Artigo Destaque dos editores

Concentração de riquezas e a legitimidade de intervenção estatal

Exibindo página 1 de 4
João Victor Nogueira de Araújo
João Victor Nogueira de Araújo
Ana Elizabeth Neirão Reymão
16/11/2019 às 15:00
Leia nesta página:

Diante da constatação da concentração de riquezas, questiona-se se é legítimo ao Estado intervir para alterar o quadro existente.

Tenta-se responder a um questionamento de grande relevância para esta pesquisa: deve o Estado intervir na sociedade e no mercado de modo a atenuar a concentração de recursos (riquezas e renda)?

Para buscar uma resposta, aborda-se o tema sob três ângulos diferentes. Em um primeiro momento, investigam-se os efeitos da extrema e irrestrita concentração de renda e riquezas para uma pequena parcela populacional. Haveria algum efeito social nesta situação delineada? Ou a quantidade de recursos que cada pessoa tem possui efeitos somente na seara privada, refletindo apenas na quantidade de bens e serviços que podem ser obtidos? É o que se tenta primeiramente responder neste capítulo.

Em seguida, a partir da análise conjunta e sucinta dos principais pontos de “Uma Teoria da Justiça”, de John Rawls (2008) e de “Anarquia, Estado e Utopia”, de Robert Nozick (1999), procura-se verificar se, em termos de justiça distributiva, é justificável que o Estado atue ativamente no sentido de redução das desigualdades existentes ou se cabe exclusivamente ao mercado definir a quantidade de recursos que cabe a cada pessoa em virtude de seu merecimento.

Na terceira parte deste capítulo, pretende-se determinar se o Estado tem a obrigação jurídica de intervir no sentido de atenuar as desigualdades em virtude do surgimento de direitos sociais, oriundos de debates e entraves históricos.


1 CONSEQUÊNCIAS DA CONCENTRAÇÃO IRRESTRITA DE RIQUEZAS E RENDA

Se os recursos forem concentrados de forma irrestrita nas mãos de poucos, haveria algum efeito social?

Uma das primeiras consequências da irrestrita concentração de recursos se torna perceptível na seara penal. A concentração de riquezas em uma pequena oligarquia significa que uma parcela considerável da população não possui recursos suficientes capazes de proporcionar uma condição de vida minimamente razoável. Some-se a isto o fato de que o Estado brasileiro é incapaz de fornecer condições estruturais (como e, principalmente, uma educação de qualidade) adequadas a possibilitar o cidadão a adquirir renda suficiente para atender suas necessidades básicas, então não se torna difícil concluir que a maior parte dos crimes patrimoniais violentos, bem como o tráfico de drogas, é cometida pelos cidadãos de baixa renda.

Neste sentido, é possível cogitar que em uma sociedade mais igualitária, a qual possibilitasse a todos condições razoáveis de vida, com sistema de saúde eficiente, amplas possibilidades de lazer e bem como a qualificação educacional necessária para garantir renda digna, a quantidade de crimes patrimoniais e crimes violentos tendessem a diminuir. A hipótese é corroborada pelos estudos existentes, afirmando Gomes (2014, s/n) a esse respeito que:

A política criminal que mais êxito vem alcançando no mundo todo não é a vinculada com o capitalismo selvagem e/ou extremamente desigual (Brasil e EUA, por exemplo), sim, a realizada pelos países em processo de “escandinavização”, ou seja, de capitalismo evoluído, distributivo e tendencialmente civilizado (Suécia, Noruega, Holanda, Bélgica, Islândia etc.). O que eles estão fazendo? Estão levando a sério a premissa de que sem liberdade econômica não existe liberdade política. E que condição essencial da liberdade econômica é que o humano disponha de trabalho estável, com salário digno (aumento da renda per capita), depois de ter se preparado para o mercado competitivo por meio de um ensino de qualidade.

[...]

Como os 18 países “escandinavizados” ou em processo de “escandinavização” vem conseguindo tanto triunfo na redução da criminalidade violenta? A principal tática não se resume na criação de estratégias endógenas de política criminal, sim, na conjugação da política criminal com a política econômica, que fixa uma relação saudável e sustentável entre o capital e o trabalho, que não pode nunca ser regida pela escravização (ou neoescravização) (tal como ocorre nos países de capitalismo selvagem e/ou extremamente desigual).

