Resumo: O presente artigo traz contribuições, sob a ótica do Direito Constitucional, às reflexões sobre o decreto presidencial anunciado no dia 16 de fevereiro de 2018, referente à intervenção federal no setor de segurança pública do estado do Rio de Janeiro. Por tratar-se de fato recente, a metodologia da abordagem utilizará fontes jornalísticas, acrescidas de bibliografias jurídicas e legislações anteriores, tendo como objetivo esclarecer os principais pontos do tema sob a égide da técnica legislativa e das Constituições (Federal e Estadual), sem deixar de apresentar hipóteses sobre os aspectos políticos, sociológicos e antropológicos da discussão.
Palavras-chave: Intervenção. Constitucional. Rio de Janeiro.
Abstract: This article brings contributions, from the perspective of Constitutional Law, to the reflections on the presidential decree announced on February 16, 2018, referring to federal intervention in the public security sector of the state of Rio de Janeiro. As it is a recent fact, the methodology of the approach will use journalistic sources, along with legal bibliographies and previous legislation, with the objective of clarifying the main points of the topic under the aegis of the legislative technique and the Constitutions (Federal and State), without leaving to present hypotheses about the political, sociological and anthropological aspects of the discussion.
Keywords: Intervention. Constitutional. Rio de Janeiro.
Sumário: Introdução – Intervenção militar e estado de exceção. 1. A constitucionalidade do decreto de intervenção. 2. Discussões políticas e rumores sobre a intervenção, à ótica da legalidade. Conclusão.
Introdução – Intervenção militar e estado de exceção.
O país parou para discutir e tentar entender o decreto de intervenção na segurança pública do estado do Rio de Janeiro, assinado pelo presidente Michel Temer no último dia 16. Temos observado muitas reflexões. Nestas linhas buscaremos focar numa abordagem ligada às técnicas legislativas e às discussões acadêmicas sobre o tema para ajudar a população a, primeiro, compreender o que está ocorrendo; segundo – aí sim – a se posicionar criticamente diante dos fatos.
Primeiro, cabe destacar que, tecnicamente falando, não se trata de uma intervenção militar, mas sim de uma intervenção federal, conforme denota o artigo 21, inciso V da Constituição Federal (Brasil, 2015)[2]. O governo federal designou como interventor um militar, mas poderia tê-lo feito com um civil. Se, na prática, trata-se de uma manobra para, efetivamente, realizar uma intervenção militar, diretamente, na segurança pública estadual é uma outra discussão. O fato é que o artigo 5º, inciso XLIV da mesma CRFB, veda ações de grupos militares armados contra a ordem constitucional e o estado democrático, o que, em tese, é uma vedação constitucional a uma intervenção militar.
A intervenção poder ser entendida como um estado de exceção. Isso porque o artigo 3º da Constituição Federal, inciso IV, determina que um dos objetivos da República Federativa do Brasil é a não-intervenção. Logo, se ela existe, é uma exceção. Isso não se trata, porém, de um silogismo simplório. O estado de exceção tem como origem histórica a Revolução Francesa, pois, segundo Agamben (2004), a ideia de uma suspensão da constituição aparece pela primeira vez na Constituição de 22 frimário[3], a qual previa a suspensão das normas constitucionais que protegiam as liberdades individuais como único meio de proteger o estado democrático. A cidade ou região em questão era declarada hors la Constitution (fora da constituição).
Aí surge nova pergunta: se o estado de exceção é exatamente o “estar fora da Constituição”, como pode a Constituição regular um estado fora dela, como acontece na CRFB/1988, já que a Carta Magna regula, especialmente nos artigos 34 a 36, os casos de intervenção, que aqui ousamos “acusar” de poder ser enquadrada como estado de exceção?
