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Títulos de crédito virtuais: existência e validade

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27/04/2018 às 15:20
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3. A EXISTÊNCIA DOS TÍTULOS DE CRÉDITO VIRTUAIS

De acordo com a nossa proposta apresentada de fazer um paralelo impróprio com a escada ponteana, iniciaremos debatendo se realmente existem os títulos de crédito virtuais. Na verdade, esta questão visa responder se as cambiais digitais podem ser chamadas de documentos e, se assim puderem, se as mesmas atendem ao princípio da cartularidade.

Vale frisar que a maior resistência aos títulos desmaterializados diz respeito a esta possível violação da cartularidade[41] e à incerteza da existência do documento, dada a ausência do suporte em papel.

Sendo assim, estudaremos a teoria do documento e faremos um paralelo da mesma com a cartularidade.

3.1. A TEORIA E O CONCEITO DE DOCUMENTO

Pela definição amplamente aceita na doutrina de documento, entende-se que é o objeto do qual podemos extrair alguma informação ou declaração[42].

Na sua origem etimológica, documento deriva do latim, de doccere, que quer dizer ensinar, informar. Sendo assim, podemos entender que o intuito de qualquer documento é carregar uma mensagem ou informação.

Neste sentido, muitos estudiosos dividem o documento entre o a matéria, o meio e conteúdo[43]. O matéria seria a materialidade do documento, ou seja, a manifestação do mesmo no mundo exterior. Na maioria das vezes, o suporte é o papel, dado que a escrita ainda é o meio mais eficaz de comunicação do homem. Entretanto, tal não é a única, pois temos, por exemplo, as fotografias, cuja matéria é o filme fotográfico.

O meio é a forma de representação da mensagem do documento, que pode ser escrito ou figurativo.

Já o conteúdo é, exatamente, a informação contida no documento[44]. No caso dos documentos escritos, é a própria significação dos caracteres. Na foto, por outro lado, a mensagem é a própria imagem que se forma, a qual revela aquele dado instante flagrado pela câmera.

Convém frisar que, no exemplo trazido, propositalmente, da fotografia, existe uma confusão entre o que é a matéria. Isto porque, muitos pensarão que a matéria é a foto revelada, quando, em verdade, a matéria é o filme, no qual está, verdadeiramente inserida a mensagem. Desta maneira, a fotografia revelada é apenas uma reprodução do documento.

Este exemplo é bastante emblemático para a compreensão dos documentos digitais. Ora, se já nos desapegamos da ideia de que documentos são apenas os de papel, podemos entender que as informações geradas em computadores, também se traduzem em documentos.

Isto porque essas informações carregam mensagens e têm um suporte. O conteúdo é sempre o que está escrito ou demonstrado (pois muitas vezes teremos figuras ou imagens), já a matéria serão os bits que carregam a mensagem. Aqui temos o paralelo com a fotografia, posto que muitos atribuem a matéria à mídia que carrega os bits, que pode ser um disco rígido, um CD ou mesmo um pen drive. Porém, na verdade, a matéria são os bits, que estão dentro destes meios e que, estes sim, carregam a mensagem.

Com estas ideias,

Apoiando-se na definição de documento de Carnelutti, é fácil inferir que a teoria dos documentos não apresenta qualquer restrição a sua desmaterialização. Mesmo considerando que a ideia de documento tende a identificar-se com um texto redigido por escrito, não mais subsiste a necessidade de base física papel. Quando Vivante adotou a remissão a documento, abriu a possibilidade para que o direito pudesse ser contido em qualquer suporte material – desde que represente uma coisa que possa fazer conhecer um fato.[45]

Sendo assim, temos que é perfeitamente possível enquadrarmos os documentos digitais dentro do conceito jurídico de documento sem necessidade de nenhuma “ginástica” ou flexibilização do conceito original.

Pelo conceito de Vivante temos que título de crédito é documento, por isto, temos que concluir que, em sendo os títulos de crédito virtuais documentos digitais criados em computador, estes são documentos, na acepção jurídica da palavra, que têm assim existência no ordenamento jurídico.

3.2. A CARTULARIDADE E OS DOCUMENTOS DIGITAIS

Como já vimos, a cartularidade é princípio cambial que visa dar segurança ao título de crédito, face a possibilidade de circulação do mesmo. Ocorre que, uma vez que admitimos supra a existência dos títulos de crédito como documento, teremos que compatibilizá-los com a cartularidade.

