aqui se operaram, quais sejam o colonizador português, o indígena nativo e o escravo negro.

A qualificação do português como “colonizador”m ou do negro como “escravo”, feitas pelo autor, não se deu arbitrariamente. A linguagem de Freyre ilustra o arcabouço teórico que acompanha sua narrativa. Isto é, o objeto da sua pesquisa não é o negro como raça ou o português enquanto estereótipo do homem branco europeu, mas sim estas figuras submetidas a uma determinada contingência histórica, política, geográfica e social. É a partir desta visão que afirma:

Sempre que consideramos a influência do negro sobre a vida íntima do brasileiro, é a ação do escravo, e não a do negro por si, que apreciamos. (...) Foi o erro grave que cometeu Nina Rodrigues ao estudar a influência do africano no Brasil: o de não ter reconhecido no negro a condição absorvente de escravo. (...) Impossível a separação do negro, introduzido no Brasil, de sua condição de escravo.(FREYRE, 2005, p. 397/398);                                             

Esta importante precaução metodológica que se encontra em sua obra revela a influência do antropólogo alemão Franz Boas, cujas premissas metodológicas representaram um fundamental passo dado pelas ciências humanas na compreensão dos fenômenos sociais, a partir da superação do chamado “método comparativo” que norteou toda a pesquisa antropológica que lhe precedeu. Frise-se que Freyre fora aluno de Franz Boas na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos.

O método comparativo – fundamento procedimental da antropologia evolucionista – pressupõe que as semelhanças observadas na cultura de povos distintos constituem prova indelével da linearidade da evolução cultural humana. Isto é, supõe-se que as diferentes coletividades que existem ou existiram no mundo passam por graus idênticos de desenvolvimento. Ora, se se presume que os povos percorrem os mesmos caminhos de desenvolvimento cultural, conclui-se que a diferença entre eles reside no estágio evolutivo em que cada um se encontra. Assim, torna-se possível classificar as nações em “evoluídas” e “primitivas” segundo determinados critérios.

Sendo a antropologia filha da efervescência econômica e intelectual europeia no século XIX, não é difícil entender sua orientação eurocêntrica e, por extensão, o papel instrumental que exerceu neste primeiro momento. Mais precisamente, antropologia assumiu a dupla função de justificar ideologicamente o expansionismo europeu e de fornecer conhecimentos úteis à subjugação daquelas sociedades consideradas primitivas ou atrasadas (VILLAS BÔAS FILHO, 2007, p. 337).

Por meio do método histórico, a antropologia culturalista de Franz Boas renuncia à pretensão instrumental de outrora, o que faz, no plano teórico, abraçando o relativismo ao negar a tese da uniformidade da evolução cultural humana, a qual, como visto, apresenta-se como uma narrativa especulativa, carente de rigor metodológico e orientada para uma finalidade muito clara.

Mesmo agora certas conclusões gerais podem ser tiradas desse estudo. Em primeiro lugar, a história da civilização humana não se nos apresenta inteiramente determinada por uma necessidade psicológica que leva a uma evolução uniforme em todo o mundo. Vemos, ao contrário, que cada grupo cultural tem sua história própria e única, parcialmente dependente do desenvolvimento interno peculiar ao grupo social e parcialmente de influências exteriores às quais ele tenha sido submetido. Tanto ocorrem processos de gradual diferenciação quanto de nivelamento de diferenças entre centros culturais vizinhos. Seria completamente impossível entender o que aconteceu a qualquer povo particular com base num único esquema evolucionário.” (BOAS, 2005, p. 47).

Conjugando fatores geográficos, históricos, econômicos e também raciais – Boas, tal qual Freyre, não os exclui de sua apreciação-, a pesquisa científica libertar-se-ia dos “devaneios mais ou menos engenhosos” (BOAS, 2005, p. 49) que constituíram o discurso etnocêntrico da escola evolucionista, destarte superando o binômio “evolução” e “primitivismo”.