Simples. Para Agamben (2014), o termo “estado de exceção” vem das doutrinas italiana e francesa, sendo que ambas, de acordo com Camargo (2008)[4], foram as principais influenciadoras da Constituição de 1988. “Segundo Agamben, um exame da situação do estado de exceção nas tradições jurídicas dos Estados ocidentais mostra uma divisão – clara quanto ao princípio, mas de fato muito mais nebulosa entre ordenamentos que regulamentam o estado de exceção no texto da constituição ou por meio de uma lei, e ordenamentos que preferem não regulamentar explicitamente o problema. Ao primeiro grupo pertencem a França (onde nasceu o estado de exceção moderno, na época da Revolução) e a Alemanha; ao segundo, a Itália, a Suíça, a Inglaterra e os Estados Unidos” (Souza[5] e Oliveira, 2016, p. 135).
1.A constitucionalidade do decreto de intervenção.
O decreto de intervenção pode ser entendido como inconstitucional se não seguir tecnicamente todos os trâmites da constituição. O parágrafo 1º do artigo 36[6] afirma que o nome do interventor deverá ser submetido ao Congresso em 24 horas. Pelo artigo 49, inciso IV, a intervenção só pode valer após aprovada pelo Congresso, o que também não ocorreu. Se esses prazos não forem cumpridos, o decreto será ilegal. Ou seja, só com a aprovação do Congresso o interventor poderá assumir a gestão da segurança fluminense. Tudo dependerá do que acontecerá nos próximos dias.
O que o interventor deve fazer, segundo o decreto, é não se sujeitar às normas estaduais que conflitem com os ordenamentos federais, ou seja, ele é submisso diretamente ao Presidente. Ele também deve deter o controle de todos os órgãos estaduais de segurança dispostos no artigo 144 da CRFB, ou seja, Polícias Militar e Civil; e Corpo de Bombeiros. A Política Penitenciária também entra, pois está prevista como órgão na Constituição do Estado, Título V, que o decreto de intervenção também coloca como parâmetro.
O que o interventor pode fazer, segundo o decreto, é utilizar a estrutura financeira do Estado do Rio para seu trabalho; e requisitar bens, serviços e servidores da Secretaria de Estado de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro e do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro.
O decreto nada diz sobre permissão ou proibição de colocar membros das forças armadas diretamente (e não apenas auxiliando a PM, por exemplo) para realizarem operações em favelas, por exemplo. Em tese, como veremos à frente, o interventor poderá até baixar legislação alterando as funções da PM, e, se houver também uma mudança nos itens de atribuições das forças militares, mudando-se a legislação militar federal, pode-se “substituir” operações de busca, apreensão, prisão e outras, até então feitas por Policias Militares, para que sejam feitas por militares, ainda que ao arrepio de todas as opiniões dos especialistas em segurança pública, que entendem ser isso uma temeridade, conforme também veremos à frente. Tudo isso, vejamos bem, é o que pode acontecer em tese, diante das brechas do decreto.
Isso significa que o Interventor pode manter policiais e bombeiros onde estão; mudar suas lotações; substituí-los por militares ou fazê-los agir em conjunto. Logo, não há nenhuma certeza sobre presença de militares nas ruas, muito menos operando no lugar da PM, por exemplo. Isso depende das ordens do interventor.
Com isso, percebe-se que a intervenção não é no governo do Estado, mas apenas no setor de segurança do governo do estado, como dia o parágrafo 1º do artigo 1º do decreto presidencial. É como se o interventor tomasse o lugar do secretário estadual de segurança, mas obedecendo diretamente ao presidente e não mais ao governador, sendo que o resto do governo estadual ficaria como está.
Isso também significa que as mudanças por ele elencadas servirão para todo estado, logo, para os batalhões, quartéis e delegacias do interior, e não apenas para a capital ou região metropolitana, dado que terá relevância em abordagens nas próximas linhas.
A Reforma da Previdência terá dificuldades de ser discutida pelo Congresso com o decreto, pois o parágrafo 1º do artigo 60 da Constituição veda emendas ou reformas constitucionais durante intervenção, estado de defesa ou de sítio. O governo pode suspender o decreto por alguns dias para votar a reforma e depois voltar com ele, mas isso seria um desgaste político forte.