Como já discutido, dado que os arquivos digitais são documentos que têm existência jurídica, não haveria, em princípio problema com relação à cartularidade[46], pois basta apresentar o documento virtual e satisfeita estaria a exigência[47]. Entretanto, a principal característica dos documentos digitais é a facilidade de reprodução dos mesmos e a impossibilidade de determinar qual das cópias foi a primeira.

Sendo assim, criar-se-ia uma situação de insegurança, pois qualquer um poderia reproduzir a cártula e apresentá-la ao devedor reclamando o pagamento. Contudo, o legislador brasileiro já previu esta situação e criou um requisito ao título virtual para conferir-lhe segurança, prevendo que os títulos de crédito virtuais deverão ser sempre nominativos (§ 3º do artigo 889 do Código Civil[48]).

O título nominativo é aquele que é emitido a determinado beneficiário (nominal) e ainda que este beneficiário é indicado na escrituração do emitente (artigo 921, Código Civil[49]). Desta forma, aquele que emite o título sabe a quem tem de pagar. Além disso, para endosso do título nominativo é necessário termo, a ser registrado pelo emitente e assinado pelo endossante e pelo adquirente ou por endosso em preto em que conste o nome e assinatura do endossatário (artigos 922 e 923 do Código Civil[50])[51].

Temos assim que os títulos virtuais devem sempre indicar o tomador, registrando-se, também, os endossos, de forma que fique claro ao devedor que aquele que está lhe apresentando o título é o seu credor[52].

Vale ressaltar que estas restrições impostas à circulação do título virtual, quais sejam a necessidade de nominação e endosso em preto, não mitigam a circulabilidade do crédito nem as vantagens da utilização da cambial, impondo, apenas, certos limites às mesmas em homenagem à segurança jurídica do ordenamento[53].

Uma das possibilidades de facilitação do uso dos títulos nominativos e consequente expansão dos títulos de crédito eletrônicos pode ser o exemplo do mercado de capitais, especialmente das ações nominativas. Vale dizer que o mercado de capitais foi pioneiro no uso do registro eletrônico de seus títulos[54] e, atualmente, utiliza apenas esta forma de controle[55].

Assim poder-se-ia criar um órgão ou instituto, até mesmo administrado pelos Bancos, em conjunto com o Banco Central, como temos hoje a CETIP (Central de Custódia e Liquidação Financeira de Títulos) para os títulos privados do mercado de valores[56]. Nesta proposição, toda vez que um indivíduo emitisse um título de crédito virtual, o mesmo seria registrado neste sistema eletrônico, o qual conteria o nome do tomador; ocorrendo endosso, este também constaria neste cadastro. Com esse sistema, inclusive, poder-se-ia possibilitar ao devedor efetuar o pagamento de forma eletrônica, facilitando ainda mais a adimplência do crédito.

Pelo exposto, temos que, ao apresentar a cártula digital o tomador terá de, necessariamente, estar indicado na mesma, originalmente ou por endosso, como beneficiário da mesma e, assim sendo, estará legitimado a receber do devedor o crédito correspondente. Essa comprovação poderá, ainda, ser ratificada através de uma instituição de custódia, para fortalecimento da segurança.

 Vemos assim que não está arruinada a cartularidade, a qual tem apenas que sofrer as adaptações necessárias a essa nova era, aliás como assim está sendo com todos os institutos jurídicos relevantes.


4. VALIDADE DOS TÍTULOS DE CRÉDITO VIRTUAIS

Pelo que já vimos, não há óbice ao entendimento dos títulos de crédito virtuais como documentos, na acepção jurídica do termo, contatando-se, assim, que os mesmos existem no mundo jurídico; entretanto, precisamos saber se, existindo no mundo jurídico, tais títulos têm validade e se as assinaturas lançadas nestes títulos podem ser consideradas válidas. Ainda analisaremos, também, a questão da circulação e das possíveis fragilidades da emissão virtual de cambiais.

4.1. ASSINATURA DOS TÍTULOS DE CRÉDITO VIRTUAIS

Antes de adentrar exatamente na validade dos títulos de crédito virtuais, temos que abordar a forma como os mesmos serão firmados, dado que, uma vez que serão emitidos de forma digital, não poderão conter a firma de próprio punho do emitente.

