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Evolução histórica dos direitos das mulheres no direito de família brasileiro

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O presente artigo tem como objetivo destacar as transformações na condição jurídica das mulheres na legislação brasileira, especificamente no que diz respeito a legislação de Direito de Família.

Introdução

 A família, uma das mais antigas instituições sociais, tem sofrido ao longo do tempo grandes transformações em sua estrutura, situação que se caracteriza pelas transformações e mudanças da sociedade como um todo.

A sociedade mudou, e em consequência disso o Direito também. Direitos antes considerados inadequados e mesmo inexistentes são agora acessíveis a todos os cidadãos, independente do gênero a que pertençam.

De acordo com Cabral (2008, p.15), “a organização familiar é produto da organização histórica do ser humano. Isso porque, devido à necessidade de reprodução da espécie eles acabaram encontrando diferentes formas de relação entre si”.

Durante todo processo histórico a sociedade vivenciou diferentes formas de organização doméstica, entre elas, encontra-se o patriarcado, o qual “centra-se na figura masculina” (CABRAL, 2008, p.16).

Destaca-se o pensamento de Simone de Beauvoir (1970, p.13) a qual comenta que a despeito das transformações que a sociedade vem passando, no que se refere a condição da mulher, “por mais longe que se remonte na história, sempre estiveram subordinadas ao homem: sua dependência não é consequência de um evento ou de uma evolução, ela não aconteceu”. De acordo com a autora isso ocorre em parte pela inexistência de uma identidade de grupo que as fizessem se reconhecer e lutarem por espaço.

Salvo em certos congressos que permanecem manifestações abstratas — não dizem “nós”. Os homens dizem “as mulheres” e elas usam essas palavras para se designarem a si mesmas: mas não se põem autenticamente como sujeito. Os proletários fizeram a revolução na Rússia, os negros no Haiti, os indo-chineses bateram-se na Indo-China: a ação das mulheres nunca passou de uma agitação simbólica; só ganharam o que os homens concordaram em lhes conceder; elas nada tomaram; elas receberam (Cf. Segunda Parte, § 5). Isso porque não têm os meios concretos de se reunir em uma unidade que se afirmaria em se opondo. Não têm passado, não têm história, nem religião própria; não têm, como os proletários, uma solidariedade de trabalho e interesses; não há sequer entre elas essa promiscuidade espacial que faz dos negros dos E.U.A., dos judeus dos guetos, dos operários de Saint-Denis ou das fábricas Renault uma comunidade (BEAUVOIR, 1970, p.13).

Beauvoir destaca que os laços os quais unem a mulher a seus opressores não são comparáveis a nenhum outro e ainda afirma ser biológica e não um momento pontual da história humana essa divisão de sexos:

[...] a mulher sempre foi, senão a escrava do homem ao menos sua vassala; os dois sexos nunca partilharam o mundo em igualdade de condições; e ainda hoje, embora sua condição esteja evoluindo, a mulher arca com um pesado handicap. Em quase nenhum país, seu estatuto legal é idêntico ao do homem e muitas vezes este último a prejudica consideravelmente. Mesmo quando os direitos lhe são abstratamente reconhecidos, um longo hábito impede que encontrem nos costumes sua expressão concreta (BEAUVOIR, 1970, p.14).

Não obstante a situação colocada, ressalta-se a questão econômica, que interfere de modo significativo no contexto. Beauvoir (1970, p.14), com efeito, afirma: “economicamente, homens e mulheres constituem como que duas castas; em igualdade de condições, os primeiros têm situações mais vantajosas, salários mais altos, maiores possibilidades de êxito que suas concorrentes recém-chegadas”. Assim, os homens possuem todas as vantagens:

Ocupam na indústria, na política etc., maior número de lugares e os postos mais importantes. Além dos poderes concretos que possuem, revestem-se de um prestígio cuja tradição a educação da criança mantém: o presente envolve o passado e no passado toda a história foi feita pelos homens. No momento em que as mulheres começam a tomar parte na elaboração do mundo, esse mundo é ainda um mundo que pertence aos homens (BEAUVOIR, 1970, p.15).