2.Discussões políticas e rumores sobre a intervenção, à ótica da legalidade.
O que parece é que o governo percebeu que poderia aumentar sua popularidade agindo de forma intensa no setor que aparece como uma das maiores preocupações dos brasileiros (segurança pública)[7]. Melhorando sua aceitação, assim, reduziria a rejeição popular à reforma, o que convenceria congressistas indecisos a votar favoravelmente, especialmente, em ano eleitoral, onde as pesquisas de opinião sobre o governo pesam muito. Logo, legalmente, a reforma fica inviabilizada, mas há brecha legal para que ela ocorra e ainda pode haver uma estratégia política para que, no final, a intervenção ajude na votação da reforma, como dar um passo para trás e, posteriormente, dar dois à frente.
Há quem diga que a intervenção federal na segurança do estado do Rio é um ensaio para um golpe militar no país. Isso é muito pouco provável. Mas é fato que há uma brecha perigosa no parágrafo 4º do artigo 3º do decreto presidencial. Ele diz que “as atribuições previstas no art. 145 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro que não tiverem relação direta ou indireta com a segurança pública permanecerão sob a titularidade do Governador do Estado do Rio de Janeiro.”
Ora, isso significa dizer que as atribuições do artigo 145 que tiverem relação direta ou indireta com a segurança ficam a cargo do interventor. Mas quais das 16 funções do artigo 145, que são as atribuições do governador do estado do Rio de Janeiro, podem ser assim entendidas?
Não há nada que diga quais delas são direta ou indiretamente ligadas ao setor de segurança, o que, em tese, abre brecha para que qualquer função possa ser exercida pelo interventor, dependendo da “interpretação”. Vejamos o item IV, “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”. Se forem leis, decretos e regulamentos sobre segurança, ao que parece dizer o decreto de intervenção, serão editados pelo interventor. E o item V, “vetar projetos de lei, total ou parcialmente”. Se forem na área de segurança, ao que parece dizer o decreto presidencial, o interventor parece ter poder de veto.
Vejamos agora o item VII, “decretar e executar a intervenção nos Municípios, nomeando o Interventor, nos casos previstos nesta Constituição”. Neste caso, não há risco, em tese, pois o artigo 35 da Constituição Federal e o artigo 355 da Constituição Estadual não permitem intervenções do estado nos municípios por motivos de segurança.
Na verdade, o parágrafo 4º do artigo 3º abre brechas para uma ampliação do poder do interventor, além dos limites divulgados pela mídia, o que é perigoso, entretanto, não parece abrir caminho para uma intervenção total do Governo Federal no Estado, muito menos um golpe militar.
O decreto de intervenção de 2018 é diferente do decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) de 2017. Ambos foram assinados pelo governo federal em relação ao Rio de Janeiro, porém, no caso da GLO, o que tivemos foi o “emprego das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem, em apoio às ações do Plano Nacional de Segurança Pública, no Estado do Rio de Janeiro”, como diz o artigo 1º do decreto de 28 de julho de 2017.
Esse decreto diz que a validade da GLO vai até 31 de dezembro de 2018, logo, ele estará vigente junto ao decreto da intervenção no Rio. A diferença é que o decreto de 2017 liberava membros das forças armadas a auxiliarem na segurança da pública do rio, mas mantinham a gestão dessa área nas mãos do secretário estadual de segurança, submisso ao governador.
O detalhe interessante é que a redação do decreto da GLO foi alterada em 29 de dezembro de 2017, estendendo o prazo final até o fim de 2018, já que a redação original ia somente até o fim de 2017. Logo, isso significa que as forças armadas podem ser enviadas para auxiliar a segurança do Rio a qualquer momento, mas a gestão da pasta só pode estar nas mãos do interventor federal depois que o decreto for aprovado pelo Congresso.