Neste sentido, a solução amplamente aceita e, inclusive, já normatizada é a utilização da assinatura digital, a qual é feita através do certificado digital. Esta é uma espécie de “carteira de identidade” que agrega-se ao documento eletrônico, atestando quem o produziu[57].

De forma suscinta:

Assim, assinatura digital é o resultado do emprego do sistema criptográfico de chaves públicas, gerando um conjunto de bits, dependendo do sistema empregado, pode constituir um arquivo em separado ou ser integrante do próprio corpo do documento eletrônico, um inter-relacionado ao documento, se este sofrer qualquer alteração a assinatura será invalidada. A chave para seu uso pessoal é confidencial (privada), a outra é de conhecimento público. A chave privada codifica os dados, gerando a assinatura digital e a pública serve para decodificar os mesmos dados, a assinatura só pode ser conferida pela chave pública correspondente, a decodificação é feita exclusivamente pelas autoridades certificadoras.[58]

Ora, a assinatura de próprio punho, nada mais é que a garantia de que o signatário produziu e concorda com o conteúdo do documento assinado[59]. Sendo assim, uma vez que a assinatura digital ou certificado digital permitem essa mesma garantia para os documentos eletrônicos, parece-nos lógico entender que o documento que possua esta assinatura terá a mesma validade de um documento firmado em papel[60].

Neste sentido o ordenamento jurídico brasileiro, desde o advento da Medida Provisória 2.200-2 já estende aos documentos assinados digitalmente a mesma validade jurídica que os assinados em papel[61].

Vale ressaltar que essa Medida Provisória também regulamentou o uso dos certificados digitais, criando a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil). Esta regulamentação visa dar segurança e garantir a validade dos documentos assinados em forma eletrônica[62].

A infraestrutura é dividida em Autoridade Certificadora Raiz, que é a que credencia os demais participantes da cadeia e audita e fiscaliza as atividades destas, as Autoridades Certificadoras, que são as que expedem os certificados digitais e mantêm os registros dos mesmos, sendo também responsáveis pela revogação dos mesmos, e as Autoridades de Registro, que são vinculadas a uma Certificadora e fazem a entrega do certificado ao usuário, mediante identificação deste[63].

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Vemos assim que a legislação criou uma estrutura complexa com o fito de dar respaldo ao uso dos documentos eletrônicos, dado que esta é uma realidade inegável. Até por isso, o artigo da Medida Provisória foi claro em estabelecer que os documentos assinados digitalmente terão a mesma validade dos físicos[64].

Em sendo assim, partindo do pressuposto já concluído no capítulo anterior de que o título de crédito virtual é um documento válido e aceito, se este estiver assinado digitalmente, teremos uma cártula perfeita, desde que atendidos os demais requisitos legais de saque da cambial.

Muitos levantarão a questão da possibilidade de fraude no certificado digital, bem como de adulteração do arquivo após a assinatura; porém esses questionamentos não merecem guarida, como veremos.

Com relação à fraude do certificado, não obstante a mesma ser possível, será muito difícil, pois as Autoridades Certificadoras que validam as assinaturas, sendo assim para que a fraude tenha algum valor deverá invadir os registros de uma Certificadora, o qual é extremamente protegido pela tecnologia mais avançada disponível[65].

Ainda assim, existe a possibilidade de fraude, porém essa será tão remota que até trará mais segurança à atividade econômica, visto que qualquer um pode fraudar uma assinatura física e existem falsários que o podem fazer com um nível de semelhança que pode enganar um perito. Já a fraude ao certificado digital está mais restrita e, à medida que essas fraudes forem acontecendo, novos mecanismos de proteção serão instalados para coibi-las.

Certamente, dado que não vivemos num mundo perfeito, os títulos de crédito virtual darão aso a ilícitos, mas uma vez demonstrado que suas bases são seguras e que, na maioria dos casos, as fraudes serão facilmente expostas, parece-nos que a alternativa é viável.

Por outro lado, quanto à possibilidade de adulteração posterior do documento assinado eletronicamente, esta não preocupa, pois dada a criptografia inserida pelo certificado digital, quando o documento sofre qualquer alteração, esta o inviabiliza, tornando-o ilegível e mesmo incompreensível[66].

