DA QUEBRA DA ISONOMIA TRIBUTÁRIA, RELATIVA ÀS UNIDADES CONSUMIDORAS DESLIGADAS
No intróito, afirmou-se que uma das funções da tributação é distribuir o custo dos serviços universais entre os cidadãos, de modo que cada um seja chamado a contribuir, nos limites das suas forças, e auxilie na manutenção da cidade ou do Estado. Tal assertiva prescreve o postulado do princípio da solidariedade, cujo vértice orienta a obrigação de todos para com o custeio da máquina pública e do qual decorre o dever fundamental de pagar aquilo que foi legitimamente previsto e regularmente constituído, respeitadas as limitações ao poder de tributar.
Em que pese o escopo da solidariedade, a Magna Carta, no artigo 150, inc. II, prescreve que é vedado:
Art. 150. [...]
II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;
Referido dispositivo versa sobre o princípio da isonomia, cujo vetor estabelece a proibição de estabelecer tratamento desigual entre contribuintes que se acham em equivalente situação. Em outras palavras: ao estabelecer as normas tributárias é defeso ao legislador ordinário criar privilégios para um grupo de pessoas ou segmento, em detrimento de outros que estejam em idêntica condição.
Neste escorço, destaca-se que a iluminação pública tem como finalidade a segurança, permitindo que os cidadãos exerçam seu direito de ir e vir com tranquilidade, ao passo que minimiza as ações dos delinquentes que, encobertos pelas sombras da noite, cometem delitos. Ruas iluminadas trazem sensação de cuidado, zelo e segurança. Em face disto, todos os usuários do aludido serviço devem contribuir para o custeio deste importante serviço universal.
A LCM 474/2017, ao estabelecer que a base de cálculo tomará por referência o consumo da energia, quer nos imóveis residenciais ou não, implicitamente estabeleceu um critério não isonômico, posto que nos imóveis edificados cujas unidades de energia estejam desativadas, desligadas ou com o fornecimento suspenso, seus proprietários ficarão à margem da incidência.
Ao que parece, o Legislador Municipal criou, anomalamente, uma não incidência ou isenção. Por via transversa e irregular, afastou a exação dos proprietários cujos imóveis estejam desocupados e com a unidade de energia inativa. Na hipótese, o consumo será igual a zero e, portanto, inexistirá valor a ser exigido, nos termos dos incisos II e III, do artigo 4º, do referido diploma municipal.
Frise-se que a iluminação pública vincula-se à segurança pública, observando que os imóveis sem edificações ou baldios, assim como os edificados mas que estão desocupados ou abandonados; potencializam os riscos, servindo de covis para o cometimento de crimes. A pergunta que resta é: por qual motivo os proprietários dos imóveis edificados e sem consumo de energia ficarão à margem da cobrança da COSIP?
Na cidade de Joinville é notório o número de imóveis desocupados. Basta circular pelos bairros que se constatará a quantidade de casas, apartamentos e quitinetes ociosos, ostentando nas faixadas placas para locação. Muitos são frutos de especulações imobiliárias e seus proprietários caminharão incólumes, sem serem molestados para pagar a COSIP, transferindo este encargo aos demais cidadãos, sejam eles proprietários ou meros locatários, em flagrante ofensa aos postulados da igualdade[ix] de todos perante a lei, da isonomia tributária e, principalmente, da solidariedade.
Diferentemente ocorrerá com os proprietários de imóveis não edificados, nos termos inciso I, do artigo 4º, da referida lei local, os quais serão tributados de acordo com a testada do imóvel. Se assim é, qual a justificativa para instituição do tratamento não isonômico?
DA OBSTRUÇÃO AO EXERCÍCIO DO DIREITO AO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA
Indubitavelmente, a COSIP é tributo e, como tal, deve se submeter às regras e princípios gerais e tributários, em toda sua extensão, especialmente ao que se refere ao direito de insurgência preconizado no inciso LV[x], do artigo 5º, da Magna Carta, combinado com os artigos 145, I[xi] e 151, III[xii], do CTN, e disposições da Lei Municipal nº 4.857/2003, a qual dispõe sobre a Junta de Recursos Administrativo-Tributários (JURAT) e o Processo Administrativo Contencioso.
É cediço que qualquer exigência tributária deve vir acompanhada da concessão de oportunidade, ao sujeito passivo, de exercer seu direito de se insurgir. Ocorre que, em consonância à forma como está instrumentalizada a arrecadação do tributo em tela, em nenhuma hipótese o sujeito passivo poderá discutir, administrativamente, os contornos do que lhe for exigido, visto que a Concessionária não suprimirá da fatura de energia o valor da COSIP.
A tributação é a mais pura manifestação do poder do Estado, cuja imposição agride as liberdades e o patrimônio do cidadão. Por ser a República Federativa do Brasil um Estado de alma liberal, embora de viés social, a Magna Carta determina que nenhum tributo pode ser exigido sem antes ter seus contornos e limites estabelecidos pelo Legislador, o qual, por sua vez, deve respeitar os inúmeros princípios que limitam o próprio poder de tributar, assim como as leis complementares que disciplinam normas gerais, à luz do artigo 146, do texto constitucional.
A Magna Carta, ao delimitar o universo de tributos a serem instituídos e arrecadados pelos entes estatais, estabeleceu diversos critérios intrínsecos e extrínsecos de cunho instransponível, os quais se acham materializados sob a envergadura de princípios gerais da ordem jurídica e específicos do direito tributário, formando um verdadeiro código de defesa do contribuinte e que se traduzem numa verdadeira masmorra à voracidade fiscal.
Ao obstar o exercício do direito ao contraditório e à ampla defesa, independente da correção do valor a ser recolhido, o Município de Joinville, em cooperação com a Concessionária, corrompe todos os princípios da ordem tributária e macula inteiramente a arrecadação da COSIP, pois age com deslealdade e fragrante desrespeito às regras e postulados em que se estriba a República Federativa do Brasil que, na qualidade de um Estado Democrático de Direito, impõe aos Governantes o máximo respeito à Constituição Federal e ao arcabouço jurídico positivado.
A única forma do cidadão contribuinte não recolher a COSIP e, com isto, exercer seu direito de impugnar, é não adimplir a fatura de energia elétrica, sujeitando-se ao risco de suspensão do fornecimento, assim como seu nome ser lançado no rol da entidade que presta serviços de proteção ao crédito. Além obstacularizar o exercício do direito à ampla defesa e ao contraditório, trata-se de meio ilegal, abusivo e arbitrário de cobrança, contrário aos postulados tributários presente na ordem jurídica pátria.
DA ERRÔNEA APLICAÇÃO DOS ACRÉSCIMOS, NA HIPÓTESE DE INADIMPLÊNCIA
Por força da legislação municipal e pela errônea delegação da capacidade tributária ativa à Concessionária do serviço de energia, incumbindo-lhe todas as praxes tributárias, especialmente a de realizar o lançamento tributário, constituindo o crédito tributário, assim como realizar a cobrança; existe mais um ponto neste poço de irregularidades: a aplicação dos acréscimos moratórios na hipótese de inadimplência.
É cediço que o serviço de energia elétrica se traduz numa relação de consumo e, como tal, submete-se às regras do Código de Defesa do Consumidor (CDC)[xiii] em toda sua extensão, especificamente no que concerne à aplicação dos acréscimos moratórios, em caso de inadimplência.
Segundo o CDC, os acréscimos a serem aplicados são: a) juros legais, na razão de 1% (um por cento) ao mês; b) atualização monetária, segundo índice oficial; e, c) multa de mora, não superior a 2% (dois por cento). Tais disposições divergem e contrariam o disposto no artigo 8º, da LCM nº 136/2002, in verbis: “Art. 8º - O não pagamento da contribuição nos prazos previstos sujeitará o contribuinte aos acréscimos determinados pela legislação vigente”.
Destaca-se que a legislação tributária municipal estabelece que os acréscimos a serem aplicados, no caso de inadimplência, são a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic) para títulos federais, tida como juros moratórios, vedada a aplicação de qualquer outro índice a título de atualização monetária; e, por outro lado, a multa moratória será ela de 0,33% (zero vírgula trinta e três por cento) ao dia, limitada a 10% (dez por cento) ao mês, conforme dispõe o artigo 10, §§3º e 4º, da Lei Municipal nº 1.715/1979, com redação da LCM nº 305/2009:
Art. 10. Os débitos decorrentes de tributos e contribuições de competência municipal, cujos fatos geradores ocorrerem a partir de 1º de janeiro de 2010, não pagos nos prazos previstos na legislação tributária, serão acrescidos de multa de mora, calculada com o índice de 0,33% (trinta e três centésimos por cento), por dia de atraso, até o limite máximo de 10% (dez por cento). [...]
§ 3º Sobre os débitos a que se refere este artigo, assim como sobre os que tiveram data de vencimento anterior incidirão juros de mora calculados de acordo com o índice referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia - SELIC, para títulos federais, acumulado mensalmente, calculado a partir do primeiro dia do mês subseqüente ao do prazo de vencimento até o mês anterior ao do pagamento e de um por cento no mês de pagamento.
§ 4º Além do estabelecido nos parágrafos anteriores, não será estabelecido índice específico para aplicação de correção monetária. [...]
À luz disto, verifica-se que a Concessionária, ao aplicar os índices de atualização, deve aplicar a legislação municipal, sob pena de subtrair do erário joinvilense valores atinentes aos acréscimos moratórios.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme explanado ao longo deste arrazoado, a COSIP joinvilense se tornou um poço de irregularidades, visto que as alterações promovidas pela LCM nº 474/2017 na LCM nº 136/2002 transgridem inúmeras regras tributárias e diversos princípios gerais e específicos do direito tributário.
A novel regulamentação introduzida a partir do ano de 2018 viola, de plano, os princípios da irretroatividade e da anterioridade da lei tributária, na medida em que a exação devida no mês de janeiro não poderia se constituir com base no consumo da energia, mas sim deveria ser com base da testada do imóvel, posto que o valor consumido refere-se ao mês de dezembro, tempo em que vigia a redação anterior da LCM nº 136/2002.
Além das referidas violações, a nova lei fere o princípio da isonomia tributária, na medida em que ficaram fora do campo de incidência os imóveis cuja unidade de energia esteja desligada, inativa ou com o fornecimento suspenso. Deste modo, os proprietários dos ditos imóveis não serão contribuintes da COSIP, diferentemente do que ocorrerá com os proprietários dos imóveis não edificados, os quais serão tributados com base na testada do imóvel.
Além das violações dos princípios tributários, a novel regulamentação privatizou a atividade de lançamento tributário, delegando-a à Concessionária do serviço de energia, típica pessoa jurídica de direito privado. Sabidamente, o lançamento tributário é atividade vinculada, insuscetível de ser executada por autoridade que não detenha competência, assim como jamais pode ser outorgada a pessoas ou agentes estranhos ao poder público.
Ao privatizar o lançamento tributário, a novel LCM delegou à iniciativa privada aquilo que o CTN diz que é indelegável. Desta feita, subverteu todas as regras atinentes à administração tributária, em fragrante ofensa à Magna Carta e aos princípios que norteiam a arrecadação.
Não sendo suficiente a agressão aos princípios tributários, a nova sistemática arrecadatória obsta o exercício do direito ao contraditório e à ampla defesa, sabidamente um dos mais importantes princípios e estruturante do Estado Democrático de Direito, sobre o qual se alicerça a República Federativa do Brasil. Somente por via da inadimplência e do risco da suspensão do fornecimento da energia e de ter o nome inscrito no órgão que presta serviços de proteção ao crédito, o cidadão contribuinte poderá, quem sabe, questionar administrativamente a exação. Ademais, trata-se de cobrança arbitrária e abusiva.
Fechando o rol de atrocidades tributárias, os índices a serem aplicados no caso de inadimplência devem ser aqueles previstos na legislação tributária, sendo inaplicáveis as normas atinentes ao CDC.
Por todo exposto, cumpre aos Vereadores joinvilenses o dever de, minuciosamente, revisar a sistemática de arrecadação adotada a partir da LCM nº 474/2017, evitando futuras aventuras judiciais.
NOTAS
[i] Art. 149. A Os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição, na forma das respectivas leis, para o custeio do serviço de iluminação pública, observado o disposto no art. 150, I e III.
Parágrafo único. É facultada a cobrança da contribuição a que se refere o caput, na fatura de consumo de energia elétrica.
[ii] Disponível em: http://www.miqueasliborio.com.br/do-pl-no-072017-mudanca-no-criterio-da-cobranca-da-cosip-e-suas-implicacoes-aos-municipes-joinvilenses/Acesso em 09/01/2018.
[iii] Tal disposição se acha internalizada no inciso II, do artigo 7º, da LCM nº 136/2002, com redação da LCM nº 474/2017.
[iv] Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.
[v] Art. 5º, II, da Constituição da República federativa do Brasil. “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.”
[vi] Art. 150, da Constituição da República federativa do Brasil. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça; [...].
[vii] Art. 7º [...]
§ 3º Não constitui delegação de competência o cometimento, a pessoas de direito privado, do encargo ou da função de arrecadar tributos.
[viii] Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.
Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional.
[ix] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]
[x] Art. 5º [...]
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
[xi] Art. 145. O lançamento regularmente notificado ao sujeito passivo só pode ser alterado em virtude de:
I - impugnação do sujeito passivo;
[xii] Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário: [...]
III - as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo;[...]
[xiii] Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 - Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências.