Tenta-se responder a um questionamento de grande relevância para esta pesquisa: deve o Estado intervir na sociedade e no mercado de modo a atenuar a concentração de recursos (riquezas e renda)?
Para buscar uma resposta, aborda-se o tema sob três ângulos diferentes. Em um primeiro momento, investigam-se os efeitos da extrema e irrestrita concentração de renda e riquezas para uma pequena parcela populacional. Haveria algum efeito social nesta situação delineada? Ou a quantidade de recursos que cada pessoa tem possui efeitos somente na seara privada, refletindo apenas na quantidade de bens e serviços que podem ser obtidos? É o que se tenta primeiramente responder neste capítulo.
Em seguida, a partir da análise conjunta e sucinta dos principais pontos de “Uma Teoria da Justiça”, de John Rawls (2008) e de “Anarquia, Estado e Utopia”, de Robert Nozick (1999), procura-se verificar se, em termos de justiça distributiva, é justificável que o Estado atue ativamente no sentido de redução das desigualdades existentes ou se cabe exclusivamente ao mercado definir a quantidade de recursos que cabe a cada pessoa em virtude de seu merecimento.
Na terceira parte deste capítulo, pretende-se determinar se o Estado tem a obrigação jurídica de intervir no sentido de atenuar as desigualdades em virtude do surgimento de direitos sociais, oriundos de debates e entraves históricos.
1. CONSEQUÊNCIAS DA CONCENTRAÇÃO IRRESTRITA DE RIQUEZAS E RENDA
Se os recursos forem concentrados de forma irrestrita nas mãos de poucos, haveria algum efeito social?
Uma das primeiras consequências da irrestrita concentração de recursos se torna perceptível na seara penal. A concentração de riquezas em uma pequena oligarquia significa que uma parcela considerável da população não possui recursos suficientes capazes de proporcionar uma condição de vida minimamente razoável. Some-se a isto o fato de que o Estado brasileiro é incapaz de fornecer condições estruturais (como e, principalmente, uma educação de qualidade) adequadas a possibilitar o cidadão a adquirir renda suficiente para atender suas necessidades básicas, então não se torna difícil concluir que a maior parte dos crimes patrimoniais violentos, bem como o tráfico de drogas, é cometida pelos cidadãos de baixa renda.
Neste sentido, é possível cogitar que em uma sociedade mais igualitária, a qual possibilitasse a todos condições razoáveis de vida, com sistema de saúde eficiente, amplas possibilidades de lazer e bem como a qualificação educacional necessária para garantir renda digna, a quantidade de crimes patrimoniais e crimes violentos tendessem a diminuir. A hipótese é corroborada pelos estudos existentes, afirmando Gomes (2014, s/n) a esse respeito que:
A política criminal que mais êxito vem alcançando no mundo todo não é a vinculada com o capitalismo selvagem e/ou extremamente desigual (Brasil e EUA, por exemplo), sim, a realizada pelos países em processo de “escandinavização”, ou seja, de capitalismo evoluído, distributivo e tendencialmente civilizado (Suécia, Noruega, Holanda, Bélgica, Islândia etc.). O que eles estão fazendo? Estão levando a sério a premissa de que sem liberdade econômica não existe liberdade política. E que condição essencial da liberdade econômica é que o humano disponha de trabalho estável, com salário digno (aumento da renda per capita), depois de ter se preparado para o mercado competitivo por meio de um ensino de qualidade.
[...]
Como os 18 países “escandinavizados” ou em processo de “escandinavização” vem conseguindo tanto triunfo na redução da criminalidade violenta? A principal tática não se resume na criação de estratégias endógenas de política criminal, sim, na conjugação da política criminal com a política econômica, que fixa uma relação saudável e sustentável entre o capital e o trabalho, que não pode nunca ser regida pela escravização (ou neoescravização) (tal como ocorre nos países de capitalismo selvagem e/ou extremamente desigual).
