Resumo. O texto apresenta um panorama da prisão no Brasil e como ela é percebida pela população como elemento final de punição para os atos de violência. São ilustradas de forma resumida as relações advindas da ação da mídia sobre atos de violência e apresentados dados sobre o aparato do combate estatal aos crimes, inclusive com estatísticas da evolução do encarceramento e variação da criminalidade, questionando a forma como se coletam dados sobre este assunto no Brasil. A prisão é mostrada na sua acepção de privação de liberdade mas apresentada como elemento que não exaure a persecução estatal, já que muitas vezes apenas inicia a longa estrada da apuração de um ilícito que precisa ser vinculado ao suspeito de forma a gerar uma condenação, ainda que seja constantemente apresentada como espetáculo. Desta forma, os diversos operadores relacionados com a prisão em si devem ter um preparo adequado, inclusive os policiais que atuam no início do procedimento. A Segurança Pública é introduzida como um fenômeno multidimensional que não se abastece apenas de mais prisões ou de penas mais duras para produzir a sensação desejada pela população. As informações apresentadas questionam sobre o papel relevante da prisão na melhora da Segurança dentro da complexidade do fenômeno social, inclusive abordando possibilidades em que a prisão em si, longe de diminuir a violência, acaba por piorá-la.
Palavras-Chave. Segurança Pública. Prisão. Violência. Encarceramento.
1. Introdução.
Em um cenário de insegurança plena na população, surge comumente o recrudescimento precipitado das leis e os arautos das soluções mágicas para o complexo fenômeno da Segurança Pública. Neste quadro, aflora facilmente um clamor para um maior aprisionamento e, consequentemente, redução de benefícios de quaisquer ordem que possam resultar em saída do cárcere.
Tentando estabelecer um paralelo entre a Prisão e a Segurança Pública, trataremos aqui de prisão na sua acepção de medida de restrição de liberdade, que se manifesta processualmente falando, e de forma resumida, em provisória e permanente.
A presunção é que a prisão de uma pessoa apontada como criminosa pelas autoridades ajude a melhorar a segurança da sociedade.
Neste ponto, precisamos salientar um aspecto normalmente relegado: qual é o objetivo do Processo Penal? Relacioná-lo como meio de pacificação social, além de acrescentar ônus a seu papel, não coincide com sua posição epistemológica e é repelido dentro do contexto da mitologia no processo penal, onde se percebe a grande dificuldade que é desconstruir o entendimento simbólico do Processo Penal como instrumento de pacificação social (CASARA, 2015).
Retroagindo na história, seguindo uma versão mais resumida, o objetivo do Processo Penal é aplicar o próprio Direito Penal (TOURINHO FILHO, 1998), o que se insere na versão mais amplificada de que é o meio para solucionar com exatidão o litígio penal, apurando a verdade dos fatos, para aplicar, com justiça, a lei penal (FREDERICO MARQUES, 1997).
Se você perguntar para um leigo, contudo, qual é o objetivo do Processo Penal, este dirá que é prender o culpado. Não é, portanto, aplicar com justiça a lei penal indicada ao caso, que pode resultar em sanção diversa (prestação de serviços ou cesta básica, por exemplo). É mandar para a prisão!
Ilustrando esta realidade, mesmo no ambiente técnico, o trabalho realizado muitas vezes durante o inquérito policial se contenta com a prisão, esquecendo a longa fase até a condenação final. Percebemos que, materializada a prisão – em flagrante ou após uma preventiva indiciária -, a produção de outras provas esmaece. Em quantos inquéritos policiais a prova é calcada em uma ou duas testemunhas e em quantos destes a versão dada até pela suposta vítima – que serve para lastrear uma prisão – muda radicalmente posteriormente? Em quantos dos restantes a suposta vítima desaparece, espontaneamente ou não, impedindo sua oitiva em juízo?
A prisão inicial, contudo, seja flagrante ou preventiva, sacia a sede da mídia, incrementa estatísticas administrativas, viabiliza fama e alimenta as redes sociais, embora nem sempre ajude para a condenação.
Na mesma linha de pensamento, a condenação pura e simples não garante uma tranquilidade.
As pesquisas do CNJ apontam que pelo menos 25% dos condenados são reincidentes, número que pode chegar a perto de 70% ao considerarmos presos provisórios, conforme visto no relatório “Reincidência Criminal no Brasil” feito pelo Instituto de Pesquisa econômica Aplicada - IPEA em 2015.
Um outro aspecto a se ressaltar é o alcance do termo Segurança Pública em nossas vidas. A presença de policiais em cada esquina dá esta sensação de segurança? Uma pessoa que vive em um local com baixa violência, ao perceber a presença de forças de segurança em um espaço, associa o local como arriscado, nunca como seguro. Por outro lado, temos a convivência diária com a violência brutal em várias comunidades, normalmente desassistidas. Esta população, porém, não se sente confortável com as incursões policiais, muitas vezes reclamando de ter seu patrimônio violado pelas forças públicas ou de sofrer preconceito em abordagens. Estes são dois pequenos exemplos em que a presença de forças policiais não está associada com uma sensação de segurança.
