Se a religião é o ópio do povo – como escreveu Marx – o Judiciário brasileiro é o que? Afinal, o poder que deve preservar a Constituição e defender a integridade moral do direito teria aptidão para autorizar bloco carnavalesco que prega a tortura? Mesmo em se tratando de carnaval, festa pagã em que as hierarquias são invertidas, com os valores remexidos em sua origem de classe social, poderia o Judiciário brincar nesta festa?
O caso concreto se refere à liberação (liminar) concedida pela juíza Daniela Pazzeto Meneghine Conceição, da 39ª Vara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo, a fim de que o Bloco de Carnaval denominado “Porões do Dops” – do grupo de extrema intolerância e adepto do Estado de Exceção “Direita São Paulo” – pudesse desfilar no carnaval paulista de 2018.
A premissa prestada ao Estado Democrático de Direito, com a oferta do sagrado direito de livre expressão a ser usado como arma em ato atentatório e de gravíssima violação aos direitos humanos, requer que a sociedade comprometida com o direito, a cidadania não complacente com a injustiça institucional, atue na forma política e jurídica.
A antinomia a esta interpretação do Judiciário paulista exige respostas e ações comprometidas com os valores humanos, bem como sejam averiguados judicialmente seus próprios idealizadores, a fim de que seja desfeita a injusta predação judicial de direitos humanos conferida pela magistratura ao caso em tela.
Portanto, requeremos o impedimento legal do bloco carnavalesco Porões do Dops, em alusão à prática da tortura, para não desfilar na capital paulista, bem como se reavalie a conduta da magistratura diante de outras possíveis notificações desse gênero.Da alegoria carnavalesca
Desde a origem mais remota do carnaval, em priscas eras, sabe-se que há regras vigentes – independentemente se a prática alegórica apregoa a frouxidão na rigidez das regras sociais. Como alegoria deste mal-uso do direito constitucional, propomos a seguinte reflexão acerca das práticas sociais de racismo, homofobia, xenofobia, misoginia e demais formas de preconceito e de discriminação racial, social, de natureza física, religiosa ou moral:
Se eu crio uma página, um sítio, um espaço em redes sociais em defesa da tortura, de acordo com o Judiciário de São Paulo, estarei fazendo uso do direito de livre expressão. É fato!
Desse modo, se alguém se inspirar em meu conteúdo e praticar tal tortura contra algum desafeto, ainda que declare ter em mim sua inspiração, não poderei ser responsabilizado por nada. Afinal, recebi ordem judicial pra me manifestar livremente.Podemos concluir, em análise dedutiva, que ao menos alguma prática de tortura seria apenas e tão-somente manifestação cultural?
De outro modo, o Judiciário também autorizou a prática de apologia ao crime, uma vez que a tortura é ("era"?) considerada crime hediondo.
A magistratura alega que proibir esse espaço, em manifestar livremente o desejo de um crime cruel, seria censura prévia. Fato sentenciado!
Ou seja, proibir, punir a apologia ao crime seria censura prévia. Mais um fato judicial.
Então, para sermos lógicos, devemos permitir que as rádios FM toquem Funks que alegam ser legítima defesa o assassinato previsto na letra da música, encomendado portanto, de policiais. Do contrário, seria censurar previamente.
Liberdade de expressão, livre manifestação cultural. Tal como a prática religiosa do Candomblé e da Umbanda seriam ofendículos diabólicos e, por isso, seria justo que seus praticantes fossem imolados vivos em praça pública. Liberdade de expressão da violência pelo Talebã evangelizador nacional.
Alegar tal conteúdo, tal qual na Idade Média, escorreria pelo direito à liberdade? E a chamada “missa negra” da Igreja Católica teria o mesmo fim? Afinal, é livre a expressão para quem determina o Pelourinho no século XXI.
Também poderia, nessa linha de raciocínio, criar um blog, escrever artigos, sobre o benefício pessoal que se tem em matar pobres:
"Mate um pobre por dia. Complete sua elevação espiritual!".
É legítimo alegar que, de forma inteligente, criativa, empresários deveriam acorrentar seus trabalhadores – especialmente negros – porque seriam decorrências naturais da seleção natural?
Publicar vídeos de estupro coletivo de adolescentes também seria um ato prenhe de legalidade. Com a legenda subsequente: “Tenha você também uma em casa, para uso e gozo do macho!”...
Não haveria crime em defender livremente o direito de estuprar qualquer mulher na rua.
A justiça paulista permite que, em nome da liberdade, eu defenda o fim da liberdade do outro; no caso, da outra mulher.
Ainda, posso enviar e-mails dizendo que torturar gays é um ato patriótico?
Mas, é preciso entender que a única coisa que não podemos fazer, de acordo com a lei e consorte ao judiciário paulista, é chamar um negro de "negão". A lei define como injúria racial. (Aqui está certo, porque faz referência à escravidão!).
Ou será que não houve escravismo no Brasil, será que tudo não passou da livre expressão do capital colonizador e oligárquico?
Assim, pregar que este negro ou aquela negra sejam acorrentados e açoitados, tudo bem. Isso eu posso falar! Inclusive criando um bloco de carnaval.
É liberdade de expressão.
Por fim, é interessante notar que o Judiciário paulista criou uma “nova” exegese da lei. Pois, agora, quem não pode o menos (injúria racial), pode o mais: a própria apologia ao crime hediondo, ao racismo, à tortura, à violação do corpo humano e aos direitos mais sagrados.
Também vemos que o ativismo judicial é capaz de modificar a Constituição e o direito penal com uma canetada monocrática.
"É proibido proibir!".
Esse é o mote do Judiciário paulista.
Só é estranho porque, em 1968, os idealizadores pensaram coisa oposta.
Mas, como aqui pessoas são coisas, vale tudo!
Nosso estranhamento, como categoria sociológica, é diferente.
Há o jeitinho, uma prática epistemológica de livre manifestação cultural.
E no judiciário o estranhamento é divergente da Constituição. Mas, o que é a Constituição, se não um saco de direitos espancados, não é mesmo?