1.Apresentação
Atendendo dispositivo constitucional (art. 169), a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) opõe limites à despesa com pessoal do setor público, nisso considerando a influência de tal gasto no desequilíbrio fiscal, do mesmo modo que fazem os juros da dívida, a ajuda federal aos demais entes estatais, os dispêndios de último ano de mandato e os gastos dos Poderes Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Tribunal de Contas.
Relativamente ao direito anterior (Lei Complementar 96, de 1999), foi mantido o teto para o gasto laboral: 60% para Estados e Municípios; 50% à União, trazendo-se, contudo, as seguintes inovações:
a) Imposição de subteto por Poder estatal (Legislativo, Executivo e Judiciário) e órgão referido no art. 20 da LRF (Ministério Público e Tribunal de Contas).
b) Controle e sanções no restrito âmbito de cada um dos sobreditos Poderes e órgãos de governo.
c) Os Tribunais de Contas alertam quando superado 90% do subteto.
d) Determinação de um freio prudencial, cautelar (95% do subteto), acima do qual e afora certas exceções, não se pode aumentar a despesa em questão.
e) Nos 180 últimos dias de mandato dos agentes políticos, é proibida a majoração percentual do gasto com recursos humanos.
f) Excetuado o derradeiro ano de gestão, abrem-se oito meses para a retomada do subteto de cada Poder, Ministério Público e Tribunal de Contas. No baixo ou negativo crescimento da economia (PIB), tal prazo é duplicado; amplia-se para dezesseis meses.
g) O não ajuste ao limite acarreta sanções pessoais ao chefe de Poder, do Ministério Público e dos Tribunais de Contas e, também, ao ente federado como um todo (por exemplo, impedimento de receber transferências voluntárias de outros níveis de governo).
h) Na condição de gasto continuado, a criação de despesa laboral solicita estudos trienais de impacto orçamentário e financeiro, bem assim declaração de que haverá permanente recurso de financiamento.
i) O cálculo passa a somar os contratos de terceirização da mão de obra que, efetivamente, substituem servidores do quadro permanente.
j) Reafirmação do princípio da competência da despesa, contabilizando-se no exercício de assunção do compromisso, a folha salarial e os encargos patronais pagos no início do ano seguinte.
Segundo a Lei de Responsabilidade Fiscal, a despesa com o fator trabalho é apurada de quatro em quatro meses; em abril, agosto e dezembro, comparecendo os resultados no quadrimestral relatório de gestão fiscal (RGF).
De ressaltar, sob tal disciplina a despesa de pessoal não deve nunca ser vista em números absolutos, nominais, monetários, mas numa relação percentual de12 (doze) meses, comparecendo no denominador o indicador básico do direito financeiro: a receita corrente líquida.
Aquela amplitude temporal, de 12 meses, neutraliza aumentos havidos em determinados meses do ano, como o pagamento do 13º salário ou a concessão de reajustes remuneratórios; de igual sorte, anula oscilações da receita em certos períodos do exercício, como o IPTU pago à vista no início do ano. Assim, o intervalo de doze meses modera os efeitos sazonais de gastos e receitas.
E a receita corrente líquida tem a vantagem de afastar a grande inconstância da receita de capital e as duplicidades contábeis que se ensejam no campo da receita (ex.: contribuição dos segurados ao regime próprio de previdência); demais disso, tal receita agrega todas as entidades do mesmo nível de governo (Administração direta, autarquias, fundações, empresas dependentes).
2.A polêmica das verbas indenizatórias
A Lei de Responsabilidade Fiscal, no art. 18, bem detalha os itens que ingressam no cômputo da despesa com pessoal:
Art. 18. Para os efeitos desta Lei Complementar, entende-se como despesa total com pessoal: o somatório dos gastos do ente da Federação com os ativos, os inativos e os pensionistas, relativos a mandatos eletivos, cargos, funções ou empregos, civis, militares e de membros de Poder, com quaisquer espécies remuneratórias, tais como vencimentos e vantagens, fixas e variáveis, subsídios, proventos da aposentadoria, reformas e pensões, inclusive adicionais, gratificações, horas extras e vantagens pessoais de qualquer natureza, bem como encargos sociais e contribuições recolhidas pelo ente às entidades de previdência.
