Sim, precisamos falar sobre a Lei de Drogas (Lei 11.343/06). Tal Lei endureceu o sistema de combate ao tráfico de entorpecentes. No entanto, passados mais de dez anos de vigência, essa lei surtiu efeito?
Primeiro, para que serve uma lei? Basicamente para ordenar comportamentos visando um bem estar social. E a Lei de Drogas conseguiu atingir tal finalidade? A resposta é um retumbante NÃO.
Segundo o 27º relatório da Human Rights Watch, em 2005, apenas 9% da população carcerária era envolvida com drogas. Em 2016 o número passou para 28%. Isso provocou a superlotação dos presídios. Atualmente temos mais de 600 mil presos, 67% a mais do que a capacidade. Como efeitos secundários das superlotações temos: a) a impossibilidade de cumprir a Lei de Execuções Penais e buscar a recuperação social do preso; e b) o fortalecimento das facções criminosas.
A Lei 11.343/06 é um monstro. Separou de forma grotesca a pena do usuário (aliás, sequer pena de prisão é prevista), enquanto aumentou a pena do traficante. No caso do tráfico de drogas, artigo 33 da citada lei, a pena mínima é de 05 anos, indo até 15. A pena cominada impede a concessão de fiança pelo Delegado de Polícia, mesmo que todas as condições lhe sejam favoráveis (primariedade, antecedentes sociais, endereço fixo, trabalho, pequena quantidade etc.), já que a autoridade policial só pode conceder a fiança a crimes com pena máxima de 04 anos (artigo 322, do CPP).
Na prática, a figura do usuário restou confundida com o traficante, sendo difícil a sua diferenciação. Quem milita na praxe policial e judicial sabe que a maioria dos usuários também costuma vender. Vide o filme “Meu Nome não é Jonny”, no qual o protagonista começa fazendo uma “vaquinha” com os amigos para comprar cocaína e acaba virando traficante, sem nunca ter parado de usar a droga. Na dúvida, o usuário-vendedor é rotulado como traficante. Fica preso durante a instrução criminal. Lota presídios. É recrutado por facções criminosas e acaba morrendo, seja pelas mãos de milícias, pelas forças policiais ou pelos próprios traficantes. Sua prisão gera caos.
Há uma corrente que defende o endurecimento do sistema, com aumento de pena, execuções extrajudiciais e oficiais, e isolamento dos presos em superpresidios. Pura ufania. As penas já foram aumentadas, e execuções ocorrem a rodo, não havendo necessidade de legalizar a pena de morte no Brasil, e é impossível controlar mais de 600 mil presos. Quando um traficante é preso, a sua mulher assume a “boca de fumo”. Quando a mulher é presa, é o filho quem assume o negócio. Quando a “boca” está enfraquecida, é tomada por traficante rival (vide Cidade de Deus).
A repressão cega tem um efeito contrário: aumenta o preço da droga, já que diminui a oferta. O aumento do preço da droga atrai mais e mais jovens (inclusive mulheres) que buscam o lucro fácil e rápido, mesmo com o risco de vida. A Indonésia pune com a pena de morte o traficante. O tráfico acabou naquele país? Não. O que ocorreu foi um aumento vertiginoso do preço da droga. Muitos estão dispostos a arriscar a vida nessa loteria fatal. Um aventureiro que entre com poucos quilos de cocaína naquele país chega a ganhar um milhão de dólares.
Então, qual a solução?
Não há solução. Pelo menos não soluções fáceis. A simples legalização das drogas, sem estudos efetivos de seus impactos sociais e econômicos no país, parece um salto de paraquedas no escuro e sobre montanhas. Pode ser fatal.
Acredito que precisamos começar a reduzir a população carcerária para que possamos controlar os nossos presos e tirar a força das facções, que fazem dos presídios seus laboratórios e escritórios.
Uma das sugestões para tal redução é a criação de um novo tipo penal: O TRÁFICO PARA USO. Defendo que se crie um tipo penal intermediário entre o artigo 28 (uso) e o 33 (tráfico) da Lei de Drogas, prevendo, além dos verbos nucleares do tipo previsto no artigo 33, a finalidade do uso. O pequeno traficante que venda drogas para sustentar o próprio uso estaria abrangido por esse novo tipo penal. A pena máxima teria que ficar abaixo dos quatro anos, suficientes para a autoridade policial arbitrar a fiança, em sendo favoráveis as demais condições pessoais e sendo primário. A pena mínima teria que ser igual ou inferior a 01 ano. Isso possibilitaria ao Promotor de Justiça ofertar a SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO, prevista no artigo 89 da Lei 9.099/95, impondo como uma das condições ao usuário-traficante o tratamento compulsório contra as drogas.
Outra sugestão é trazer o parágrafo 4º do artigo 33 da Lei de Drogas para a própria tipicidade. Explico: o juiz, ao fixar a pena do traficante, pode reduzir a pena de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. Exemplo: “um réu primário foi preso vendendo pequenas quantidades de drogas. Ao fim de todo o processo, depois de ficar preso, ter contato com facções criminosas, ser violentado como pessoa ou ‘liberado o mal interior’, foi condenado à pena mínima de 05 anos. Como todas as demais condições lhe eram favoráveis, teve a pena reduzida em dois terços, ficando com pena de 1 ano e 08 meses, e em regime semiaberto”. Mas o mal já foi feito. Alguém que poderia ter pegado uma pena menor que 04 anos (afiançável) fica preso durante toda a instrução criminal, que, em regra, dura mais do que a pena final a ser cumprida.
E o pior: o réu do nosso exemplo não integrava organização criminosa quando foi preso. Mas no presídio teve que se filiar a uma. Ou isso, ou a morte. É beneficiado ao final, com a redução de pena, quando já integra alguma facção, como soldado recém-recrutado, mas não no início, antes de ser jogado nos presídios. Volto a dizer: a Lei de Drogas é monstruosa. A solução para o problema acima é prever um crime para abranger a figura do pequeno traficante.
Entendo que esse texto é polêmico. Mas não é a pretensão desse operador do direito. Não há lei que não possa ser discutida, reformada ou revogada. A Lei de Drogas fracassou. Faz 14 anos em 2020. Passa do tempo de discutir seus benefícios (se há algum) e a forma de aprimoramento.