Sendo os crimes patrimoniais violentos e o tráfico de drogas cometidos pelos mais pobres, em regra, e sendo esses crimes os mais facilmente identificados, não causa surpresa que a maioria da população carcerária seja composta pela população de baixa renda. A doutrina amplamente majoritária entende que o Direito Penal, por trás dos discursos de neutralidade e tratamento igual perante todos, atua, na verdade, de forma extremamente seletiva, sendo os mais pobres a grande maioria da população carcerária. Assim, conforme informações do Departamento Penitenciário Nacional[1] divulgadas em 2014 por meio do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN 2014), 53% dos presos possuem ensino fundamental incompleto e 12% ensino fundamental completo, enquanto que apenas 2% possuem ensino superior completo.

Os dados evidenciam que há uma relação direta entre escolaridade e nível renda e riquezas, posto que a grande maioria da população carcerária pertence às classes mais baixas (além de ter também maioria negra).

Fragoso (1982, p.123) explica bem a seletividade do Direito Penal nos seguintes termos:

Entre nós o direito penal tem sido amargo privilégio dos pobres e desfavorecidos, que povoam nossas prisões horríveis e que constituem a clientela do sistema. A estrutura geral de nosso direito punitivo, em todos os seus mecanismos de aplicação, deixa inteiramente acima da lei os que têm poder econômico ou político, pois estes se livram com facilidade, pela corrupção e pelo tráfico de influências. Denunciamos, portanto, entre nós, como fenômeno generalizado, o da desigualdade com que funciona o sistema punitivo, que serve a uma estrutura político-social profundamente injusta e opressiva.

Por sua vez, no âmbito econômico, a concentração de riquezas também revela importantes consequências nefastas. É necessário antes de tudo que se analise brevemente o papel que os intermediários financeiros possuem no mercado. Eles são os que tomam o dinheiro dos que o possuem em excedente, remunerando-os com uma taxa de juros, e o emprestam para os que dele necessitam, cobrando uma taxa de juros maior. Esta é essencialmente a principal forma como os bancos obtêm lucros. Nas palavras de Gregory Mankiw (2014, p.530):

Os bancos são os intermediários financeiros com os quais as pessoas estão mais familiarizadas. Um dos principais negócios dos bancos é receber depósitos das pessoas que querem poupar e usar esses depósitos para conceder empréstimos a pessoas que o desejam. Os bancos pagam os depositantes um juro sobre seus depósitos e cobram dos tomadores um juro ligeiramente maior. A diferença entre essas taxas de juros cobre os custos bancários e rende um lucro para os proprietários dos bancos.

É possível, por meio de um exemplo prático, saber qual seria o lucro dos bancos advindo da cobrança de juros “ligeiramente” maior, no Brasil. De acordo com o economista e diretor-executivo da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade, Miguel de Oliveira, se R$ 100 tivessem sido aplicados na poupança em 1994, hoje o investidor poderia retirar do banco cerca de R$967,66, tendo um rendimento líquido de 867,65%. Por outro lado, se esta mesma pessoa tivesse tomado um empréstimo de R$ 100 em 1994 pelo cheque especial, hoje ela teria uma dívida de R$ 569.954.862.564,30 (quinhentos e sessenta e nove bilhões, novecentos e cinquenta e quatro milhões, oitocentos e sessenta e dois mil, quinhentos e sessenta e quatro reais e trinta centavos), cerca de 10% do PIB brasileiro.

O capital sempre procura a melhor forma para se reproduzir. Dinheiro não investido significa dinheiro corroído pela inflação. Assim, os que concentram as riquezas procuram sempre os melhores investimentos. E grande parte desses investimentos é feita por meio dos intermediários financeiros, como os bancos. Essas instituições, por sua vez, necessitam de seu próprio lucro, e, para tanto, concedem empréstimos para os que necessitam a juros maiores do que pagam aos depositantes. Ocorre que os tomadores de empréstimo são aqueles que necessitam de capital, ou seja, em regra, os que menos possuem riquezas e recebem as menores rendas. A consequência lógica é o inadimplemento de grande parte dos tomadores de empréstimos.

Verdade é que os governos, respeitando seus ordenamentos jurídicos, podem intervir na política econômica, por exemplo, evitando que as famílias se endividem excessivamente e investindo em políticas estruturantes de longo prazo, como na educação, a qual, em algumas décadas, permitirá que as classes mais baixas sejam melhores qualificadas, possibilitando que tenham acesso a empregos que paguem maiores salários, aumentando a renda.