Tal como grifado no transcrito artigo, o cálculo abrange todas as espécies remuneratórias de pessoal, não se fazendo contudo menção a qualquer tipo indenizatório.
Então, na aferição dos limites do gasto laboral, perfilam os itens remuneratórios, mas não as chamadas verbas indenizatórias.
Bem por isso, a Lei de Responsabilidade Fiscal, no art. 19, § 1º, I e II, exclui, de forma textual, os pagamentos indenizatórios aos demitidos de forma voluntária ou involuntária.
Para a doutrina e jurisprudência restou pacífico que são indenizatórios, não remuneratórios, os desembolsos alusivos a diárias, ajuda de custo, auxílio-alimentação, auxílio-transporte, auxílio-natalidade, auxílio-creche, auxílio-funeral. É porque tais verbas não pagam diretamente o trabalho; além disso, sobre elas não incidem as contribuições previdenciárias, tampouco o Imposto de Renda na Fonte.
Assim, a controvérsia assentou-se no terço constitucional de férias, nas horas extras, no salário-maternidade, entre outros desembolsos.
E várias foram as decisões dos tribunais superiores (STF, STJ, TST), concluindo que o terço adicionado às férias possui natureza indenizatória, não remuneratória. Assim pensam os magistrados porque tal parcela:
- Não retribui serviço efetivamente prestado;
- Não se incorpora à remuneração do empregado ou servidor;
- É para garantir reforço financeiro ao trabalhador em período férias, no escopo de reparar seu desgaste físico e mental.
A interpretação de tal matéria, contudo, ainda era bem instável, aguardando-se que a Supremo Tribunal Federal (STF), em sede de repercussão geral (RE 593.068), decidisse se caberia, ou não, contribuição previdenciária e Imposto de Renda sobre o terço constitucional de férias, solvendo, de vez, o entendimento de sua natureza: remuneratória ou indenizatória.
No entanto, a esperada harmonização não proveio do Judiciário, e, sim, mediante a Lei 13.485, de 2017; em verdade, nos trechos em que o Congresso derrubou os vetos presidenciais, culminando na promulgação feita em 2 de outubro de 2017:
Art. 11. - O Poder Executivo federal fará a revisão da dívida previdenciária dos Municípios, com a implementação do efetivo encontro de contas entre débitos e créditos previdenciários dos Municípios e do Regime Geral de Previdência Social decorrentes, entre outros, de: (Promulgação)
(...)
IV - valores referentes às verbas de natureza indenizatória, indevidamente incluídas na base de cálculo para incidência das contribuições previdenciárias, tais como:
a) terço constitucional de férias;
b) horário extraordinário;
c) horário extraordinário incorporado;
d) primeiros quinze dias do auxílio-doença;
e) auxílio-acidente e aviso prévio indenizado;
Desse modo, a lei, agora, determina restituição da contribuição previdenciária indevidamente recolhida sobre o terço de férias, as horas extras e aquelas outras verbas; isso porque todas elas, conforme bem expressa o texto legal, têm natureza indenizatória, não remuneratória.
Na qualidade de indenizatórios, tais pagamentos não deveriam integrar os limites da despesa de pessoal, vez que, assim como já se disse, a Lei de Responsabilidade Fiscal só quer a agregação das espécies remuneratórias no cálculo em debate.
E, o que é para o regime geral de previdência (INSS), torna-se conceito estendido aos servidores vinculados a sistemas próprios de previdência. Tal se ampara nos princípios da razoabilidade, igualdade e simetria.
Portanto, o terço de férias e as elencadas outras verbas indenizatórias, todas elas deveriam, a partir de agora, afastar-se da despesa com pessoal, quer para os celetistas, quer para os estatutários.
De todo modo, já surge aqui uma polêmica no tocante às horas extras; é porque a Lei de Responsabilidade Fiscal, de 2000, as têm como remuneratórias, enquanto são indenizatórias sob a Lei 13.485, de 2017.