Sendo os crimes patrimoniais violentos e o tráfico de drogas cometidos pelos mais pobres, em regra, e sendo esses crimes os mais facilmente identificados, não causa surpresa que a maioria da população carcerária seja composta pela população de baixa renda. A doutrina amplamente majoritária entende que o Direito Penal, por trás dos discursos de neutralidade e tratamento igual perante todos, atua, na verdade, de forma extremamente seletiva, sendo os mais pobres a grande maioria da população carcerária. Assim, conforme informações do Departamento Penitenciário Nacional1 divulgadas em 2014 por meio do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN 2014), 53% dos presos possuem ensino fundamental incompleto e 12% ensino fundamental completo, enquanto que apenas 2% possuem ensino superior completo.
Os dados evidenciam que há uma relação direta entre escolaridade e nível renda e riquezas, posto que a grande maioria da população carcerária pertence às classes mais baixas (além de ter também maioria negra).
Fragoso (1982, p.123) explica bem a seletividade do Direito Penal nos seguintes termos:
Entre nós o direito penal tem sido amargo privilégio dos pobres e desfavorecidos, que povoam nossas prisões horríveis e que constituem a clientela do sistema. A estrutura geral de nosso direito punitivo, em todos os seus mecanismos de aplicação, deixa inteiramente acima da lei os que têm poder econômico ou político, pois estes se livram com facilidade, pela corrupção e pelo tráfico de influências. Denunciamos, portanto, entre nós, como fenômeno generalizado, o da desigualdade com que funciona o sistema punitivo, que serve a uma estrutura político-social profundamente injusta e opressiva.
Por sua vez, no âmbito econômico, a concentração de riquezas também revela importantes consequências nefastas. É necessário antes de tudo que se analise brevemente o papel que os intermediários financeiros possuem no mercado. Eles são os que tomam o dinheiro dos que o possuem em excedente, remunerando-os com uma taxa de juros, e o emprestam para os que dele necessitam, cobrando uma taxa de juros maior. Esta é essencialmente a principal forma como os bancos obtêm lucros. Nas palavras de Gregory Mankiw (2014, p.530):
Os bancos são os intermediários financeiros com os quais as pessoas estão mais familiarizadas. Um dos principais negócios dos bancos é receber depósitos das pessoas que querem poupar e usar esses depósitos para conceder empréstimos a pessoas que o desejam. Os bancos pagam os depositantes um juro sobre seus depósitos e cobram dos tomadores um juro ligeiramente maior. A diferença entre essas taxas de juros cobre os custos bancários e rende um lucro para os proprietários dos bancos.
É possível, por meio de um exemplo prático, saber qual seria o lucro dos bancos advindo da cobrança de juros “ligeiramente” maior, no Brasil. De acordo com o economista e diretor-executivo da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade, Miguel de Oliveira, se R$ 100 tivessem sido aplicados na poupança em 1994, hoje o investidor poderia retirar do banco cerca de R$967,66, tendo um rendimento líquido de 867,65%. Por outro lado, se esta mesma pessoa tivesse tomado um empréstimo de R$ 100 em 1994 pelo cheque especial, hoje ela teria uma dívida de R$ 569.954.862.564,30 (quinhentos e sessenta e nove bilhões, novecentos e cinquenta e quatro milhões, oitocentos e sessenta e dois mil, quinhentos e sessenta e quatro reais e trinta centavos), cerca de 10% do PIB brasileiro.
O capital sempre procura a melhor forma para se reproduzir. Dinheiro não investido significa dinheiro corroído pela inflação. Assim, os que concentram as riquezas procuram sempre os melhores investimentos. E grande parte desses investimentos é feita por meio dos intermediários financeiros, como os bancos. Essas instituições, por sua vez, necessitam de seu próprio lucro, e, para tanto, concedem empréstimos para os que necessitam a juros maiores do que pagam aos depositantes. Ocorre que os tomadores de empréstimo são aqueles que necessitam de capital, ou seja, em regra, os que menos possuem riquezas e recebem as menores rendas. A consequência lógica é o inadimplemento de grande parte dos tomadores de empréstimos.
Verdade é que os governos, respeitando seus ordenamentos jurídicos, podem intervir na política econômica, por exemplo, evitando que as famílias se endividem excessivamente e investindo em políticas estruturantes de longo prazo, como na educação, a qual, em algumas décadas, permitirá que as classes mais baixas sejam melhores qualificadas, possibilitando que tenham acesso a empregos que paguem maiores salários, aumentando a renda.