Nota-se que a mulher ocupa posição muito peculiar. Como se pode vislumbrar o sujeito mulher é desacreditado na sociedade para exercer algumas funções, e quando se questiona o porquê desse fato, são apresentadas explicações (hoje já superadas) de que sua biologia físico-psicológica não lhe permite realizar certas atividades. De acordo com esses argumentos, essas devem ser designadas aos homens, supostamente mais capazes.

 Tendo em vista a condição feminina apontada por Beauvoir, em sua obra O Segundo Sexo, que explica todo esse processo de subordinação da mulher, de não reconhecimento como grupo ou sujeito, o objetivo da presente pesquisa é, a partir das concepções apontadas, destacar como se desenvolveu a legislação constitucional e infraconstitucional no que se refere aos direitos das mulheres no âmbito dos direitos de família, com vistas a lançar um olhar critico as condições impostas as mulheres, especificamente no que diz respeito ao Brasil.

A metodologia utilizado é a pesquisa bibliográfica de cunho exploratório com o levantamento de bibliografia sobre os temas e conceitos abordados, bem como a pesquisa documental, tendo em vista que o levantamento das legislações no que diz respeito a condição jurídica da mulher no Brasil  será condição essencial nesta pesquisa.


O Código Civil De 1916, Lei n° 3.071, de 1º de janeiro de 1916 

O Código Civil de 1916 foi muito aguardado, e essa espera gerou muitas expectativas, principalmente das mulheres, que de certo modo esperavam grandes mudanças em sua situação civil. No entanto, no que tange à mulher não houve muitas mudanças significativas.

De acordo com Verucci (1999, p.35), o referido código teve muita influencia do “Estado e da Igreja, e consagrou a superioridade do homem, dando o comando único da família ao marido, e delegando a mulher casada a incapacidade jurídica relativa, equiparada aos índios, aos pródigos e aos menores de idade” (VERUCCI, 1999, p.35).

A família descrita no Código era organizada de forma hierárquica, tendo o homem como chefe e a mulher em situação de inferioridade legal. O texto de 1916 privilegiou o ramo paterno em detrimento do materno; exigiu a monogamia; aceitou a anulação do casamento em face à não-virgindade da mulher; afastou da herança a filha mulher de comportamento “desonesto”. O Código também não reconheceu os filhos nascidos fora do casamento (BARSTED, GARCEZ, 1999, p.17).

Com o marido na chefia da sociedade conjugal e na administração exclusiva dos bens do casal, coube a ele, ainda, o direito de fixar o domicílio da família e desconsiderar a vontade da mulher.  Sobre o domicílio, cabe mencionar Cabral (2008, p.40), segundo a qual se a “mulher dele se afastasse por qualquer motivo poderia ser acusada de abandono de lar, com a perda do direito a alimentos e à guarda dos filhos”.

Por esse Código, com o casamento, a mulher perdia sua capacidade civil plena, ou seja, não poderia mais praticar, sem consentimento do marido, inúmeros atos que praticaria sendo maior de idade e solteira. Deixava de ser civilmente capaz para se tornar, “relativamente incapaz”. Enfim, esse Código Civil regulava e legitimava a hierarquia de gênero e o lugar subalterno da mulher dentro do casamento civil. (BARSTED, GARCEZ, 1999, p.17).

Cabral (2008, p.41), comenta que “o Código Civil, na área de família acabou falhando, pois, reconheceu, apenas, uma única forma de constituição de família, outorgando juridicidade somente ao relacionamento decorrente do casamento”. A autora também destaca a ausência de um conceito que definisse família e casamento, além de mencionar que o Código Civil de 1916, apenas elencou requisitos para celebração, bem como e direitos e deveres dos cônjuges, e consequências patrimoniais decorrentes da dissolução conjugal.

De acordo com Cabral (2008, p.41) outro ponto que merece ser observado é que  o instituto do casamento continuava indissolúvel tal como dispunham os artigos do Código Civil de 1916, “que previam o regime da comunhão universal de bens e a indispensabilidade da adoção dos apelidos do marido pela mulher. Na realidade, a intenção era que se formasse uma só unidade patrimonial, onde o homem era essência da família”.

O Código Civil de 1916 trouxe ainda a obrigação à mulher de adotar o nome da família do marido, pois esta, na concepção da época, após o casamento passava a ser parte da família do marido, deixando, até mesmo, de integrar a sua própria família. Não podendo trabalhar sem a autorização marital. E no desquite litigioso o marido só estava obrigado a lhe prestar alimentos, se a mulher fosse inocente e pobre. E a mãe que contraísse novas núpcias perdia o direito ao pátrio poder sobre os filhos do leito anterior, passando este ao marido. E ainda, pelas dividas do marido respondiam os bens particulares da mulher (CABRAL, 2008, p.40-41).