4.2. VALIDADE DOS TÍTULOS DE CRÉDITO VIRTUAIS

Os títulos de crédito típicos mais utilizados, tais como o cheque, duplicata, nota promissória e letra de câmbio estão regulados por leis especiais, contando estas leis já com certa longevidade que as impossibilitou de abordar o tema da emissão digital dos títulos.

Neste espeque, não encontramos na legislação extravagante, até o momento, previsão quanto à validade da emissão de cártulas virtuais. Por outro lado, tais legislações não a proíbem.

O Código Civil de 2002, em notável evolução legislativa previu e aceitou a possibilidade de emissão de títulos de crédito virtuais, desde que os mesmos sejam feitos na forma nominativa.

Assim restou aprovado o texto legislativo do § 3º do artigo 889 do Código Civil: O título poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo[67].

Vemos assim que o Código autoriza, expressamente, a emissão das cambiais digitais, desde que cumpridos os requisitos legais.

Neste espeque, não temos dúvida quanto à possibilidade de emissão destes títulos eletrônicos, no que pertine às cambiais não reguladas por lei especial e dos títulos de crédito atípicos[68].

Ocorre, contudo, alguma controvérsia quando tratamos da possibilidade de aplicação deste dispositivo aos títulos regidos por lei especial[69].

Isto porque, conforme consta no artigo 903 do mesmo Código[70], as disposições deste aplicam-se a todos os títulos de crédito, salvo disposição diversa da lei extravagante. Ora, sendo assim, o Código Civil de 2002 passou a ser a lei supletiva de toda a disciplina cambiária, aplicável em tudo o que não colidir com as normas específicas.

Nesta senda, como já abordamos, dado que as leis especiais não proíbem a emissão de títulos de crédito virtuais e posto que o Código Civil assim autoriza, permitido está o saque destas cambiais digitais.

Necessário ressaltar que este raciocínio baseia-se no princípio da legalidade. Em sendo assim, posto que não está proibida a emissão dos títulos de crédito virtuais, estão os mesmos facultados. Aliás, este mesmo raciocínio foi usado para a duplicata virtual, com aceitação doutrinária e jurisprudencial, pelo mesmo fundamento de ausência de impedimento legal[71].

Há, entretanto quem seja contra, fundado no preceito de que as leis especiais não poderiam vetar os títulos digitais, pois tais não existiam quando da sua elaboração e por isso seria necessária alteração expressa destas leis[72].

Ao nosso ver, dado que o direito privado é regido pelo princípio da legalidade, ou seja, aquilo que não está proibido nem obrigado está facultado, entendemos que a disposição do Código Civil autoriza a emissão dos títulos de crédito virtuais mesmo para aquelas cártulas que tenham regramento específico anterior ao Código[73].

Sendo assim, parece-nos que, com o advento do Código Civil de 2002, os títulos de crédito tomaram uma feição tal que tornou-se possível a emissão destes na forma eletrônica, sem necessidade de novas alterações legislativas ou mesmo adaptações aos princípios já aceitos.

Nesta perspectiva, conseguimos dar feição moderna a este consagrado instituto que pela sua própria evolução chegou a patamar tal que o consagrado jurista Pontes de Miranda assim afirmou:

O direito cambiário chegou a tão grande harmonia de técnicas e a técnica tão longe levou seu intuito de harmonizar interesses particulares e do público, que o sacrifício de qualquer elemento significa, sempre, erro de justiça.[74]

Por isto, entendemos, concordando com o referido autor, que é da necessidade da melhor técnica jurídica harmonizar os princípios, características e regras dos títulos de crédito com a nova realidade virtual, para manter a efetividade e sucesso do instituto.

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Sobre o autor
César Oliveira Ribeiro

Advogado; bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (2008); especialista em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia; especialista em Direito Empresarial e Advocacia Empresarial pela Universidade Anhanguera-Uniderp; especialista em Direito do Consumidor pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP - Faculdade São Leopoldo Mandic. Atualmente é sócio - Tawil, Ribeiro e Stallone Advocacia e Consultoria. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Comercial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, César Oliveira. Títulos de crédito virtuais: existência e validade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5413, 27 abr. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63372. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Este artigo foi apresentado como trabalho de conclusão de curso na especialização em Direito Empresarial na LFG - Universidade Anhanguera

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