No entanto, políticas desse tipo produzem efeitos apenas no longo prazo, não atraindo a simpatia do eleitorado, sedento de melhorias imediatas. A consequência lógica é bem descrita por Raghuram Rajan (2010, s/n), presidente do Banco Central da Índia:
Por isso, a resposta política para o aumento da desigualdade – quer como cuidadosamente planejada, quer como caminho mais fácil – foi expandir os empréstimos para as famílias, especialmente para aqueles de baixa renda. Os benefícios – consumo crescente e mais empregos – foram imediatos, enquanto o pagamento da conta inevitável poderia ser adiado. Por mais cínico que isso possa parecer, crédito fácil tem sido amplamente usado como um paliativo pelos governos que são incapazes de lidar diretamente com as profundas ansiedades da classe média.
O autor se refere aos anos precedentes que geraram a crise de 2008 nos Estados Unidos. Fica claro então que a mistura entre desigualdade crescente, a necessidade do capital se reproduzir e o interesse de políticas de curto prazo é combustível para a formação de uma crise econômica de potencial devastador.
Em algum momento as famílias terão de pagar seus empréstimos e é grande a possibilidade de inadimplência. Os bancos sofrem calote e passam a dificultar empréstimos, levando empresas a entrarem em dificuldades financeiras e demitirem alguns de seus funcionários. Os depositantes deixam de receber os juros nas condições estabelecidas e toda a confiança no sistema financeiro é abalada, levando preços de ações e outros títulos a despencarem. A desigualdade, se não é a principal causa das crises econômicas, ao menos é fator de grande relevância.
Também, a concentração de riquezas demonstra seu poder na seara política ao influenciar de forma determinante os candidatos a serem eleitos. Algumas correlações são descobertas com dificuldade enquanto outras são tão evidentes que não se espera outro resultado de dados empíricos que não seja a sua confirmação. Este último é exatamente o caso entre a quantidade de dinheiro empregada em uma eleição e a chance de o candidato ser eleito. Os que possuem ou recebem mais recursos durante a campanha eleitoral são eleitos com uma facilidade muito maior. Nesse sentido, Atkinson (2015, p.34) expõe que:
Cientistas políticos identificaram uma relação de mão dupla entre a desigualdade de renda e o papel do dinheiro na determinação do resultado de eleições democráticas, caracterizadas pela “dança da ideologia e das riquezas desiguais”.
Não se afirma aqui que são necessariamente corruptos ou facilmente corruptíveis. Entretanto, eles possuem uma tendência natural a defender os interesses de suas classes, perpetuando as diferenças sociais existentes. É ainda possível que o candidato não possua grandes recursos, mas consiga ser eleito por meio das doações eleitorais. Neste caso, o político tende a defender os interesses de seu financiador em detrimento da sociedade. Neste sentido, Sarmento e Osório (2015, p.8-9) explicam que:
Nas eleições gerais de 2010, para se eleger, um deputado federal precisou, em média, de R$ 1,1 milhão; um senador, de R$ 4,5 milhões; e um governador, de R$ 23,1 milhões. A campanha presidencial de Dilma Roussef, por sua vez, chegou a consumir mais de R$ 336 milhões contabilizados. Nesse modelo, o que garante a vitória de um candidato não é tanto a popularidade ou qualidade de suas propostas, mas a quantidade de recursos que consegue angariar.
[...]
O papel central do dinheiro nas eleições fica mais evidente ao analisarmos a relação entre as receitas obtidas e as votações alcançadas por candidatos e partidos. Diversos estudos são convergentes ao afirmar que o montante de recursos arrecadado influencia diretamente o resultado das eleições.
[...]
Ou seja, quanto mais elevadas as receitas obtidas por um candidato, maiores as suas chances de ser eleito.
Percebe-se, desse modo, que diversos são os efeitos da desigualdade social para a sociedade: a desigualdade parece implicar em maior número de crimes mais violentos, influenciando na seletividade do Direito Penal, corrobora ainda para a criação de crises econômicas, além permitir que candidatos com maiores recursos tenham probabilidade maior de serem eleitos, criando distorções no sistema eleitoral. Para além desses efeitos existem muitos outros, como afirma Atkinson (2015, p. 34):
(Joseph Stiglitz e Kate Pickett) culpam a falta de coesão social, o aumento da criminalidade, problemas de saúde, gravidez na adolescência, obesidade e uma diversidade de problemas sociais pelo aumento da desigualdade.
Para além dos efeitos da concentração de capital e riquezas na sociedade, é ainda possível demonstrar a relevância deste estudo pela constatação de que a desigualdade é intrinsecamente injusta. A depender de que forma se aborda a questão da desigualdade, é possível adquirir maior ou menor consenso acerca de sua injustiça.
Assim, quando se aborda a questão de desigualdade de oportunidades, existe certo consenso que ao Estado cabe intervir para que as condições iniciais de vida do cidadão, que não dependem de seu mérito, mas de puro acaso, não determinem de forma absoluta suas chances de sucesso ou fracasso. Não parece ser justificável que as condições de vida de uma pessoa sejam determinadas pelo acaso.
Diversas são as correntes de justiça distributiva que, em algum momento, abordam esta temática para justificar a atuação estatal. Também, no espectro político, é possível encontrar essa ideia basilar de rejeição à desigualdade absoluta de oportunidades. Naturalmente, a intensidade de intervenção varia de acordo com a disposição do partido no espectro político. Dessa forma, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), partido de esquerda, assim dispõe acerca do papel do Estado no combate à concentração de riquezas:
Temos a necessidade também de uma profunda reforma tributária, que inverta a atual lógica que faz os impostos pesarem fundamentalmente sobre o trabalho e o consumo, e não sobre a riqueza e a propriedade, fazendo com que quem ganha menos pague proporcionalmente muito mais imposto do que quem ganha mais.
Defendemos a taxação das grandes fortunas, pesados impostos sobre os mais ricos e alívio da carga tributária sobre a classe média e os pobres.
Por outro lado, em diferente intensidade, mas também na lógica de combate à desigualdade, dispõe o ideário do Democratas (DEM), partido de direita no Brasil:
Consideramos, entretanto, que há problemas e desigualdades que não podem ser satisfatoriamente resolvidos pelo livre jogo das forças de mercado. Existe um espaço legítimo, sobretudo na área social, para a atuação do Estado, o que não prejudica, antes preserva, o mais puro sentido de liberdade.
A meritocracia, base angular da sociedade capitalista, não consegue justificar a existência de desigualdades se as condições iniciais forem diferentes e é por este motivo que é possível encontrar alguma unicidade na ideia de que a desigualdade de oportunidades deve ser, em alguma intensidade, combatida. É neste contexto que Piketty (2015, p. 10) assim argumenta:
Com efeito, há certo consenso a respeito de diversos princípios básicos de justiça social. Por exemplo, se a desigualdade se deve, ao menos em parte, a fatores fora do controle dos indivíduos, como a desigualdade das dotações iniciais transmitidas pela família ou pela sorte – sobre as quais os indivíduos envolvidos não podem ser considerados responsáveis, então é justo o Estado buscar melhorar, da maneira mais eficaz possível, a vida das pessoas mais pobres, isto é, daquelas que precisam enfrentar os fatores não controláveis mais adversos.
Assim, a desigualdade é intrinsecamente injusta visto que confere grande valor ao acaso e à chance em detrimento do esforço e do empenho.
2. CONCEPÇÕES DE JUSTIÇA DISTRIBUTIVA
Buscando-se conferir sustentação argumentativa a partir de uma base filosófica, é analisada a seguir, de forma sucinta, a concepção de justiça distributiva de John Rawls e a posição notoriamente oposta defendida por Robert Nozick.
a) Liberalismo de John Rawls
John Ralws foi um filósofo pertencente à corrente liberal moderna, isto é, aquela caracterizada por entender que, além de proteger os direitos individuais dos cidadãos, caberia também ao Estado se utilizar de mecanismos redistributivos para combater as mazelas sociais. A teoria contratualista desenvolvida pelo filósofo John Rawls em seu livro Uma teoria da Justiça, em 1971, clama essencialmente por uma justiça substantiva, que possibilite a redistribuição de riquezas. Sua teoria se afasta de radicalismos ao postular um caminho intermediário entre o liberalismo clássico, o qual pressupunha um abstencionismo estatal, e as correntes revolucionárias socialistas. A esse respeito Nay (2007, p. 496) argumenta que:
O sucesso de sua obra está, em grande parte, na sua vontade de encontrar uma política média, próxima da social-democracia, que se oponha ao mesmo tempo aos excessos do “liberalismo selvagem” e aos desvios do “socialismo autoritário”. A melhor maneira de melhorar a sorte dos indivíduos, para ele é a do reformismo.
Para Ralws (2008), a justiça consiste na busca de equidade, isto é, na definição de princípios morais elementares que definam a estrutura essencial da sociedade que possibilite distinguir entre desigualdades socialmente aceitáveis de injustiças descabidas na apropriação dos recursos disponíveis.
Como, no entanto, definir quais princípios morais devem estruturar a sociedade quando os diferentes indivíduos e setores sociais possuem interesses divergentes? É alta a possibilidade de que um indivíduo que componha o 1% mais rico argumente que o sistema é justo e que a meritocracia sem interferência estatal é a melhor forma de se definir que parte da riqueza e renda totais cabe a cada pessoa. Provavelmente, por outro lado, as pessoas que possuem as menores fatias de recursos podem entender que o sistema é injusto e que a eles são dadas poucas oportunidades de progredirem na pirâmide econômica, a exemplo de uma educação pública extremamente deficiente. Não apenas a quantidade de recursos disponíveis para cada pessoa poderá desempenhar papel essencial na formulação de conceito de justiça social. Questões como religião e etnia também tendem a desempenhar papel relevante na concepção de justiça. Como, então, conciliar as diferentes visões de justiça?
Para Rawls (2008), os seres humanos estabeleceriam a melhor justiça distributiva em uma situação hipotética: se os indivíduos pudessem se reunir para decidir os princípios morais que regularão a sociedade sem ter quaisquer conhecimentos acerca de suas etnias, religiões, quantidade de riqueza, sexo e assim por diante e, se nesta reunião fossem decididas as regras distributivas para a sociedade, então a mais justa justiça distributiva seria selecionada. Isto porque, nesta situação, conhecida como posição original, desprovidos de informações relevantes acerca de si mesmos e dos demais, encobertos pelo que o autor denomina de “véu da ignorância”, as pessoas estariam em uma situação inicial equitativa, possibilitando a formulação de princípios objetivos para a formulação da sociedade, evitando-se escolhas pautadas em favorecimentos pessoais e egoísticos.
Segundo Rawls (2008, p. 13-14):
Os princípios da justiça são escolhidos sob um véu de ignorância (...) Isso garante que ninguém é favorecido ou desfavorecido na escolha dos princípios pelo resultado do acaso natural ou pela contingência de circunstâncias sociais (...) A posição original é, poderíamos dizer, o status quo inicial apropriado, e assim os consensos fundamentais nela alcançados são equitativos. Isso explica a propriedade da frase “justiça como equidade”: ela transmite a ideia de que os princípios da justiça são acordados numa situação inicial que é equitativa.
Os indivíduos situados na posição original e encobertos pelo “véu da ignorância” seriam plenamente racionais e a escolha dos princípios morais se localizaria entre dois extremos: de um lado, caso os indivíduos soubessem que seriam alocados em uma posição de grande poder e que possibilite a concentração de recursos, então a tendência é que princípios que possibilitassem grande liberdade fossem os selecionados. Por outro lado, caso os indivíduos soubessem que seriam alocados em uma posição de escassez de poder e recursos, então tenderiam a priorizar princípios que garantissem a redistribuição de riquezas e que garantissem a igualdade. Havendo o desconhecimento em virtude da existência do “véu da ignorância”, os princípios escolhidos se localizarão entre os dois extremos mencionados. É nesse sentido que a teoria de Rawls se afasta de radicalismos e busca encontrar um termo médio. Esta escolha seria pautada em dois grandes princípios: o princípio de igual liberdade e o princípio da diferença.
Encontrando-se na posição original e encobertos pelo “véu da ignorância”, é natural que os indivíduos tenham grandes preocupações com a possibilidade de se encontrarem na base da pirâmide social, desprovidos de qualquer riqueza e poder. Neste caso, seria necessário assegurar a todo e qualquer indivíduo a possibilidade de se alcançar qualquer projeto de vida imaginado, garantindo-se para tanto que todos os indivíduos possuíssem acesso a bens primários, isto é, essenciais para possibilitar o desenvolvimento pessoal, independentemente de qual posição na pirâmide social o indivíduo se encontre. É neste sentido que Mankiw (2014) caracteriza o modelo de Rawls (2008) como um seguro social, isto é, como um modelo onde os que viessem a ser os mais desafortunados não se veriam em condições paupérrimas pois poderiam contar com o auxílio da política distributiva estabelecida pela decisão oriunda da posição original. Assim, segundo Mankiw (2014, p. 403):
Mais especificamente, seu raciocínio experimental nos permite considerar a redistribuição de renda como uma forma de seguro social. Ou seja, da perspectiva da posição original, por trás do véu da ignorância, a redistribuição de renda é como uma apólice de seguro. [...] quando nós, como sociedade, escolhemos políticas que tributam os ricos para suplementar a renda dos pobres, estamos todos contratando um seguro contra a possiblidade de virmos a ser membros de uma família pobre.
No mesmo sentido leciona Figueiredo (2015, p. 777):
Nessa linha, o autor norte-americano afirma que, partindo-se da posição original, todos teriam de adotar, para sobreviver no meio em que vivem, uma estratégia que iria maximizar a posição dos menos favorecidos, quando da escolha dos princípios norteadores da justiça, uma vez que a sobrevivência da sociedade está intrinsecamente ligada à garantia de existência digna a todos os seus membros, indistintamente, Isso porque, ao se favorecer as camadas menos abastadas, evita-se, na luta pela sobrevivência, o apelo para meios ilícitos ou imorais, que desarmonizam o meio de convivência.
O princípio da diferença, por sua vez, significaria que os indivíduos que se encontrassem na posição original, encobertos pelo “véu da ignorância”, entenderiam que há espaço para certo nível de desigualdade social moralmente justificável, desde que atendidos dois critérios: tal desigualdade não poderia ser de oportunidades, isto é, a todos deveria ser fornecida a mesma possibilidade de alcançar os melhores estratos econômicos e sociais e, além disso, deve ser capaz de melhorar o bem-estar geral dos mais desfavorecidos. Neste sentido, Nay (2007, p. 498) esclarece:
Em seguida, o ‘princípio da diferença’ supõe que certas desigualdades na sociedade podem ser aceitáveis num plano moral desde que respeitem duas condições. Em primeiro lugar, elas são ‘justas’ quando contribuem, em compensação, para melhorar ao mesmo tempo o bem-estar geral e a situação dos mais desfavorecidos. Noutras palavras, os ganhos superiores concedidos a um pequeno número não devem nunca levar a um empobrecimento dos mais desprovidos. Em seguida, cada um deve gozar das mesmas chances de subir os degraus econômicos e sociais. Segundo o autor, trata-se claramente de garantir, assim, a “igualdade de oportunidades” em todos os níveis da vida social, a fim de evitar que se perpetuem desigualdades entre classes, entre etnias ou entre gêneros.
A rejeição da absoluta igualdade ocorreria em virtude de que certo nível de desigualdade é necessário por um duplo motivo: em primeiro lugar, seria injusto que pessoas que desempenhassem cargos mais árduos fossem recompensadas da mesma forma que pessoas que desempenhassem cargos mais fáceis. Em segundo lugar, caso a recompensa fosse exatamente a mesma, então todas as pessoas tenderiam a optar os cargos mais fáceis, sendo as tarefas mais árduas desempenhadas por ninguém:
Segundo Rawls, as partes da Posição Original não optariam por um sistema puramente igualitário, em que todos tivessem, por exemplo, o mesmo patrimônio e a mesma renda. Não fariam isso por dois motivos. O primeiro é que não considerariam justo que, qualquer que fosse o esforço e talento de uma pessoa, a recompensa fosse sempre a mesma; o segundo é que, na condição de agentes racionais, levariam em conta que alguns cargos e posições são mais exigentes e árduos que outros, de modo que, se a recompensa por desempenhar tais cargos e posições não for correspondentemente maior, mesmo aqueles que são preparados e talentosos o bastante para eles não se sentiriam motivados a desempenhá-los, preferindo, pela mesma renda, um cargo ou posição mais simples e fácil, prejudicando, assim, a sociedade como um todo. Por isso, rejeitariam a ideia de patrimônio e renda absolutamente iguais para todos (COELHO, 2011, s/n).
b) Libertarismo de Robert Nozick
Diversos foram os autores que divergiram das ideias propostas por John Rawls. Dentre eles, destaca-se, por sua visão diametralmente oposta, Robert Nozick em sua obra intitulada Anarquia, Estado e Utopia, publicada três anos após Uma Teoria da Justiça, em 1974. Nozick se enquadra na escola denominada de libertária. Segundo esta escola de pensamento, são os direitos individuais que merecem destaque e ampla proteção, devendo o Estado se abster ao máximo de provocar intervenções que possam por em risco essa liberdade individual máxima preconizada pelos libertários. Desse modo, tal corrente teórica assume que redistribuir renda e riqueza na verdade seria causar inúmeras injustiças particulares (expropriação da renda e riqueza de alguns) para alcançar uma justiça geral, haja vista que qualquer redistribuição seria realizada por meio de uma determinada escolha de valores por parte do Estado dentre outras tantas possíveis, sendo verdadeira arbitrariedade.
Segundo Nozick (1999), em uma sociedade verdadeiramente livre não há um planejador central, controlador de todos os recursos e julgador final de como devem ser distribuídos. Cada pessoa é livre para fazer de seu patrimônio o que melhor entender. Ao Estado caberiam as funções essenciais de proteção do patrimônio privado por meio da garantia de segurança pública e sistema judiciário eficiente que garanta o cumprimento dos contratos individuais, por exemplo. No entanto, não poderia obrigar o sacrifício particular de um indivíduo em prol da comunidade, não é legítimo, como esclarece Figueiredo (2015, p. 798):
Para Nozick, por não haver distribuição central, não há legitimidade para que uma pessoa ou grupo detenha o direito de controlar os recursos e decidir como devem ser repartidos. Aqui, a circulação de riquezas deriva de um ciclo formado por uma sucessão de atos regulares, onde o que cada um ganha provém de outrem, que, por sua vez, oferece em troca de alguma coisa ou, simplesmente doa.
O mercado desempenha papel central nas teorias libertárias. É um sistema neutro que compensa de melhor modo àqueles que produzem os bens e serviços mais requisitados pela comunidade. Assim, o mercado atuaria de forma duplamente benéfica: incentivaria por meio de maiores recompensas individuais a produção de produtos e serviços cada vez melhores e ainda beneficiaria toda a coletividade, a qual poderia se utilizar dos bens postos à sua disposição. A este respeito, Nay (2007, p. 533) comenta:
Deste modo, na esteira deixada por Hayek, os libertarianos julgam que o mercado é muito mais “neutro” no plano de valores que todas as filosofias morais – inclusive a de Rawls, que pretende apoiar-se um raciocínio isento de pressupostos morais. O mercado tem a imensa vantagem de ser constituído de mecanismos ao mesmo tempo naturais e anônimos. [...]. Ademais, no jogo da livre concorrência, aqueles que tiram mais vantagens são aqueles que participam mais ativamente no enriquecimento da sociedade global. Portanto, há uma verdadeira justiça de mercado; todo mundo tira as vantagens coletivas do enriquecimento, ao mesmo tempo em que cada um tira as vantagens individuais de seus próprios esforços.
Assim, para os libertários, não cabe ao Estado realizar redistribuição de riquezas, sendo o mercado o plano mais neutro para a realização de trocas comerciais justas. Nota-se o contraponto realizado à obra de Rawls (2008), principalmente no que tange ao princípio da diferença: enquanto para esse existiria espaço limitado para a desigualdade social (desde que a desigualdade fosse de oportunidades e que fosse capaz de melhorar o bem-estar geral dos mais desfavorecidos), Nozick (1999) condena políticas redistributivas que limitem a desigualdade, visto que redistribuir significaria violar diversos direitos individuais para beneficiar a coletividade por meio de escolhas arbitrárias realizadas pelo Estado.