Esse fato indica também que a intervenção, muito provavelmente, já estava sendo costurada desde o ano passado. Isso também significa que não é ilegal o envio de tropas para o Rio antes da aprovação do decreto presidencial pelo Congresso, pois esse envio se baseia no decreto de 2017 (forças militares atuando de forma auxiliar), e não no decreto de 2018 (gestão da segurança passando para as mãos do interventor militar).
Apesar da vigência da GLO desde a metade do ano passado, foi curto e, ao menos aparentemente, pouco eficiente o período de presença intensa das forças armadas nas ruas do Rio – aliás, só da cidade do Rio de Janeiro, pois nada se viu pelo interior, o que reforça a tese de que tais operações foram mais midiáticas do que práticas.
O Jornal O Globo lembra que os militares ocuparam apenas os acessos à Favela da Rocinha durante uma semana e que um dia antes das retiradas das tropas do local, traficantes já anunciavam a volta do toque de recolher como regra aos moradores. O próprio comandante das Forças Militares do Leste lembrou que a função das forças armadas é apenas o cerco, e que a busca e apreensão de criminosos cabe à PM[8].
Foram mais de 10 mil homens exclusivamente nas ruas cariocas a partir de 28 de julho de 2017: 8.500 das Forças Armadas, 620 da Força Nacional, 380 da Polícia Rodoviária Federal, além de 740 policiais rodoviários que já atuam no estado[9]. Na ocasião, o ministro da Justiça, Torquato Jardim, enumerou os principais crimes a serem combatidos nas ações federais: "São quatro tipos de crimes que competem à União combater, em parceria com os estados: o comércio de drogas, o tráfico de armas, crimes financeiros e o tráfico de pessoas. Todo esse trabalho está sendo combatido no Rio de Janeiro com o estrangulamento ao fluxo dos operadores dos atos ilícitos".
O que se viu, porém, foi uma presença visível das forças militares nas ruas, no asfalto, especialmente em blitz, e nenhuma ação direta em morros e favelas. Até 26/8, não havia sido apreendido sequer um fuzil. O Ministério Público Federal do Rio se pronunciou apontando a ineficácia do emprego das Forças Armadas e solicitando que o governo federal envie recursos para a Polícia Militar sair do sucateamento.
A fala foi do procurador Eduardo de Oliveira, que coordena o Controle Externo da Atividade Policial no Rio. “O Exército é essencial na soberania nacional e nas fronteiras. Mas a tropa ficar parada em pontos de uma comunidade para a polícia cumprir mandados de prisão é ineficaz e tem um custo enorme. Esse recurso financeiro poderia ser utilizado para ajudar no conserto das viaturas da Polícia Militar, por exemplo”[10].
Na mesma edição, o Jornal O Dia apurou que o custo de uma operação diária do Exército é de R$ 1,2 milhão. Atualmente, cerca de 40% das viaturas da corporação estão paradas com avarias.
Procurado, o porta-voz do Exército, coronel Roberto Itamar, disse que “o Exército não faz ocupações devido ao alto custo e que no passado essa ação demonstrou não ter resultados”. Em 1 ano e meio no Complexo da Maré o custo da ocupação foi de R$ 400 milhões.
Para o major da reserva do Exército e consultor em análise de risco do think tank Instituto Arc, Nelson Ricardo Fernandes Silva, “Há uma força policial para entrar nas residências e realizar revistas. Caso o Exército fizesse isso, seria uma aplicação torta de sua finalidade. Tem policiais para fazer isso e é mais sensato usar alguém que sempre operou no local e conhece bem a área”. Logo, um possível uso de militares no lugar de policiais em operações desse tipo, na vigência da intervenção, seria algo reprovado por especialistas e perigoso.
Para o sociólogo Ignacio Cano, pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), “está sendo colocado para a população que a solução dos problemas da violência virá nas mãos do exército”. Para Cano, “essa solução não virá porque o exército não tem essa capacidade e não tem essa função”[11].