No entanto, políticas desse tipo produzem efeitos apenas no longo prazo, não atraindo a simpatia do eleitorado, sedento de melhorias imediatas. A consequência lógica é bem descrita por Raghuram Rajan (2010, s/n), presidente do Banco Central da Índia:

Por isso, a resposta política para o aumento da desigualdade – quer como cuidadosamente planejada, quer como caminho mais fácil – foi expandir os empréstimos para as famílias, especialmente para aqueles de baixa renda. Os benefícios – consumo crescente e mais empregos – foram imediatos, enquanto o pagamento da conta inevitável poderia ser adiado. Por mais cínico que isso possa parecer, crédito fácil tem sido amplamente usado como um paliativo pelos governos que são incapazes de lidar diretamente com as profundas ansiedades da classe média.

O autor se refere aos anos precedentes que geraram a crise de 2008 nos Estados Unidos. Fica claro então que a mistura entre desigualdade crescente, a necessidade do capital se reproduzir e o interesse de políticas de curto prazo é combustível para a formação de uma crise econômica de potencial devastador.

Em algum momento as famílias terão de pagar seus empréstimos e é grande a possibilidade de inadimplência. Os bancos sofrem calote e passam a dificultar empréstimos, levando empresas a entrarem em dificuldades financeiras e demitirem alguns de seus funcionários. Os depositantes deixam de receber os juros nas condições estabelecidas e toda a confiança no sistema financeiro é abalada, levando preços de ações e outros títulos a despencarem. A desigualdade, se não é a principal causa das crises econômicas, ao menos é fator de grande relevância.

Também, a concentração de riquezas demonstra seu poder na seara política ao influenciar de forma determinante os candidatos a serem eleitos. Algumas correlações são descobertas com dificuldade enquanto outras são tão evidentes que não se espera outro resultado de dados empíricos que não seja a sua confirmação. Este último é exatamente o caso entre a quantidade de dinheiro empregada em uma eleição e a chance de o candidato ser eleito. Os que possuem ou recebem mais recursos durante a campanha eleitoral são eleitos com uma facilidade muito maior. Nesse sentido, Atkinson (2015, p.34) expõe que:

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Cientistas políticos identificaram uma relação de mão dupla entre a desigualdade de renda e o papel do dinheiro na determinação do resultado de eleições democráticas, caracterizadas pela “dança da ideologia e das riquezas desiguais”.

Não se afirma aqui que são necessariamente corruptos ou facilmente corruptíveis. Entretanto, eles possuem uma tendência natural a defender os interesses de suas classes, perpetuando as diferenças sociais existentes. É ainda possível que o candidato não possua grandes recursos, mas consiga ser eleito por meio das doações eleitorais. Neste caso, o político tende a defender os interesses de seu financiador em detrimento da sociedade. Neste sentido, Sarmento e Osório (2015, p.8-9) explicam que:

Nas eleições gerais de 2010, para se eleger, um deputado federal precisou, em média, de R$ 1,1 milhão; um senador, de R$ 4,5 milhões; e um governador, de R$ 23,1 milhões. A campanha presidencial de Dilma Roussef, por sua vez, chegou a consumir mais de R$ 336 milhões contabilizados. Nesse modelo, o que garante a vitória de um candidato não é tanto a popularidade ou qualidade de suas propostas, mas a quantidade de recursos que consegue angariar.

[...]

O papel central do dinheiro nas eleições fica mais evidente ao analisarmos a relação entre as receitas obtidas e as votações alcançadas por candidatos e partidos. Diversos estudos são convergentes ao afirmar que o montante de recursos arrecadado influencia diretamente o resultado das eleições.

[...]

Ou seja, quanto mais elevadas as receitas obtidas por um candidato, maiores as suas chances de ser eleito.           

Percebe-se, desse modo, que diversos são os efeitos da desigualdade social para a sociedade: a desigualdade parece implicar em maior número de crimes mais violentos, influenciando na seletividade do Direito Penal, corrobora ainda para a criação de crises econômicas, além permitir que candidatos com maiores recursos tenham probabilidade maior de serem eleitos, criando distorções no sistema eleitoral. Para além desses efeitos existem muitos outros, como afirma Atkinson (2015, p. 34):

(Joseph Stiglitz e Kate Pickett) culpam a falta de coesão social, o aumento da criminalidade, problemas de saúde, gravidez na adolescência, obesidade e uma diversidade de problemas sociais pelo aumento da desigualdade.

Para além dos efeitos da concentração de capital e riquezas na sociedade, é ainda possível demonstrar a relevância deste estudo pela constatação de que a desigualdade é intrinsecamente injusta. A depender de que forma se aborda a questão da desigualdade, é possível adquirir maior ou menor consenso acerca de sua injustiça.

