INTRODUÇÃO
Romancistas do direito tributário afirmam que a tributação visa a repartir o custo dos serviços universais entre os cidadãos, de forma que cada um, no limite das suas forças, seja solidariamente partícipe na construção da grande catedral coletiva. Sob este auspício teria a Magna Carta, implicitamente, consagrado o princípio do dever fundamental de pagar tributos, posto que dele decorre a salvaguarda ou a ruína das cidades ou até mesmo do Estado.
Referido dever fundamental foi cunhado na estreita brecha aberta dentre as impolutas liberdades erigidas do viés liberal, sob o qual o espectro do Estado Democrático de Direito, alicerce da República Federativa do Brasil, forjou um verdadeiro código de defesa do cidadão contribuinte, denominado de limitações ao poder de tributar, cujo escopo revela um intransponível campo de força ao fisco, contendo-o.
Na esteira, o Legislador Constituinte, ao estabelecer o rol de tributos a serem exigidos, estabeleceu e positivou inúmeras regras e princípios com o escopo de tolher a voracidade do governante, impedindo que ele se lance de forma abrupta e violenta à tributação. Com isto, procurou evitar exações desmedidas, abusivas e arbitrárias.
Tais disposições, no Município de Joinville, não passam de romances, onde cada leitor é livre para fantasiar ou delirar como desejar. É nesta toada que o presente arrazoado abordará alguns aspectos que tornam ilegítima a cobrança da Contribuição para o Custeio do Serviço de Iluminação Pública (COSIP), tributo este de competência dos Municípios e do Distrito Federal, nos termos do artigo 149-A[i], da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, com redação da Emenda Constitucional nº 39/2002.
No artigo intitulado “DO PL Nº 07/2017: MUDANÇA NO CRITÉRIO DA COBRANÇA DA COSIP E SUAS IMPLICAÇÕES AOS MUNÍCIPES JOINVILENSES”[ii], critiquei as modificações que se pretendia introduzir na sistemática de arrecadação do referido tributo, assim como destaquei certas inconsistências legais e até mesmo constitucionais.
Na ocasião, a legislatura que se inaugurava era composta por Vereadores experientes ou muitos que debutavam na casa. Todavia, de forma amadora e prematura, esmagadoramente o aludido PL foi aprovado. Apenas os edis Odir Nunes (PSDB), Rodrigo Coelho (PSB) e Wilson Paraíba (PSB) votaram em sentido contrário.
Com as luzes do ano de 2018 sobreveio a surpresa. Além da majoração exorbitante do valor, pela equivocada adoção do valor do consumo de energia como base de cálculo, cujo efeito dobrou o importe antes recolhido, os munícipes receberam uma bela estocada no bolso com a dupla cobrança do tributo na fatura de energia vencida já nos primeiros dias do mês de janeiro, erro imediatamente identificado e com o compromisso de reparação e restituição da cobrança indevida.
A COSIP joinvilense é mesmo um poço de irregularidades. É nesta batida, e sem o propósito de exaurir o tema, que este arrazoado abordará cinco pontos pertinentes: a ofensa aos princípios da irretroatividade e da anterioridade; a irregularidade no lançamento tributário e nulidade da cobrança; a quebra da isonomia tributária, relativa aos imóveis cujo fornecimento de energia esteja suspenso; a obstrução ao exercício do direito ao contraditório e da ampla defesa; e a errônea aplicação dos acréscimos, na hipótese de inadimplência.
Embora relevantes, não serão abordados ou analisados temas como o aspecto quantitativo do tributo (adoção do consumo como base de cálculo), o princípio da capacidade contributiva, a abusividade do aumento, dentre outros. Isso porque tais temáticas já foram objeto de abordagem no artigo supracitado.
DA OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA IRRETROATIVIDADE E DA ANTERIODADE
Versa a Constituição Federal, em seu artigo 150, inciso III, alíneas “a” e “b”:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...]
III - cobrar tributos:
a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado;
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou; [...].
O princípio da irretroatividade proíbe que seja exigido tributo cujo fato gerador tenha ocorrido antes da vigência da lei tributária que o tenha instituído ou aumentado. Trata-se de corolário do princípio da segurança jurídica. Seu viés é proibir que o cidadão seja expropriado por aquilo que, ao tempo da sua prática, não estava previsto em lei ou que estava normatizado de forma diversa.
Por seu turno, o princípio da anterioridade determina que nenhuma exação poderá ocorrer dentro do mesmo ano de publicação da lei. Ela deve ocorrer a partir do primeiro dia do exercício financeiro seguinte ao da publicação do diploma legal que haja instituído ou aumentado o tributo. Tal disposição é a mais elementar das limitações ao poder de tributar e proíbe que o governante exija o tributo de forma antecipada, ao arrepio da legalidade.
No caso em epígrafe, a Lei Complementar Municipal (LCM) nº 136/2002, com a redação da LCM nº 474/2017, alterou a regra matriz da COSIP joinvilense e adotou como base de cálculo o consumo da energia, quer nas residências ou não, nos termos dos artigos 2º e 4º. A novel sistemática de apuração, inequivocamente, majorou o quantum a ser recolhido, reclamando observância dos princípios da anterioridade e irretroatividade, nos termos definidos no artigo 149-A, da Magna Carta.
Importa registrar que o valor da COSIP que deve, necessariamente, figurar na fatura de energia vencida no janeiro de 2018 é aquele calculado de acordo com a regra anterior. No caso, leva-se em conta a testada do imóvel, uma vez que tal fatura se refere ao custo da energia consumida no mês de dezembro de 2017, ou em parte dele, tempo que em vigia a lei anterior.
Somente o valor do consumo da energia ocorrido entre 01/01 a 31/01/2018 autoriza a novel exação, devendo ela ocorrer na fatura com vencimento no mês seguinte ao da medição. Do contrário, estar-se-á diante de flagrante inconstitucionalidade, por ofensa aos princípios da irretroatividade e da anterioridade, reclamando imediata intervenção dos órgãos de proteção aos direitos individuais e difusos.
DA IRREGULARIDADE NO LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO
É cediço que o parágrafo único do artigo 149-A[iii], supramencionado, permite a instrumentalização a cobrança da COSIP por intermédio da sua inserção na fatura de consumo de energia elétrica. Referida faculdade não autoriza a delegação, à Concessionária do serviço de energia, de atribuições cujo múnus é exclusivo de autoridade pública e que somente por ela poderão ser exercidas.
Nesta toada, registra-se que a arrecadação dos tributos somente pode se dar por intermédio do exercício de atividade administrativa plenamente vinculada, na forma prevista no artigo 3º[iv], da Lei Federal nº 5.172/1966 (Código Tributário Nacional – CTN). Tal prescrição decorre dos princípios da legalidade[v] e da legalidade tributária[vi]. Seu escopo subtrai a discricionariedade da autoridade competente para exigir o tributo, impedindo-a de exercitar a tributação ou arrecadação de uma forma não prevista em lei. A severidade da vinculação da atividade arrecadatória traz como deslinde a possibilidade de responsabilização funcional da autoridade tributária que agir fora dos ditames legais, revelando a envergadura da rigidez tributária no ordenamento jurídico pátrio.
A vinculação da atividade arrecadatória determina que os tributos somente podem ser exigidos por intermédio de autoridade investida da competência para praticar os atos inerentes à constituição do crédito tributário: no caso, praticar o lançamento tributário. Em nenhuma hipótese tal atividade pode ser delegada à iniciativa privada, posto que trata-se de função que somente pode ser realizada por autoridade competente, isto é, um Auditor Fiscal da Receita Municipal, conforme preconiza o artigo 143-A, da Lei Municipal nº 1.715/1979, com redação da LCM nº 488, de 27 de outubro de 2017:
Art. 143-A. Compete ao Auditor Fiscal da Receita Municipal a constituição de crédito tributário, mediante procedimento administrativo de lançamento dos tributos de competência do município, bem como a homologação dos procedimentos adotados pelo sujeito passivo.
Ademais, o artigo 7º, do CTN, ao versar sobre a competência tributária, dispõe, sobre a capacidade tributária ativa, que somente pode haver delegação à outra pessoa jurídica de direito público:
Art. 7º A competência tributária é indelegável, salvo atribuição das funções de arrecadar ou fiscalizar tributos, ou de executar leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária, conferida por uma pessoa jurídica de direito público a outra [...].
Importa esclarecer que realizar a cobrança na fatura da energia, nos termos preconizados no parágrafo único, do artigo 149-A, da Magna Carta, não configura delegação da competência tributária à Concessionária do serviço de energia, conforme estabelece o §3º[vii], do artigo 7º, do CTN.
Frise-se que a competência tributária é atribuição exclusiva do poder público e somente pode ser delegada a outra pessoa jurídica de direito publico, limitada à parcela que se denomina de capacidade tributária ativa, traduzida, na expressão do caput do artigo 7º, do CTN, como “funções de arrecadar ou fiscalizar tributos, ou de executar leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária”. Em nenhuma hipótese admite-se sua outorga a uma pessoa jurídica de direito privado.
Neste contexto se insere o lançamento tributário, procedimento essencialmente formal e que exige a máxima observância das disposições legais de cunho procedimental e, especialmente, das disposições materiais previstas na regra matriz de incidência do tributo em questão. Trata-se de atividade administrativa vinculada e obrigatória, que impõe a responsabilização pessoal do agente.
Ademais, a dicção do artigo 142[viii], do CTN, aduz que a autoridade competente possui o dever de investigação e de apurar as circunstâncias do fato imponível, assim como promover seu adequado enquadramento à norma, bem como determinar a natureza da obrigação, quantificar seu montante, identificar o sujeito passivo e aplicar as penalidades eventualmente cabíveis. Apenas com a realização precisa do procedimento é que o Fisco poderá se impor frente ao sujeito passivo e dele exigir a satisfação do dever jurídico, qual seja, pagar o quantum devido.
Ao analisar as disposições da LCM nº 136/2002, com a alteração correlata, verifica-se que à Concessionária do serviço de energia, nítida pessoa jurídica de direito privado, foi outorgada muito mais que a faculdade da cobrança. À ela foi entregue o fino mister de praticar o lançamento tributário, nos termos do parágrafo único, do art. 9º:
Art. 9º Fica, a concessionária de energia elétrica, como responsável pela cobrança e recolhimento da Contribuição dos usuários cadastrados junto a ela, devendo transferir o montante arrecadado para a conta do Tesouro Municipal especialmente designada para tal fim, sob pena de responder civil e criminalmente pelo não cumprimento do aqui disposto.
Parágrafo único. A concessionária fará apuração do consumo de energia elétrica de cada uma de suas unidades consumidoras a cada mês e recolherá os valores da COSIP relativos a cada uma dessas unidades, no valor corresponderá à faixa de consumo, conforme inciso II e III do art. 4º. Grifei.
O que descreve o dito artigo, em fina síntase, é o que preconiza o artigo 142, do CTN. Em flagrante agressão ao ordenamento tributário, o Município de Joinville outorgou as Centrais Elétricas de Santa Catarina S.A (CELESC), sociedade de economia mista e, portanto, pessoa jurídica de direito privado, competência para aplicar a legislação tributária municipal, apurar o quantum devido (certificar o consumo e determinar o valor a ser pago), identificar o sujeito passivo e cientificá-lo da exigência tributária (artigo 145, caput – CTN). Traduzindo: delegou a capacidade tributária ativa a uma pessoa estranha e incólume ao direito público, assim como privatizou o lançamento tributário.
À luz disto, há flagrante agressão ao Código Tributário Nacional e à Constituição Federal, no que tange ao inciso XXII, do artigo 37, com redação atribuída pela Emenda Constitucional nº 42/2003, o qual preconiza que a administração tributária, como atividade essencial ao funcionamento do Estado e, assim, uma atividade típica; deve ser exercida por servidores de carreira específica:
Art. 37. [...]
XXII - as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio. (Grifei).
A administração tributária é a atividade exercida pelo poder público e que se traduz no exercício das atribuições ou funções de arrecadar ou fiscalizar tributos e aplicar a legislação tributária ou executar serviços, atos ou decisões administrativas afetos à tributação, cujo poder se impõe aos destinatários, curvando-os ao comando.
Neste contexto está o lançamento tributário, cujo escopo é constituir o crédito tributário e tornar definitiva a relação jurídico-tributária nascida com a ocorrência do fato gerador. Ele não representa apenas uma singela formalidade destinada a assegurar o direito ao que é devido. É, também, uma proteção do sujeito passivo contra expropriações indevidas. Qualquer exigência desgarrada das formalidades essenciais não é arrecadação, mas simples arbitrariedade.
Frise-se, por derradeiro, que, não sendo o lançamento tributário realizado por quem de direito, inexiste crédito tributário e, portanto, a cobrança é ilegal, abusiva e arbitrária. É qualquer coisa, menos exigência tributária. O ato apenas se travestirá de regular, mas na essência estará fulminado por completo. Por estas e outras, a cobrança da COSIP é indevida, à luz das regras disciplinadas a partir da LCM nº 474/2017.