Sem saber que tipo de Segurança Pública se deseja, como avaliar sua relação com eventuais prisões efetuadas?
Neste cenário, os números da violência e do aparato estatal são significativos, embora devam ser observados com ressalva, diante da grande dificuldade de coleta. Como conciliar o aumento exponencial do encarceramento no País, apto a elevá-lo aos primeiros lugares do mundo em pessoas privadas da liberdade, com o aumento da violência, apenas na ponderação dos homicídios violentos, sem sequer apreciarmos outros delitos?
2. O cenário da violência no Brasil.
Em qualquer meio de comunicação hoje em dia temos pessoas discutindo Direito e Segurança Pública. De jornalista ao motorista de táxi. De apresentadores a youtubers, passando por políticos, nossos amigos e parentes. "O Ministro tal do STF errou", "O sujeito é culpado", "A vítima mereceu" e por aí vamos.
A liberdade de manifestação que nos é dada na sociedade envolve até mesmo o direito de falarmos sobre assunto que não dominamos, mas este mesmo direito perde força nos meios de comunicação que se voltam a discutir cientificamente alguns fatos. Em Países mais desenvolvidos, é muito comum a presença de cientistas, professores universitários e estudiosos em horário nobre emitindo opiniões sobre assuntos palpitantes na mídia. No Brasil este papel é ocupado por aqueles que tem acesso à mídia aberta de massa. O público, por conseguinte, é doutrinado em um assunto científico de forma muitas vezes direcionada, quando poderia ser apresentado aos mesmos tópicos por pessoas preparadas cientificamente ou em espaços mais abertos a opiniões diversas.
Esta necessidade de preparo é significativa na área da Segurança Pública, onde também se percebe o caos informativo.
O Policial Militar, ao fazer o flagrante, exerce a função equivalente ao de um juiz (CERQUEIRA, 2010, pág. 41). Em sua atividade de combate ao crime, ele se depara com um fato. Ele enquadra o fato na norma. Ele avalia se o ilícito é antijurídico. Se o agente é culpável. E delibera se a prisão é cabível. Este profissional precisa ser bem treinado. Precisa ser bem pago. Precisa ser bem valorizado e cobrado.
Preso o cidadão e levado à delegacia, surgem as câmeras e o mercado da maldade. Apresentado como culpado para milhões e jogado na internet, a condenação está feita entre a população que desconhece os meandros do sistema processual e os detalhes da prisão propriamente dita. Eventual desmentido posterior será sempre cercado de olhares tortos, isto se forem lidos ou vistos, pois a sede é por notícia má, seguindo a máxima “se sangra dá ibope”.
O bandido esquarteja o ex-parceiro ainda vivo? O marginal atira na mulher grávida? O menor infrator esfaqueia uma senhora de 77 anos que voltava do mercadinho porque achou pouco o dinheiro? As notícias negativas sobre violência se sucedem e ocupam as manchetes, mas só permanecem nas mentes das pessoas por pouco tempo.
Como se diz na antropologia, o Brasil vive uma “incapacidade, como povo, de definir o que é intolerável como injustiça”(LEITE, 2017, Pág. 5), uma variante da banalização do mal, conforme a filósofa alemã Hannah Arendt já apregoava no pós-nazismo.
A população, contudo, sofre diuturnamente com os efeitos da violência ou do seu combate sem obter os mesmos destaques na mídia.
Bairros inteiros ficam sem transporte público por dias porque um chefe do tráfico morreu ou porque ele mandou. Milhares de alunos ficam sem aula porque a Polícia vai fazer uma incursão em uma comunidade. Neste aspecto, aliás, mil alunos ficam sem aulas diariamente no Rio de Janeiro (Bianchi, 2017), basicamente por conta das operações policiais contra a violência. E para quê? O Estado se retira em pouco tempo e a população volta à sua situação de exploração.
A maioria das pessoas desconhece quantos bairros da maioria – senão todas - capitais do País têm serviços que só funcionam com anuência do tráfico. Esta limitação envolve a entrada de carro do gás, agentes de saúde, correios e semelhantes (PALMA et al., 2017).
Em diversos locais do Brasil – as denominadas favelas do Rio de Janeiro são apenas exemplos midiáticos – o preço de vários serviços ou produtos é ditado pelos líderes da marginalidade. De gás de cozinha ao transporte de mototáxi. Os telespectadores que assistem aqueles tiroteios nos telejornais em horário nobre não conseguem inferir o que é ficar horas com seus filhos deitados no chão enquanto balas transpassam as paredes. Em gigantesca operação em outubro de 2017, o exército se uniu à Polícia Militar e invadiram a Comunidade da Rocinha no Rio de Janeiro, conseguindo apreender menos de 20 fuzis. A estimativa é que existam mais de 15mil nãos mãos da marginalidade (NOBLAT, 2017). Na mesma operação, aliás, a mídia noticiou que soldados do Exército estavam usando lenços com desenho de caveira para causar terror, prática de alguns policiais militares.
E não se culpe a instituição Polícia Militar pelo descalabro existente. Ela é uma vítima da má gestão no sistema. Em diversos Países, o policial é tratado como um profissional diferenciado, uma carreira até familiar. Há um respeito. Há um orgulho. Nós estamos assistindo a uma desmoralização das forças de segurança, alimentada por operações desastrosas e péssima – para não dizer nenhuma – gestão, limitada ao chavão de mais viaturas, mais armas e mais policiais. O profissional que deveria ser valorizado por colocar sua vida em risco começa a incutir medo naqueles que deveria proteger.
A situação atual fomenta um corporativismo daninho, maléfico e que acaba subvertendo os objetivos dos diversos operadores relacionados ao combate da violência.
Apenas para ilustrar este aspecto, enquanto o crime cresce, a população se amedronta e se afasta das forças de Segurança, a Polícia Militar impetrou ação judicial em 2017 para que a Guarda Municipal de São Paulo não mudasse o nome para Polícia Municipal (NIEDERAUER, 2017). É um exemplo de como o Sistema bate cabeça e a marginalidade vai agradecendo.
3. O estado real: a prática do combate à violência.
O aparato investigativo luta com parcos recursos e limitações enormes. O policial age seguindo inúmeras normas, sem armamento, sem gestão, sem apoio e cada vez com mais descrédito tentando produzir estatísticas positivas. O marginal só precisa de uma arma e um mínimo de intelecto para amedrontar uma população. Enquanto as peças humanas de reposição do lado da lei são difíceis e sofrem com orçamento, no lado da marginalidade existem aos montes.
Neste cenário caótico, alguns profissionais da linha de frente adotam regras próprias e assumem quaisquer posturas que levem à prisão de quem descobriu, elegeu ou escolheu como criminoso. Vale entrar em imóveis sem mandado, vale policial militar investigar, vale pressionar, vale ignorar as leis. Neste momento, o fundamento da prisão muitas vezes deixa de ter amparo legal e causará um desfecho técnico precário. No primeiro momento, temos uma prisão midiática, com exposição do acusado à coletividade como culpado capturado. No segundo momento, temos sua liberdade, normalmente em audiência de custódia, ocasionando o descrédito do aparato judicial e disseminando o lugar-comum de que “a polícia prende e a justiça solta”.
Este ciclo, longe de ajudar o Sistema de Segurança Pública, cria um padrão na ponta do sistema. O comportamento dos presos em audiências de custódia é repetitivo quanto a situações que sabem que podem ensejar a nulidade do flagrante.
Dentro da estrutura judicial propriamente dita, a situação não é melhor. Faltam juízes, promotores e defensores. Sem estes personagens, a prisão decretada perdurará por muito tempo, já que o processo não tem um andamento célere. Os prazos processuais para duração do feito criminal há muitos são superados com chancela jurisprudencial, inclusive. Em algumas cidades do interior não temos magistrados. Em outras não temos Promotores. Em muitas não temos os dois. Em quase todas não temos defensores públicos. Neste quadro, acontece com certa frequência de determinado criminoso ser solto não porque sua preventiva não é mais necessária, mas, sim, porque o processo não consegue percorrer suas etapas nos prazos toleráveis à luz da legislação e do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
Ainda quando todos os elementos estejam presentes – e acrescento a necessidade da presença do quadro de servidores das varas criminais– é usual que o Poder executivo não faça sua parte. Inúmeras audiências não acontecem porque os presos não são conduzidos por falta de viatura, de escolta ou de ambos.
Nós temos mais policiais militares em alguns estados do que a maior parte das forças armadas dos Países da América Latina. São Paulo, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2016, possuía cerca de 90mil em 2014. As Forças Armadas do Chile contam com 60,5 mil pessoas na ativa, enquanto a Argentina conta com 73 mil pessoas no serviço ativo das suas Forças Armadas. (ARMENDÁRIZ, 2016).
No outro extremo, percebemos um significativo aumento de cifras relacionadas ao encarceramento nos últimos anos.
A população carcerária cresceu cerca de 270% nos últimos quatorze anos, levando o Brasil às primeiras posições entre os países com mais presos no mundo, segundo dados divulgados em 2016 no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça. O mesmo relatório em 2015 já mostrava um crescimento da população penitenciária feminina no Brasil de 567,4% - entre 2000 e 2014 - e que o número de presos provisórios em 2014 era de 40% do total de encarcerados.
A análise estatística, mesmo com todas ressalvas que merecem os dados sobre violência no Brasil, sinalizam, sem razões para contestação, que enfrentamos um recrudescimento da violência, que continua a assustar os grandes centros e invade as pequenas cidades com velocidade estonteante. Temos cada vez mais um aumento dos crimes violentos, inclusive contra vítimas vulneráveis, como crianças e idosos, sem falar nos crimes de gênero.
Percebemos na estatística, também, sem sombra de dúvida, o aumento do aparato policial, desde o contingente das forças policiais até as forças privadas das empresas de segurança particular, passando pela presença cada vez mais significativa das guardas municipais. Notamos, com clareza, um aumento do encarceramento, mesmo com diversas tentativas de se esvaziar os cárceres.