Assim, quando se aborda a questão de desigualdade de oportunidades, existe certo consenso que ao Estado cabe intervir para que as condições iniciais de vida do cidadão, que não dependem de seu mérito, mas de puro acaso, não determinem de forma absoluta suas chances de sucesso ou fracasso. Não parece ser justificável que as condições de vida de uma pessoa sejam determinadas pelo acaso.

Diversas são as correntes de justiça distributiva que, em algum momento, abordam esta temática para justificar a atuação estatal. Também, no espectro político, é possível encontrar essa ideia basilar de rejeição à desigualdade absoluta de oportunidades. Naturalmente, a intensidade de intervenção varia de acordo com a disposição do partido no espectro político. Dessa forma, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), partido de esquerda, assim dispõe acerca do papel do Estado no combate à concentração de riquezas:

Temos a necessidade também de uma profunda reforma tributária, que inverta a atual lógica que faz os impostos pesarem fundamentalmente sobre o trabalho e o consumo, e não sobre a riqueza e a propriedade, fazendo com que quem ganha menos pague proporcionalmente muito mais imposto do que quem ganha mais.

Defendemos a taxação das grandes fortunas, pesados impostos sobre os mais ricos e alívio da carga tributária sobre a classe média e os pobres.

Por outro lado, em diferente intensidade, mas também na lógica de combate à desigualdade, dispõe o ideário do Democratas (DEM), partido de direita no Brasil:

Consideramos, entretanto, que há problemas e desigualdades que não podem ser satisfatoriamente resolvidos pelo livre jogo das forças de mercado. Existe um espaço legítimo, sobretudo na área social, para a atuação do Estado, o que não prejudica, antes preserva, o mais puro sentido de liberdade.

A meritocracia, base angular da sociedade capitalista, não consegue justificar a existência de desigualdades se as condições iniciais forem diferentes e é por este motivo que é possível encontrar alguma unicidade na ideia de que a desigualdade de oportunidades deve ser, em alguma intensidade, combatida. É neste contexto que Piketty (2015, p. 10) assim argumenta:

Com efeito, há certo consenso a respeito de diversos princípios básicos de justiça social. Por exemplo, se a desigualdade se deve, ao menos em parte, a fatores fora do controle dos indivíduos, como a desigualdade das dotações iniciais transmitidas pela família ou pela sorte – sobre as quais os indivíduos envolvidos não podem ser considerados responsáveis, então é justo o Estado buscar melhorar, da maneira mais eficaz possível, a vida das pessoas mais pobres, isto é, daquelas que precisam enfrentar os fatores não controláveis mais adversos.

Assim, a desigualdade é intrinsecamente injusta visto que confere grande valor ao acaso e à chance em detrimento do esforço e do empenho.  

Assuntos relacionados
Sobre os autores
Imagem do autor João Victor Nogueira de Araújo
João Victor Nogueira de Araújo

Advogado e Assessor Jurídico na Procuradoria de Assessoramento Jurídico à Chefia do Poder Executivo, na Procuradoria-Geral do Estado do Pará (PGE-PA). Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA), tendo sido honrado com láurea acadêmica por ter tido a maior média do curso. Foi membro da Clínica de Prevenção e Combate ao Superendividamento do CESUPA, do grupo de pesquisa "O Capital no Século XXI: Piketty e a Economia da Desigualdade" e monitor da disciplina Direito Constitucional I e II. Coautor do livro "O Capital no Século XXI: Piketty e a Economia da Desigualdade".

Ana Elizabeth Neirão Reymão

Possui graduação em Economia pela UFPA (1991), mestrado em Economia pela UNICAMP (2001) e doutorado em Ciências Sociais (Programa de Estudos Comparados sobre as Américas) pela Universidade de Brasília (2010). É professora adjunta e pesquisadora da Universidade Federal do Pará (UFPA) e do Centro Universitário do Pará (CESUPA), no qual participa do Programa de Pós-Graduação em Direito, Políticas Públicas e Desenvolvimento. Tem experiência de ensino, pesquisa e consultoria na área de Economia, com ênfase em desenvolvimento socioeconômico, atuando principalmente nos seguintes temas: avaliação de políticas públicas, mercado de trabalho, pobreza, microcrédito, indicadores econômicos e sociais e Amazônia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, João Victor Nogueira ; REYMÃO, Ana Elizabeth Neirão. Concentração de riquezas e a legitimidade de intervenção estatal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5981, 16 nov. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63754. Acesso em: 19 abr. 2024.

Mais informações

Trata-se de um dos capítulos de Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado em Junho de 2017.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos