A usucapião e o provimento do Conselho Nacional de Justiça – CNJ n. 65/17

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17/01/2018 às 13:38
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1.A problemática envolvendo a usucapião extrajudicial

Apesar de ser um tema bastante antigo, esse assunto ocupa, atualmente, um lugar de grande e incontestável destaque nas discussões jurídicas.

Por certo, a sua relevância se dá por diversos motivos, entretanto alguns se destacam:

  1. Estamos vivenciando nos dias atuais o fenômeno da desjudicialização. Esse movimento tem sido incentivado por vários seguimentos públicos e privados há alguns anos, tendo como antecedente a absoluta impossibilidade do Poder Judiciário atender de forma eficaz a todas as demandas que lhe são encaminhadas somada a sua lentidão e a sua excessiva onerosidade. Existe hoje no nosso País e de certa forma esse é um movimento mundial, uma forte tendência de subtrair do Poder Judiciário todas as questões que não envolvam litigiosidade, a chamada jurisdição voluntária, transferindo-as aos Serviços Notariais e de Registro, em especial. Esse movimento chamado de desjudicialização se iniciou, no Brasil, em 1992, por meio da Lei nº 8.560/92, que regulou a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento e permitiu o reconhecimento de paternidade perante o Registrador Civil. A desjudicialização vem se intensificando a cada ano, sendo que a última grande novidade ocorreu com o advento do novo Código de Processo Civil, que no seu art. 1.071 e seguintes, permitiu que a usucapião fosse reconhecida extrajudicialmente. É bem verdade que esse diploma legal contém diversas imperfeições, no entanto, entendemos que, mais uma vez, caberá ao Poder Judiciário, conferir eficácia ao velho instituto da usucapião, assim como ocorreu com a exitosa Lei nº 11.441/07[2], que só alcançou todos os efeitos pretendidos pela sociedade em razão da Resolução nº 35/07, expedida pelo CNJ[3];

  1. Com relação à usucapião, a questão da desjudicialização assume importância significativa, cabendo salientar alguns pontos. Antes mesmo do novo Código de Processo Civil, nosso ordenamento jurídico já previa a possibilidade da usucapião extrajudicial, por meio da Lei nº 11.997/09[4], que trata do tema da regularização fundiária, dividindo-as em duas formas: a de interesse social e a de interesse específico, outorgando ao ocupante do lote regularizado o título de legitimação de posse, que será passível de registro, vide art. 167, I, 41, da Lei nº 6.015/73 (Lei de Registros Públicos). Uma vez registrado o título de legitimação de posse, após cinco anos, este será convertido em propriedade. Outra forma da usucapião extrajudicial, atualmente existente, é a usucapião administrativa de bens públicos, prevista na Medida Provisória nº 2.200/01 e Lei nº 11.481/07, que trata de terrenos de marinha e acrescidos, vide art. 22-A, da aludida Lei;

  1. Vale registrar que em 11 de julho de 2017 foi editada a Lei nº 13.465, que dispõe sobre a regularização fundiária urbana e rural, inclusive no âmbito da Amazônia Legal, alterando, substancialmente, os dois institutos mencionados na letra “b”, acima, ao conceder ao direito de laje o status de direito real, bem como reconheceu a criação da propriedade coletiva neste âmbito e ainda cunhou a legitimação fundiária como uma nova forma de aquisição originária de propriedade, entre outras;"

  1. A questão da falta de moradia e o comando constitucional que elevou o direito à moradia à condição de direito social, após a Emenda Constitucional nº 26/2000, o princípio da função social da propriedade (teorias subjetiva, objetiva e sociológica da posse), da função social da posse, da função social da cidade (art. 182, da CF/88) e do sobreprincípio da dignidade da pessoa humana (inciso III, do art. 1º, da CF/88), foram fatores determinantes que incentivaram o nosso legislador a rever e outorgar prioridade à matéria atinente à usucapião;

  1. É certo que a celeridade do procedimento não beneficiará apenas ao cidadão, à medida que a regularização imobiliária implica em relevante meio de incremento na arrecadação de receitas federais, estaduais e municipais, decorrentes da cobrança do IPTU, do ITBI e do ITCMD, foro, laudêmio, favorecendo diretamente a Administração Pública, em especial neste momento de grave crise financeira que assola os cofres públicos;