A mulher casada, como se nota, sofria muitas limitações, enfrentava a ausência de muitos direitos e devia ter a autorização do marido para diversas situações, o que reitera a posição do referido código de inferiorizar e subordinar a mulher.

Assim, de acordo com Barsted e Garcez (1999, p.17), se casada, a mulher não poderia, sem prévia autorização do seu marido “aceitar ou repudiar herança; aceitar tutela, curatela ou outro múnus público; litigar (demandar) em juízo civil ou criminal e exercer profissão”. Vale destacar: na Justiça do Trabalho ela necessitava da assistência do marido para reivindicar direitos trabalhistas. Note-se que

A posição de inferioridade da mulher decorria das próprias características da família, pois era mister a mantença da autoridade do varão com a finalidade de preservação da unidade familiar. Só em 1932 é que adquiriu a mulher o direito à cidadania, quando foi admitida a votar, e somente em 1962, por meio do chamado Estatuto da Mulher Casada, teve implementada sua plena capacidade. (DIAS, 2001, p.157-164)

Desse modo, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a declaração de que “homens e mulheres têm os mesmos direitos na Constância da sociedade conjugal”, Barsted e Garcez (1999, p.17) comentam que foi o suficiente “revogar praticamente todo o capítulo sobre família do Código Civil Brasileiro, (...) eliminar séculos de subordinação legal da mulher dentro da família”.


Estatuto da Mulher Casada, Lei Nº 4.121, De 27 De Agosto De 1962 

No ano de 1949, Romy Medeiros, advogada, propôs ao IAB (Instituto dos Advogados do Brasil) indicar ao Congresso Nacional um projeto de lei, cuja principal proposta era a revogação da incapacidade relativa da mulher casada.

Assim, Cabral (2008, p.42) menciona que o IAB acabou por aceitar a indicação, a qual resultou na criação de “uma comissão especial para estudar a questão proposta, e deste estudo foi elaborado um anteprojeto que modificava completamente a condição da mulher casada, eliminando, inclusive, o conceito de chefia da sociedade conjugal, que era concedido exclusivamente ao marido”.

 O mencionado projeto tramitou por mais de dez anos e sofreu tantas emendas que acabou por ficar muito diferente do original. “O Estatuto foi promulgado somente em 27 de agosto de 1962, sob o número de Lei n. 4.121, o resultado não deixou de ser um avanço, mas foi decepcionante, pois as mulheres da época aguardavam muito mais” (CABRAL, 2008, p.44).

Há de se dizer que foi o Estatuto da Mulher Casada, que pela primeira vez   proporcionou mudanças mais significativas “para a condição jurídica da mulher, aproximando-a, praticamente, da equiparação: as mulheres casadas, na subsistência da sociedade conjugal deixam de ser incapazes, relativamente a certo atos, ou à maneira de os exercer” (AZEVEDO, 2001, p. 69-70).

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Sturmër (2002, p. 105), comenta que “o Estatuto da Mulher Casada, afastando a imagem do autoritarismo marital, deu capacidade plena para a mulher casada e eliminou parte das desigualdades impostas pelo Código Civil Brasileiro”.

Dentre os avanços obtidos com o Estatuto da Mulher Casada encontra-se o expresso no inciso I, Art.233 do Código Civil de 1916 que com a nova redação ficou da seguinte forma: “III - o direito de fixar o domicílio da família ressalvada a possibilidade de recorrer a mulher ao Juiz, no caso de deliberação que a prejudique”.

 Necessário ressaltar ainda a alteração dos artigos 380 e 393 do Código Civil de 1916, que após a promulgação do Estatuto da Mulher Casada ficaram da seguinte forma:

Art. 380. Durante o casamento compete o pátrio poder aos pais, exercendo-o o marido com a colaboração da mulher. Na falta ou impedimento de um dos progenitores, passará o outro a exercê-lo com exclusividade. Parágrafo único. Divergindo os progenitores quanto ao exercício do pátrio poder, prevalecerá a decisão do pai, ressalvado à mãe o direito de recorrer ao juiz, para solução da divergência”. Art. 393. A mãe que contrai novas núpcias não perde, quanto aos filhos de leito anterior, os direitos ao pátrio poder, exercendo-os sem qualquer interferência do marido.

Alterado o Art. 246 do Código de 1916, o exercício do trabalho da mulher foi desvinculado da autorização marital. Seguindo com as mudanças, com a alteração do Art.326, a mulher adquiriu o direito de ficar com a guarda dos filhos menores, salvo em casos expressos. Cabem apontamentos de Azevedo (2001, p.70):

O estatuto conferiu à mulher que exercesse profissão lucrativa, distinta do marido, o direito de praticar todos os atos inerentes ao seu exercício e sua defesa; dispôs, a seguir, sobre o produto do trabalho assim auferido, resguardando-lhes os bens dessa forma adquiridos, podendo deles livremente se desfazer, obedecidas apenas as exceções previstas na legislação pertinente; como resguardada ficava das dívidas do marido, a não ser que estas houvessem sido contraídas em beneficio da família, Art. 246 e parágrafo único.

Ademais, outras mudanças realizadas pelo Estatuto da Mulher Casada ampliaram o direito da mulher em constituir bens reservados. Todas essas mudanças foram significativas para a mulher, que aos poucos se estabeleceu na vida privada e, sobretudo na pública.


Lei do Divórcio, Lei nº 6.515, de 26 de Dezembro De 1977 

No que se refere à Lei do Divórcio, é importante destacar a Emenda Constitucional n°. 9, de 28 de junho de 1977, que conferiu nova redação ao § 1º do artigo 175 da Constituição Federal de 1967. 

 De acordo com Cabral (2008, p.47), a emenda mencionada “é a matriz do estatuto do divórcio no país”, isso porque a partir dela passou-se a discutir o tema no Congresso Nacional, o que deu origem à Lei n°. 6.515, de 26 de dezembro de 1977, a Lei do Divórcio.

A referida lei regulou os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento, além de “inúmeras outras modificações importantes no Direito de Família vieram no bojo dessa lei, significando um passo importante na modernização do Direito de Família. Porém, a condição de subalternidade da mulher continuou latente” (CABRAL, 2008, p. 47).

Entre as mudanças trazidas pela lei, merece relevo o fato de que a partir dela a mulher não foi mais obrigada a permanecer com o sobrenome do marido após o divórcio; todavia, se fosse a vontade da mulher, essa poderia continuar com o sobrenome do marido, conforme consta do Art. 17 da Lei n° 6.515 de 26 de Dezembro de 1977: 

Art 17 - Vencida na ação de separação judicial (Art. 5º “caput”), voltará a mulher a usar o nome de solteira. § 1º - Aplica-se, ainda, o disposto neste artigo, quando é da mulher a iniciativa da separação judicial com fundamento nos §§ 1º e 2º do Art. 5º. § 2º - Nos demais casos, caberá à mulher a opção pela conservação do nome de casada. Art 18 - Vencedora na ação de separação judicial (Art. 5º “caput”), poderá a mulher renunciar, a qualquer momento, o direito de usar o nome do marido.

Tapedino (2001, p.45), sobre a condição da mulher à época, comenta que “às mulheres não se reconhecia espaço mais amplo que o da casa; o alcance de suas vozes, portanto, acabava se restringindo à esfera do privado, seja por meio da correspondência epistolar, seja mantendo diários que retratavam seu árido cotidiano”.

O comentário do autor é oportuno no sentido de contrastar as realidades e destacar as mudanças nessa condição da mulher na sociedade, pois embora tenha sido de forma lenta, muito se transformou com o passar do tempo, inclusive, e, sobretudo, com a promulgação da Constituição Federal de 1988.

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Sobre as autoras
Paula Lemos de Paula

Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (2014). Licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (2019). Especialista em Direitos humanos pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (2018) ; Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (2019).

Léia Comar Riva

Pós doutora - Programa de Pós-Doutoramento em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra - Faculdade de Direito (UC-FD - Portugal); Doutora em Direito Civil pela Usp

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAULA, Lemos ; RIVA, Léia Comar. Evolução histórica dos direitos das mulheres no direito de família brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5546, 7 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62448. Acesso em: 24 abr. 2024.

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