O método atualmente mais aplicado em investigações dessa natureza compara as variações sob as quais os costumes e as crenças ocorrem e se esforça por encontrar a causa psicológica comum subjacente a todos eles. Afirmei que esse método [comparativo] está sujeito a uma objeção fundamental. Temos outro método [histórico] que em muitos aspectos é bem mais seguro. O estudo detalhado de costumes em sua relação com a cultura total da tribo que os pratica, em conexão com uma investigação de sua distribuição geográfica entre tribos vizinhas, propicia-nos quase sempre um meio de determinar com considerável precisão as causas históricas que levaram à formação dos costumes em questão e os processos psicológicos que atuaram em seu desenvolvimento. Os resultados das investigações conduzidas por esse método podem ser tríplices. Eles podem revelar as condições ambientais que criaram ou modificaram os elementos culturais; esclarecer fatores psicológicos que atuaram na configuração da cultura; ou nos mostrar os efeitos que as conexões históricas tiveram sobre o desenvolvimento da cultura. Nesse método, temos um meio de reconstruir a história do desenvolvimento das ideias com uma precisão muito maior do que aquelas permitida pelas generalizações do método comparativo. (BOAS, 2005, p. 33-34)           

Retomando as considerações sobre o pensamento de Gilberto Freyre, pode-se afirmar que sua obra foi um importante vetor deste deslocamento da discussão racial/biológica para a questão cultural e contingente do negro no Brasil, da condição de escravizados a qual múltiplas sociedades africanas foram submetidas ao longo de quatro séculos.

Um ponto controvertido da sua obra diz respeito ao seu conceito de “democracia racial”. Muito embora reconheça a sujeição do negro aos arbítrios do senhor de engenho e de sua família em todos os níveis de interação social – seja no nível da produção, da religião ou da vida afetiva e sexual -, o autor entende que o sincretismo cultural e a miscigenação que se operaram por estas terras são capazes de ilustrar uma harmonia na relação entre o negro cativo e seus senhores, um certa docilidade no trato diário (ERKERT, 2013, p. 21).

Verificou-se entre nós uma profunda confraternização de valores e de sentimentos. Predominantemente coletivistas, os vindos das senzalas; puxando para o individualismo e para o privatismo, os das casas-grandes. Confraternização que dificilmente se teria realizado se outro tipo de cristianismo tivesse dominado a formação social do Brasil; (...) Foi este cristianismo doméstico, lírico e festivo, de santos compadres, de santas comadres dos homens, de Nossas Senhoras madrinhas dos meninos, que criou nos negros as primeiras ligações espirituais, morais e estéticas com a família e com a cultura brasileira. (...) Não foi só ‘no sistema de batizar os negros’ que se resumia a política de assimilação, ao mesmo tempo que de contemporização seguida no Brasil pelos senhores de escravos: consistiu principalmente em dar aos negros a oportunidade de conservarem, à sombra dos costumes europeus e dos ritos e doutrinas católicas, formas e acessórios da cultura e da mítica africana. Salienta João Ribeiro o fato de o cristianismo no Brasil ter concedido aos escravos uma parte no culto; de santos negros como São Benedito e Nossa Senhora do Rosário terem se tornado patronos de irmandades de pretos; (FREYRE, 2005, p. 438-439)

A despeito do otimismo do autor, é possível afirmar que essa noção de “assimilação”, fruto da dominação direta, se dá em apenas uma direção – na do negro a assimilar a cultura do branco europeu - e que, logo, e como salientado pelo próprio autor, a cultura do negro subsistirá de maneira acessória: tornar-se-á o santo negro dentro do culto católico apostólico romano.

Não se pode desconsiderar, sobretudo, que esse intercâmbio entre as culturas europeia e africana no Brasil, ainda que destoe do padrão encontrado em outras colônias, se deu num plano diferente do da concretude das relações sociais cotidianas, carregadas de despotismo da parte da família senhorial e marcadamente abusivas física e psicologicamente para os cativos. Patente é a surpresa de Charles Darwin em sua passagem pelo Rio de Janeiro em julho de 1832:

While staying at this estate, I was very nearly being an eye-witness to one of those atrocious acts which can only take place in a slave country. Owing to a quarrel and a lawsuit, the owner was on the point of taking all the women and children from the male slaves, and selling them separately at the public auction at Rio. Interest, and not any feeling of compassion, prevented this act. Indeed, I do not believe the inhumanity of separating thirty families, who had lived together for many years, even occurred to the owner. Yet I will pledge myself, that in humanity and good feeling he was superior to the common run of men. It may be said there exists no limit to the blindness of interest and selfish habit.