  1. Por fim, de forma surpreendente e célere, o legislativo nacional, por meio da edição da Lei nº 13.465/17, determinou que o silêncio do titular do direito real fosse interpretado como concordância. Indubitavelmente, esse era o maior óbice para que a usucapião lograsse êxito, mormente, na via extrajudicial. E, agora, ao apagar das luzes, o Conselho Nacional de Justiça publicou o Provimento nº 65/17, com o intuito de uniformizar as regras que tratam da usucapião extrajudicial e, consequentemente, conceder-lhe a almejada eficácia.

Destarte, tecidas essas considerações preliminares, voltemos ao tema que nos interessa: a usucapião. O fundamento principal do instituto da usucapião é conferir segurança jurídica a uma situação, que se consolidou com o decurso do tempo e que poderá transformar-se no robusto e desejado direito de propriedade ou de qualquer outro direito real, à exceção dos direitos reais de garantia.

Discorrendo ainda sobre a segurança jurídica, leia-se a lição do renomado jurista José Carlos de Moraes Salles: “Interessa à paz social a consolidação daquela situação de fato na pessoa do possuidor, convertendo-se em situação de direito, evitando-se, assim, que a instabilidade do possuidor possa eternizar-se, gerando discórdias e conflitos que afetem perigosamente a harmonia da coletividade”.[5]

Além de conferir segurança jurídica, outro importante fundamento da usucapião é a sua relevância social, pois o possuidor confere ao bem destinação útil e funcional, atendendo e dando efetividade aos preceitos constitucionais da função social da propriedade, do direito social à moradia e, consequentemente, ao sobreprincípio da dignidade da pessoa humana, viga mestra de todo o nosso sistema jurídico.

E, como todos sabem, tanto no reconhecimento extrajudicial, como na decisão judicial, trata-se de uma forma originária de aquisição de um determinado direito real, à exceção dos direitos reais de garantia. O registro da usucapião extrajudicial será declaratório e não constitutivo, como ocorre na forma de aquisição derivada, conforme nos ensina o artigo 1.245, do Código Civil, ao dizer “Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis”. Apesar do registro imobiliário, nessa hipótese, não ser constitutivo, conferirá a aquele bem oponibilidade erga omnes, i.e., absolutividade, assim como disponibilidade enquanto um direito real, vide art. 1.228, do Código Civil, a saber: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.”

Note-se que o direito preexiste, com o simples decurso do tempo e o exercício da posse qualificada, ou seja, da posse ad usucapionem, que é caracterizada pelo exercício de forma mansa, justa e ininterrupta de qualquer dos poderes inerentes à propriedade. Por essa razão, incorreto seria falar de animus domini, mas sim o ânimo do titular do direito usucapido, animo suo, posto que não só o direito real de propriedade poderá ser usucapível, mas qualquer outro previsto no art. 1.225 do nosso Código Civil, por exemplo, o direito real de usufruto, de servidão, de superfície, à exceção dos direitos reais de garantia, como já dito anteriormente.

Isso quer dizer que não é qualquer posse que conferirá o direito à usucapião, por exemplo, a posse ad interdicta não confere à possibilidade da aquisição pela usucapião, pois, neste caso, trata-se de uma posse que confere ao seu titular o direito à utilização da coisa, além da proteção possessória, no entanto, não conferirá ao seu titular a possibilidade da aquisição do direito de propriedade pela usucapião, como ocorre na posse exercida pelo locatário ou comodatário.

Outro requisito também fundamental para que seja reconhecida a usucapião é que a posse seja justa, isto é, que não seja violenta, clandestina ou precária. Sendo certo ainda, que as posses violentas e clandestinas poderão se convalescer desde que cesse a violência ou a clandestinidade (arts. 1.200 e 1.208 do CC/02)[6].