Sob a dicção de que regra nova se sobrepõe à regra antiga, nesse enfoque hermenêutico, permitimo-nos entender que as horas extras não mais pagariam os ônus previdenciários (INSS ou RPPS), e seu valor, por conseguinte, estaria afastado dos limites com gasto de pessoal.
De todo modo, a Secretaria do Tesouro Nacional (STN), enquanto órgão padronizador das contas públicas, deveria apresentar códigos que identificassem o terço de férias, as horas extras e os outros pagamentos indenizatórios da Lei 13.485, os quais, na folha mensal de pagamentos, estariam isentos da contribuição previdenciária e do Imposto de Renda, sendo que, na aferição das barreiras de pessoal, seriam abatidos no campo subtrativo da fórmula.
De qualquer forma, bom lembrar que a comentada derrubada do veto presidencial culminará em mais uma grande perda na receita previdenciária (INSS e RPPS); isso num momento cujo déficit do setor é tido como sério entrave às políticas nacionais de investimento e redução da dívida pública.
3.A polêmica relativa ao afastamento dos ganhos financeiros do RPPS da base de cálculo (receita corrente líquida).
Respeitável linha de entendimento defende que não integra a receita corrente líquida (RCL) os geralmente elevados ganhos de aplicação financeira do regime próprio de previdência (RPPS). Para tanto, consideram que tais rendimentos não têm existência própria; derivam, provêm, se originam das receitas normais do RPPS, ou seja, as de contribuição patronal e funcional. Em suma, esses ganhos financeiros não existiriam caso não ingressassem, no caixa estatal, as entradas habituais, corriqueiras, do sistema local que paga aposentadorias e pensões.
Aqui, de considerar que a despesa de pessoal é sempre relativizada em função da receita corrente líquida (RCL); uma redução nesta base acarreta, claro, aumento percentual na despesa com o fator trabalho.
De nossa parte, ousamos discordar daquela prestigiosa interpretação. Eis as nossas razões:
1. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) não determina a subtração daqueles rendimentos financeiros; só manda deduzir as contribuições dos segurados, bem como as receitas de compensação entre os sistemas de previdência (INSS e RPPS) e, por metodologia da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), também as perdas financeiras no jogo contábil do Fundeb; nada mais do que isso. Põem-se aqui deduções exaustivas, terminativas, não exemplificativas, que se veem na seguinte passagem daquela disciplina:
Art. 2º - Para os efeitos desta Lei Complementar, entende-se como:
(.....)
IV - receita corrente líquida: somatório das (......) , deduzidos:
(...)
c) na União, nos Estados e nos Municípios, a contribuição dos servidores para o custeio do seu sistema de previdência e assistência social e as receitas provenientes da compensação financeira citada no § 9º do art. 201 da Constituição.
§ 1o Serão computados no cálculo da receita corrente líquida os valores pagos e recebidos em decorrência da Lei Complementar no 87, de 13 de setembro de 1996, e do fundo previsto pelo art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
2.Tanto é assim que, no Manual de Demonstrativos Fiscais (7ª. edição/2017), a Secretaria do Tesouro Nacional (STN), no modelo de aferição da receita corrente líquida (RCL), enuncia apenas os três sobreditos abatimentos legais; dito de outra maneira, a STN não determina, em nenhum momento, a subtração dos tais ganhos financeiros do sistema próprio de previdência[1].
3.Na vertente polêmica, há de se analisar, em primeiro lugar, o todo da questão, ou seja, a despesa de pessoal dividida pela receita corrente líquida (DP/RCL) [2]. Nisso e no que toca aos inativos, a LRF (art. 19, § 1º, VI) quer a inserção do gasto líquido, isto é, a despesa bruta menos as contribuições (patronais e dos segurados) e, só se for preciso, as outras receitas do RPPS, inclusive os tais ganhos financeiros do sistema.
4.Então, os rendimentos financeiros do RPPS poderiam ser abatidos da despesa laboral caso amparassem, realmente, o gasto com inativos, o que, se assim fosse, justificaria, por simetria, igual dedução sobre a receita corrente líquida (RCL).
5.Ocorre que, na maior parte das vezes, as contribuições patronais e do segurados, por si só, são mais do que suficientes para honrar as aposentadorias e pensões do período, quer isso dizer, em boa parte dos entes estatais, aqueles ganhos financeiros não custeiam, no presente momento, os inativos.