I may mention one very trifling anecdote, which at the time struck me more forcibly than any story of cruelty. I was crossing a ferry with a negro, who was uncommonly stupid. In endeavouring to make him understand, I talked loud, and made signs, in doing which I passed my hand near his face. He, I suppose, thought I was in a passion, and was going to strike him; for instantly, with a frightened look and half-shut eyes, he dropped his hands. I shall never forget my feelings of surprise, disgust, and shame, at seeing a great powerful man afraid even to ward off a blow, directed, as he thought, at his face. This man had been trained to a degradation lower than the slavery of the most helpless animal. (DARWIN, 1871, p. 25)

Também pode-se opor à “escravidão branda” de Freyre a existência das chamadas “ações de liberdade” entre as décadas de 1830 e 1870 no Brasil, que ilustra a luta cotidiana de cativos moradores dos centros urbanos pelo reconhecimento da sua liberdade por meio de uma ação judicial.

Destaque-se o precioso relato traçado pela historiadora Keila Grinberg (2008) sobre a história de vida da negra Liberata, que se socorreu do Poder Judiciário no afã de ver-se livre dos arbítrios do seu proprietário. Liberata fora comprada aos 10 anos de idade, sendo desde tenra idade subjugada sexualmente por seu proprietário, que certa feita lhe prometera liberdade. Este último fato merece atenção, posto que os argumentos dos curadores dos escravos litigantes era baseado numa lógica contratual, prevalecendo este tipo de argumentação sobre qualquer especulação ética ou jusnaturalista.

1.3. Década de 1970: Escola Paulista (USP) e Unicamp

A discussão acerca da formação do capitalismo teve início no Brasil pouco após a publicação de Casa-grande e Senzala. Em tempo, Freyre enxergava no Brasil colonial uma estrutura econômica feudal, embora sem debruçar-se efetivamente sobre o tema.

No Brasil, tal discussão – menos sociológica e preponderantemente econômica – teve como ponto de partida a publicação em 1942 de Formação do Brasil Contemporâneo de Caio Prado Jr, obra de caráter marcadamente econômico, onde se encontra sua célebre tese sobre a distinção entre as “colônias de povoamento” e “colônias de exploração”, sendo esta última o caso brasileiro. A colônia de exploração caracteriza-se por sua finalidade precípua de fornecer produtos para circulação no mercado europeu (ERKERT, 2013, cap. 2).

Alguns fatores determinaram o retorno ao debate sobre a escravidão a partir da década de 1950, dentre os quais destacam-se o processo de descolonização da África e da Ásia e a Revolução Cubana. Merece destaque, ainda, a publicação de “Capitalismo e Escravidão”, livro de Eric Williams de 1944, baseado em sua de doutorado defendida na Universidade de Oxford.

Segundo Marquese (2013, p. 227), é a partir da década de 1970 que aparecerão duas escolas marxistas que aprofundarão o debate sobre a formação do capitalismo no Brasil, debate este que guarda direta relação com o estudo do instituto da escravatura.

Na primeira, nota-se forte influência de Formação do Brasil Contemporâneo de Caio Prado Jr. e da obra Capitalismo e Escravidão do historiador Eric Williams, publicada dois anos após aquela. Tais obras formaram parte do alicerce teórico do trabalho dos sociólogos Florestan Fernandes e Roger Batisde, da Universidade de São Paulo, que refutaram a tese da democracia racial de Freyre (MARQUESE, 2013, p. 346).

Nesta primeira escola, é possível notar uma explicação da formação do capitalismo no Brasil a partir da sua integração com a Europa no âmbito da esfera da circulação de mercadorias. Partindo-se do ponto de vista da segunda escola, trata-se de uma perspectiva exógena e, portanto, equivocada. Para a teoria da segunda escravidão de Dale Tomich, por sua vez, trata-se mais de uma perspectiva incompleta, posto que ignora a especificidade da escravidão no Novo Mundo e, portanto, a própria noção de dois tipos distintos de escravidão entre os séculos XVI e XIX.

Ao afirmar a colonização dos trópicos como destinada ao fornecimento de produtos para o comércio europeu, exclusivamente, o autor [Caio Prado Jr.] exclui qualquer possível importância dos processos internos que se desenvolviam à margem dessa exportação. (ERKERT, 2013, p. 41)

A segunda corrente, que encontrou maior repercussão na Universidade Estadual de Campinas, relaciona-se à posição de acadêmicos da América Latina, como o brasileiro Ciro Flamarion Cardoso, o qual postulou a especificidade da realidade econômica dos países latino-americanos, criticando tanto os modelos teóricos que tratam o Brasil por feudal quanto os que o enxergam à luz do incipiente capitalismo europeu, recusando portanto o modelo proposto por Williams e Prado Jr. . Reflete o autor:

Cuando Pablo Gonzáles Casanova, Jean-Loup Herbert y Severo Martínez Peláez emiten hipótesis de la especificidad de tal modo de producción colonial, o del sistema colonial en su conjunto, están dando un paso adelante con relación a las hipótesis anteriormente admitidas, basadas en la asimilación de las estructuras coloniales a moldes tomados del estudio de la evolución europea. Sin embargo, ellos debilitan en seguida las posibilidades que tendrían de explotar científicamente tal progreso, al considerar dichas estructuras como una “proyección del capitalismo europeo”, o al limitarse a afirmar formalmente que se caracterizaban por la coexistencia de tres modalidades de explotación: esclavitud, feudalismo (o servidumbre), trabajo asalariado(lo que significa refugiarse en el empirismo). En el caso de Jean-Loup Herbert, la cosa se ve agravada por un esquema ahistórico que confunde en una sola línea continua de evolución las formas sucesivas de dependencia e integración al mercado mundial, desde el siglo XVI a nuestros días, a la manera de Gunder Frank. Y en cuanto a Severo Martínez Peláez, ya he dicho que tiene razón en afirmar que la colonia tuvo una realidad propia; pero la hipótesis feudal no me parece útil en el sentido de explicarla.(1975, p. 101-102)

Jacob Gorender propõe, na esteira da hipótese abraçada por Cardoso, que o determinismo socioeconômico engendrou no Brasil um modo de produção com características totalmente novas, que não corresponderia – como imaginou Marx – a uma síntese dos sistemas produtivos colidentes, à imposição do sistema do vencedor ou à subsistência do modo de produção do vencido. Não se trataria, tampouco, de um modo de produção capitalista anômalo ou imperfeito, muito menos de um escravismo nos termos da Antiguidade (GORENDER, 1988, cap. I).                                       

1.4. Década de 1980: Dale Tomich e a renovação da historiografia brasileira sobre a escravidão

A partir da década de 1980, o historiador norte-americano Dale Tomich desenvolverá suas reflexões sobre a segunda escravidão, tendo observado de perto as correntes teóricas correntes no Brasil ao passo que fora professor visitante na Universidade Estadual de Campinas nos anos de 1982 e 1988, bem como da Universidade Federal Fluminense em 1983 e, nas décadas seguintes, da Universidade de São Paulo e do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (SANTOS, 2013).

A contribuição de Dale Tomich, para a historiografia, se deu não apenas nas suas conclusões, mas em uma importante precaução metodológica que fora olvidada ou passou despercebida pelos autores anteriormente mencionados: o capital é um livro de teoria e não de relato histórico e, como abstração teórica, tende a mitigar a atenção sobre realidades históricas que sejam estranhos às suas conclusões teóricas.

Desta forma, seria um equívoco procedimental do historiador estudar o instituto da escravidão sob a égide das abstrações teóricas marxistas. É nesta esteira a crítica de Tomich às teorias que limitam-se a inserir a questão da escravidão na discussão se o cerne do capitalismo é a sua esfera da circulação de mercadorias ou o seu circuito da produção, sem buscar sua especificidade histórica.

Frise-se que sua contribuição para a historiografia ganhou maior atenção na década de 2000 (SALLES, 2013), o que significa dizer que se faz premente proceder ao estudo da escravidão nos dias atuais levando-se em consideração os avanços obtidos com o trabalho do referido historiador.

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Sobre o autor
Ricardo Gonçalves e Sousa

Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e advogado

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES E SOUSA, Ricardo. A teoria da segunda escravidão e sua contribuição para a renovação da historiografia brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5311, 15 jan. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61664. Acesso em: 19 abr. 2024.

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