Por seu turno, não devemos confundir posse justa com justo título. Posse justa é aquela posse que não foi adquirida com violência, clandestinidade ou precariedade, ou seja, a posse não pode decorrer de coação física ou moral, não pode ter sido adquirida sem publicidade ou por violação do dever de restituição. Justo título é, segundo a definição de Leonardo Brandelli, “todo ato jurídico hábil, abstratamente considerado, a transferir ou constituir um direito real passível de usucapião, esteja registrado ou não, incluindo-se o compromisso de compra e venda quitado”[7].

Vale ressaltar que sendo a posse precária uma consequência da violação do dever de restituir a coisa (bem), como ocorre com o comodatário ou locatário, uma vez que, instado a devolver a coisa, não o faz, a sua posse, em regra, jamais será robusta o suficiente para gerar a usucapião.

Em linguagem técnica, dizemos que a posse precária não se convalesce, pelas razões já expostas acima.

Saliente-se, contudo, que boa parte da jurisprudência e da doutrina, entende que se trata de uma presunção iuris tantum, e.g., poderá haver alteração do caráter da posse, o que chamamos de interversão da posse, vide art. 1.203, do Código Civil Brasileiro[8].

Por exemplo, os caseiros não podem usucapir, pois são detentores e, portanto, não são possuidores, já que guardam o bem em decorrência de uma relação jurídica de subordinação para com o outro, como bem descreve o artigo 1.198 do nosso Código Civil[9].

Outra questão a ser enfrentada pelos operadores de direito ao analisar se o bem que se pretende usucapir poderá ou não ser objeto da usucapião, é a chamada de res habilis (coisa hábil).

Res Habilis quer dizer coisa hábil a ser usucapida. Nesse sentido, temos os bens, móveis e imóveis, e os direitos reais, à exceção dos direitos reais de garantia e dos bens públicos.


2.A proibição constitucional e a usucapião de bens públicos.

No tocante aos bens públicos, a questão será bem tormentosa. Tanto a nossa Constituição Federal (§3º, o art. 183 e Parágrafo único do art. 191), como a nossa legislação civil (art. 102), além da Súmula 340, do Supremo Tribunal Federal, vedam a usucapião sobre bens públicos.

Todavia, Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves, entendem que os bens públicos que não estejam afetados a uma finalidade, chamados bens dominicais, são passíveis de serem usucapidos.

Os autores supramencionados defendem que a proibição de se usucapir bens públicos deverá recair somente sobre os bens materialmente públicos, restando a possibilidade de se usucapir os bens formalmente públicos, a fim de fazê-los cumprir a sua função social.

Em síntese, aqueles que defendem a possibilidade de se usucapir bens públicos, alegam o seguinte: se o particular está obrigado a outorgar a sua propriedade uma função social, por muito mais razão os entes públicos deveriam cumprir com essa obrigação.

Acrescentam, ainda, os aludidos autores que a absoluta impossibilidade de se usucapir bens públicos ofende o princípio constitucional da função social da posse, além do princípio da proporcionalidade (princípio que tem por finalidade precípua equilibrar os direitos individuais com os anseios da sociedade).

Registre-se, também, o emblemático acórdão proferido pelo Tribunal de Minas Gerais, conhecido pelo “O Caso DER/MG”, na Apelação Cível 1.0194.10.011238-3/001, Comarca de Coronel Fabriciano/MG, que admitiu a declaração da usucapião de área pública.

Por sua vez, impende, igualmente, destacarmos que a Medida Provisória nº 2.200, editada no ano de 2001 e convertida na Lei nº 11.481/07, prevê a possibilidade de aquisição de direitos sobre imóveis públicos, por meio da concessão especial individual de uso para fins de moradia e da concessão especial coletiva de uso para fins de moradia. As aludidas concessões foram incluídas no rol atinente aos direitos reais, no inciso XI, do art. 1.225, bem como na Lei nº 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), no art. 167, I, 37.

Continuando na questão dos bens públicos, é bom que se esclareça que a ausência do registro acerca da propriedade ou de qualquer direito real usucapível não induz a presunção iuris tantum em favor do Estado de que a terra é pública (terras devolutas), ou seja, o Estado deverá provar essa alegação[10].