Em termos de redistribuição, o Estado, para o autor, possui papel muito limitado: deve intervir somente quando a aquisição de riquezas ocorra de forma injusta, com a utilização de fraudes ou por meio de roubos, por exemplo, cabendo ao Estado a utilização da força para o retorno ao status anterior e a garantia de cumprimento de contratos.
Neste sentido, esclarece Mankiw (2014, p. 404): “Quando a distribuição de renda é atingida de maneira injusta – por exemplo, quando uma pessoa furta a outra –, o governo tem o direito e o dever de remediar o problema”.
O Estado em Nozick (1999), portanto, é claramente o Estado Mínimo, o Estado abstencionista, que deve se utilizar da força apenas quando necessário e deixar aos particulares a plena liberdade de escolhas, garantindo caráter praticamente absoluto aos direitos individuais. Nas palavras do próprio Nozick (1999, p. 9):
Nossa principal conclusão é que o Estado mínimo, limitado às funções restritas de proteção contra a força, o roubo, a fraude, de fiscalização do cumprimento de contratos e assim por diante, justifica-se; que o Estado mais amplo violará os direitos das pessoas de não serem forçadas a fazer certas coisas, e que não se justifica; e que o Estado mínimo é tanto inspirador quanto certo. Duas implicações dignas de nota são que o Estado não pode usar sua máquina coercitiva para obrigar cidadãos a ajudarem a outros ou para proibir atividades a pessoas que desejam realiza-las para seu próprio bem ou proteção.
O autor, portanto, possui visão diametralmente oposta à de Rawls (2008), propondo uma abordagem centrada na máxima efetivação dos direitos individuais. É, no entanto, de se questionar se direitos sociais e direitos individuais são completamente dissociados ou há alguma correlação entre eles. Afinal, caso o papel do Estado se restrinja a garantir o cumprimento de contratos e a evitar atos de apropriação injusta de patrimônio por meio de roubos e fraudes, como será possível garantir que os que nascem sem recursos ou com recursos insuficientes possam se desenvolver a ponto de possuir seus direitos individuais desenvolvidos em sua plenitude?
Pessoas que nascem desprovidas de recursos não possuem chances de acesso à educação privada, necessitando, portanto, de educação pública de qualidade para que possam desenvolver em sua plenitude sua liberdade de expressão. Para que uma pessoa possa exercer seu direito de propriedade, é necessário que ela tenha condições de auferir renda razoável capaz de lhe prover capacidade de adquirir propriedade. Nascida em um ambiente de pobreza e desprovida de quaisquer possibilidades de ascensão social por um Estado que não intervém no campo social, são poucas as possibilidades de desenvolvimento de habilidades necessárias para ofertar bens e serviços apreciados pelo mercado. Direitos individuais e direitos sociais não são conteúdos imiscíveis, isolados e incomunicáveis. A realização de direitos individuais pressupõe, ao menos para os que nascem desprovidos de recursos, que lhe sejam fornecidas oportunidades de ascensão econômica e social. Tal oferta de oportunidades ocorre por meio de fornecimento de educação pública de qualidade, acesso ao crédito, dentre outros mecanismos, que dependem de atuação positiva do Estado, o que demanda que ele saia de sua posição abstencionista e passe a atuar ativamente, intervindo nas relações sociais. Neste sentido, Nay (2007, p. 534) leciona que:
Num plano propriamente filosófico, enfim, os libertarianos são censurados por serem incapazes de resolver um paradoxo, a saber: como se pode deixar de lutar contra as desigualdades sociais em nome de liberdades individuais, quando essas desigualdades limitam fortemente o próprio exercício dessas liberdades? A liberdade de ir e vir não é entravada para os mais pobres incapazes de financiar deslocamentos? A liberdade de opinião e de expressão não está diretamente restrita quando parte da população é analfabeta?
A necessidade da referida atuação positiva do Estado é melhor compreendida a partir de uma análise histórica de seu papel desempenhado ao longo dos séculos. É o que se tratará a seguir.