6.E, desde que esses rendimentos não financiam a parte superior da equação (a despesa de pessoal), por que afastá-los do lado de baixo do cálculo (a receita corrente líquida)??
7.Em outras palavras e sob o conceito de gasto líquido com inativos, não se pode descontar, da despesa laboral, mais do que se paga aos aposentados e pensionistas. O limite, claro, é o gasto bruto com aposentadorias e pensões.
8.E, em algumas poucas hipóteses, apenas pequena fração dos tais rendimentos suporta as despesas com a inatividade. Nesse cenário, não faz sentido deduzir, da receita corrente líquida, a totalidade dos rendimentos auferidos no período de cálculo, mas, apenas, o valor efetivamente revertido ao custeio em questão.
9.De lembrar que, mediante as aplicações financeiras, a capitalização dos sistemas previdenciários é essencial na futura garantia de aposentadorias e pensões. Prova disso, o Conselho Monetário Nacional (CMN) dispõe rígidas normas para aplicação das sobras monetárias do sistema próprio [3].
10.Além disso, argumenta-se que os rendimentos financeiros do RPPS constituem uma duplicidade contábil, posto que apenas derivam de uma receita originária: a das contribuições ao sistema próprio; por isso, deveriam ser afastados da receita corrente líquida. Ousamos discordar; os tais ganhos geram, sim, acréscimo patrimonial à entidade, na medida em que aumentam o valor inicialmente aplicado, tipificando um “plus”, um engrandecimento no capital investido.
11.Ao demais, tem-se o Imposto de Renda descontado dos salários e proventos, que, este sim, não é uma nova receita e só provém de entradas primárias, como a de impostos próprios e transferências constitucionais, “retornando”, após o desconto sobre a folha de pagamento, ao caixa governamental (art. 157, I e 158, I, da CF).
12.E, mesmo o Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF), sem gerar qualquer aumento patrimonial, mesmo ele não é abatido no cálculo em questão; nem da despesa laboral; tampouco da receita corrente líquida. Veja-se o que diz a Secretaria do Tesouro Nacional, na 7ª. edição do Manual de Demonstrativos Fiscais (2017): “ O Imposto de Renda Retido na Fonte – IRRF deverá ser incluído pelo ente que efetuou a retenção na fonte, não se admitindo deduções a qualquer título para efeito de cômputo da RCL”.
13.Em suma, se não há abatimento de rubrica sem qualquer interferência patrimonial positiva, por que então deduzir um item que aumenta, sim, o patrimônio líquido da entidade: os ganhos financeiros do regime próprio de previdência?
14.Tendo em vista que as aplicações financeiras incidem sobre um capital que, no tempo, tende a se elevar, a debatida subtração da receita corrente líquida aumentará progressivamente, com desnecessários efeitos negativos sobre o percentual da despesa de pessoal.
CONCLUSÃO
Diante da edição promulgada da Lei 13.485, de 2017, o terço constitucional de férias, as horas extras e outras verbas elencadas no inciso IV, do art. 11, todas elas são agora reconhecidas como indenizatórias, não devendo integrar os limites fiscais da despesa com pessoal.
E a base de cálculo daqueles limites, a receita corrente líquida (RCL), não deveria estar subtraída pelos ganhos financeiros dos regimes próprios de previdência (RPPS); isso, em face dos argumentos antes apresentados, sobretudo o fato de esse ingresso constituir nova receita governamental, aumentando, portanto, o patrimônio líquido da entidade pública, vale dizer, não há falar aqui em duplicidade contábil.
Notas
[1] De lembrar que, na qualidade de receita intraorçamentária, a contribuição patronal ao RPPS não ingressa na receita corrente líquida; nem como inclusão; tampouco como dedução.
[2] Levando-se sempre em conta um conjunto de 12 meses; a despesa laboral realizada no mês de referência mais as dos onze meses imediatamente anteriores (art. 18, § 2º, LRF).
[3] Resolução do Conselho Monetário Nacional – CMN nº 4.604, de 19 de outubro de 2017, publicada em 20 de outubro de 2017.