3.Os chamados “bens públicos por assemelhação”.

E com relação às sociedades de economia mista e às empresas públicas que ostentam personalidade jurídica de direito privado? O Supremo Tribunal Federal tem entendido que há possibilidade de se usucapir tais bens (RE nº 536.297).

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Atualmente, a jurisprudência tem entendido majoritariamente, pela impossibilidade de aquisição de imóveis alienados fiduciariamente pela Caixa Economia Federal, por meio da usucapião. O fundamento da controvérsia reside basicamente na previsão constitucional que veda expressamente a aquisição de bens públicos pela via da usucapião, conforme disposto no §3º, do artigo 183, da Constituição Federal, tendo por fundamento lógico o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular.  Ocorre, que os bens alienados pela Caixa Econômica Federal, em que pese não possuir a natureza de bem público, à medida que de fato não pertencem ao Estado, têm sido considerados por grande parte dos juízes, “bens públicos por assemelhação” em razão da origem do capital empregado pela Caixa Econômica Federal, na grande maioria das vezes oriundo do Sistema Financeiro de Habitação – SFH.

Nesse sentido, dentre os argumentos utilizados pelos partidários da possibilidade de aplicação da usucapião a tais imóveis, está o fato de que ainda que consideremos que a natureza de tais bens é pública, estariam estes, reconhecidamente, inseridos na categoria de bens públicos dominicais[11], em razão de não estarem os mencionados bens afetados a nenhuma função pública, sendo, portanto, pertencentes ao patrimônio disponível do Estado, sendo assim, viável o seu alcance na esfera da usucapião.

Na qualidade de bens públicos dominicais, o entendimento majoritário seria pela flexibilização das limitações impostas aos bens públicos ditos especiais e de uso comum, que são tidos como imprescritíveis, impenhoráveis e inalienáveis. Deste modo, a partir do momento em que se reconhece a hipótese de que os bens públicos podem ser alienados (art. 101 do CC/2002), desde que para satisfação do interesse público, não há razão de não lhes reconhecer a prescritibilidade, com base no mesmo fundamento.

Outro argumento bastante utilizado - contrariando a tese majoritária aplicada pelo Judiciário - repousa no fato de a Caixa Econômica Federal, na qualidade de empresa estatal (sociedade de economia mista), não fazer parte da administração direta e, portanto, não gozar das idênticas prerrogativas concedidas às autarquias, dentre elas a proteção do seu patrimônio, tendo em vista que não fornece serviços públicos, de modo contrário, explora atividade econômica.

Neste aspecto, entendem alguns autores que o posicionamento assumido pelo Judiciário, inadmitindo a aplicação da usucapião aos imóveis alienados fiduciariamente pela Caixa Econômica Federal, é contra legem, posto que, reconhece natureza pública a bens pertencentes à pessoa jurídica de direito privado, contrariando o previsto pelo art. 98 do Código Civil, in verbis:

“Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.” 

Embora não sejam muitos os posicionamentos judiciais nesse sentido, destaca-se o entendimento da Ministra  Ellen Gracie, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 536297, no qual reconhece a natureza privada da Caixa Econômica Federal e a disponibilidade de seus bens. Destaca-se ainda, que os poucos precedentes no sentido da possibilidade da usucapião de bens alienados pela Caixa Econômica Federal, correspondem a decisões no Supremo Tribunal Federal - STF, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais, o posicionamento contrário é imperioso.

Para facilitar a compreensão do tema, elaboramos quatro quadros sinóticos, cujo objetivo é prestar melhor compreensão do procedimento da usucapião. ( WWW.CARTORIO15.COM.BR - ARTIGOS)

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Sobre a autora
Fernanda de Freitas Leitão

Bacharel em Direito em 1991 pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Exerceu a advocacia na iniciativa privada, em seguida, admitida em concurso público, exerceu o cargo de Procuradora do Estado do Rio de Janeiro e, a partir de 1998, passou a atuar como Tabeliã do 15º Ofício de Notas da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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O artigo completo pode ser visualizado em ARTIGOS, no site www.cartorio15.com.br . Inclusive com os quadros sinóticos.

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