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A aplicação da boa-fé objetiva nas relações obrigacionais:

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01/03/2018 às 15:00
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A boa-fé objetiva conduziu a uma nova concepção de adimplemento, uma concepção substancial, com limites elásticos de uma tolerabilidade considerada normal.

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. A BOA-FÉ OBJETIVA: NOÇÕES BÁSICAS A DOUTRINA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL; 3.1 UM NOVO OLHAR SOBRE O CONCEITO DE ADIMPLEMENTO; 3.2 O “INADIMPLEMENTO MÍNIMO” E A EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO CUMPRIDO; 3.3 O INADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL NA JURISPRUDÊNCIA; 3.4 A CONFIGURAÇÃO DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL NO CASO CONCRETO; 4 DA APLICAÇÃO DA TEORIA DO ADIMLEMENTO SUBSTANCIAL À AÇÃO RENOTÓRIA DE LOCAÇÃO COMERCIAL; 5. CONCLUSÃO; 6. REFERÊNCIAS.

RESUMO: O texto analisa a aplicação da teoria do adimplemento substancial, corolário da boa-fé objetiva, aos contratos de locação comercial. Sustenta-se ser ilícita a negativa do direito do locatário a renovação do contrato diante de um inadimplemento insignificante. Para tanto, propõe-se a reconstrução do conceito de adimplemento a partir dos padrões de conduta estabelecidos pelo princípio da boa-fé objetiva cuja finalidade é recriar o Direito Civil sob o standard da eticidade, confiança e proteção das legítimas expectativas.  

PALAVRAS-CHAVES: Boa-fé. Objetiva. Eticidade. Confiança. Abuso de direito. Adimplemento. Substancial. Fundo de comércio. Locação. Comercial.


INTRODUÇÃO

O Estado Democrático de Direito, agente de transformação social, gerou efeitos devastadores no Direito Civil com a sua despatrimonialização e repersonalização. O direito privado das coisas se transformou no direito das pessoas; o sujeito de direitos deixou de ser apenas o titular dos bens passando a abarcar aqueles que almejam vir a ter e vir a ser[1]. Com isso, o Direito Civil foi reconstruído a luz de princípios como o da boa-fé objetiva, da função social do contrato e sobretudo da dignidade da pessoa humana.

Um novo olhar foi lançado sobre o Direito das Obrigações tornando ilegítimo o exercício de direitos em desconformidade com padrões mínimos de conduta regidos pela eticidade e probidade a violar a legítima expectativa das partes. Nesse contexto de aplicação da boa-fé objetiva às relações obrigacionais, o presente artigo se propõe a analisar os impactos da aplicação da teoria do inadimplemento mínimo, como modelo de conduta baseado na confiança e eticidade, aos contratos de renovação de locação comercial.

Sob a ótica dos novos valores que integram o Direito Civil, não cabe mais a invocação abusiva da exceção do contrato não cumprido para obstar o direito da parte de ter renovado o seu contrato de locação comercial quando houver o adimplemento substancial das obrigações imputadas ao locatário. Todavia, é preciso reconstruir o conceito de adimplemento e saber em que hipóteses ele se caracteriza como substancial, desafio a ser enfrentado sob o paradigma teórico da boa-fé objetiva e da vedação ao abuso de direito. Eis o que se propõe nessa breve reflexão.


A BOA-FÉ OBJETIVA: NOÇÕES BÁSICAS

A boa-fé objetiva representa a mais imediata tradução da confiança no domínio das relações intersubjetivas. Traduz modelo de conduta baseado em standard valorativo de um agir pautado por certos valores socialmente significativos que, assim, adquirem entidade jurídica[2]. A expressão boa-fé objetiva não traduz um estado de fato – o estar de boa-fé –, mas um modelo jurídico indicativo de uma estrutura normativa dotada de prescritividade. Representa ainda cânone hermenêutico[3] e instrumento de integração do Direito[4].

A prescritividade decorre da imposição pela boa-fé objetiva de deveres anexos não expressos nos contratos como o dever de lealdade, probidade, eticidade, auxílio no cumprimento da obrigação, além dos deveres principais expressos no contrato. Como cânone interpretativo, dentro das interpretações possíveis, deve se buscar aquela de acordo com a eticidade e confiança. Por ser instrumento de integração, serve ainda para dar solução ética ao caso com base nos standards estabelecidos pela boa-fé quando há lacuna no sistema normativo[5].

A idéia naturalista de boa-fé, a boa-fé subjetiva, distingue-se da boa-fé objetiva. A primeira refere-se a tutela do estado psicológico, coíbe a má-fé, a consciência de se estar a lesar direitos ou interesses alheios, se manifestando também pela crença justificada de certa situação ou realidade jurídica. A boa-fé objetiva, distintamente, expressa o standard de correção, probidade, lealdade, honestidade, sendo fonte de deveres de conduta no terreno obrigacional. Veda o comportamento contraditório e desleal, garantindo a proteção das legítimas expectativas[6].

Com o Código Civil de 2002, a boa-fé objetiva adquiriu status de princípio e cláusula geral no Direito brasileiro, transformando o direito privado clássico e inserindo nele seus padrões objetivos de conduta leal e proba. Promoveu ainda uma viragem no Direito das Obrigações[7], fazendo com que a relação obrigacional transcenda os limites predeterminados pela autonomia privada[8].

A boa-fé objetiva, contudo, não serve para solucionar todos os males da realidade, mas para integrar a lei – não substituí-la[9]. Apesar de ser expressão semanticamente vaga ou aberta, carecedora de concretização em cada contexto, isso não significa tratar-se de elástico cheque em branco a ser preenchido de acordo com o impressionismo jurídico. Afinal, há um conteúdo mínimo que está conotado com as exigências de probidade, correção e comportamento leal aptos a viabilizar um adequado tráfego negocial[10].

A boa-fé objetiva é fonte de diversos modelos jurídicos criados pela doutrina e jurisprudência, como o abuso de direito, adimplemento substancial, a supressio, surrectio, verine contra factum proprium, tu quoque e duty to mitigate the own loss. Eles evitam o exercício desarrazoado de situações jurídicas e leva a hermenêutica dos negócios jurídicos ao contexto cultural e econômico que circunda as partes, estabilizando expectativas de comportamento. Sobre o modelo jurídico do adimplemento substancial, é preciso analisar o padrão de comportamento a ser exigido das partes e seu impacto sobre as ações renovatórias de locação comercial. É o que se fará a seguir.


A DOUTRINA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL

3.1 UM NOVO OLHAR SOBRE O CONCEITO DE ADIMPLEMENTO

A boa-fé objetiva conduz a uma nova concepção de adimplemento, uma concepção substancial, caracterizada por critério mais elástico na apreciação dos limites de uma tolerabilidade considerada normal a vista a funcionalidade da prestação[11]. Essa tolerabilidade fundamenta a doutrina do “adimplemento substancial” – inadimplemento mínimo ou substancial performance –, considerado tão próximo do resultado final que exclui da contraparte o direito de resolução do contrato, subsistindo, contudo, o direito a indenização[12].

Na perspectiva tradicional, o adimplemento era definido como “o efetivo cumprimento da prestação”[13], ou o ato pelo qual “recebe o credor o que lhe é devido”[14]. A contrario sensu, o inadimplemento era usualmente conceituado como a inexecução da prestação debitória, a significar pura e simplesmente que a prestação não tinha sido realizada tal como era devida. Sob essas lentes, a noção de adimplemento estava vinculada a satisfação da prestação, ponto a ponto, nos exatos termos em que ela foi constituída.

 Essa concepção ganhou nova roupagem. Rejeitou-se a visão meramente estrutural das obrigações, vinculando-as, direta ou indiretamente, ao princípio da boa-fé objetiva. O que caracteriza o adimplemento deixou de ser tanto a satisfação do interesse unilateral do credor, passando a ser o atendimento à causa do contrato que se “constitui, efetivamente, do encontro do concreto interesse das partes com os efeitos essenciais abstratamente previstos no tipo” [15]. Agora, o próprio cumprimento ou descumprimento da prestação ajustada deve ser analisado à luz do propósito efetivamente perseguido pelas partes com a constituição da específica relação obrigacional[16].

Se o comportamento do devedor alcança aqueles efeitos essenciais que, pretendidos concretamente pelas partes com a celebração do negócio, mostram-se merecedores de tutela jurídica, tem-se o adimplemento da obrigação, independentemente da satisfação psicológica do credor. A inadequação formal do comportamento do devedor ao débito não ensejará o inadimplemento se atendido o escopo das partes com o vínculo obrigacional. É o atendimento da função concreta do negócio – e não mais o cumprimento meramente estrutural da prestação principal – que define o adimplemento (substancial) da obrigação.  

3.2 O “INADIMPLEMENTO MÍNIMO” E A EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO CUMPRIDO

A desconstituição do negócio jurídico pela resolução contratual oriunda do inadimplemento sempre foi um direito potestativo do credor – um direito absoluto que lhe dava poder de sujeitar a outra parte da relação à sua deliberação unilateral. A doutrina clássica, nesse ponto, não discutia a possibilidade de impor limites ao exercício desse direito, por ter como premissa o fato de que ele foi justamente concedido pelo ordenamento jurídico para a satisfação de interesses particulares. O princípio da correspondência – também chamado da identidade ou pontualidade – fundamentava o direito unilateral a rescisão do contrato, impondo ao contratado o dever de efetuar a prestação, ponto por ponto, conforme acordada.

Como reação a essa forma de ver a Dogmática Jurídica, foi necessário reconhecer que um direito só pode ser protegido pelo ordenamento quando tiver função social. É que, o exercício desse direito, muitas vezes, satisfaz o interesse privado do seu titular, mas, simultaneamente, ofende as expectativas sociais pelas quais o próprio ordenamento lhe instituiu. Desponta, assim, a idéia de abuso de direito, quando o exercício de uma prerrogativa é manifestado sem motivação legítima. Se um ato é conforme a determinado direito e, nada obstante, ilícito, por se mostrar contrário à boa-fé e àquelas regras que dominam todo o direito – a “superlegalidade” – ele pode se apresentar contrário ao direito no sentido amplo do corpo de regras sociais obrigatórias[17].

Atento a essa nova realidade, o legislador tratou o abuso de direito como um ato ilícito objetivo no Código Civil de 2002. Para constatar sua ocorrência, não é necessário aferir, no caso concreto, a existência de culpa na violação da norma; basta que a conduta seja antijurídica e viole materialmente os fins do ordenamento jurídico. É o que prevê o art. 187 do Código Civil quando estabelece que também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes[18].

O abuso de direito atua como forma de controle do exercício de direitos subjetivos e potestativos, se caracterizando como uma das dimensões do princípio da boa-fé sobre as relações obrigacionais. Sob o aspecto objetivo, a boa-fé é também uma norma impositiva de limites ao exercício de direitos subjetivos e potestativos; não apenas uma norma de conduta que objetiva impor um agir pautado pela lealdade. Nesse contexto, desponta o estreito vínculo entre a Teoria do Abuso de Direito, a boa-fé objetiva, ambas previstas no Código Civil de 2002, e o adimplemento substancial.

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A boa fé objetiva e a teoria do abuso de direito coíbem que uma das partes de um contrato invoque a exceção do contrato não cumprido em face do adimplemento substancial da obrigação.  A teoria do adimplemento substancial (ou do inadimplemento mínimo) atua como uma das formas de controle do exercício de direitos subjetivos pela boa-fé. Desfaz o mito de que o cumprimento da obrigação deve coincidir, ponto a ponto, com a prestação a que o devedor está obrigado, possibilitando que o vínculo obrigacional não seja resolvido quando a desconformidade entre a conduta do devedor e a prestação estabelecida não for significativa.

Buscando fundamento na substancial performance do direito anglo-saxônico, a teoria objetiva que se avalie a gravidade do inadimplemento antes de se deflagrar a conseqüência drástica consubstanciada na resolução da relação obrigacional. Realiza-se uma ponderação de interesses jurídicos: de um lado, o interesse do credor de ver cumprida a obrigação exatamente como pactuada; e, de outro, o interesse do devedor em evitar o drástico remédio resolutivo, prevalecendo o segundo[19]. Admite-se que a regra da “exceção do contrato não cumprido” seja afastada quando o inadimplemento pelo devedor for mínimo, irrisório, incapaz de comprometer a essência do contrato[20] [21].

O Código Civil de 2002, de um modo geral, não prevê o princípio do inadimplemento substancial como modo de extinguir o contrato[22]. Em que pese o silêncio do legislador, o seu acolhimento pela doutrina e jurisprudência decorre da aplicação do princípio da boa-fé objetiva, esculpido nos artigos 187 e 422 do Código Civil Brasileiro, que veda o exercício abusivo de posições jurídicas[23]. Não há dúvida de que a teoria do adimplemento substancial, fulcrado na boa-fé objetiva, impõe limites claros à regra da “exceção do contrato não cumprido” e a tantos outros direitos que decorrem, a primeira vista, do inadimplemento, conforme já vêm reconhecendo os tribunais brasileiros.

3.3 O INADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL NA JURISPRUDÊNCIA

A teoria do adimplemento substancial tem sido aplicada para afastar a regra da exceção do contrato não cumprido – e outros direitos do credor – quando o inadimplemento da obrigação pela parte devedora é insignificante. Para tanto, ao julgadores invocam a aplicação da boa-fé objetiva no contexto das relações obrigacionais. Ainda não é possível, contudo, identificar nas decisões um padrão para enquadrar o inadimplemento como mínimo.

  O Tribunal de Justiça de Minas Gerais já entendeu no bojo de contrato de alienação fiduciária que o cumprimento substancial da obrigação pelo devedor afasta o direito do credor de reintegrar a posse de bem imóvel alienado fiduciariamente. Para caracterizar o inadimplemento como mínimo considerou o pagamento de vinte e uma prestações – do total de vinte e quatro – obstativo do direito do credor de resolver o contrato e reintegrar a posse do imóvel. Com base na função de controle da boa-fé objetiva, julgaram abusivo o exercício do direito subjetivo do credor de resolver o contrato, considerando ainda para a conclusão o fato de o veículo ser utilizado como instrumento de trabalho do devedor[24] No mesmo sentido, também já se posicionou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul[25].

A teoria do adimplemento substancial tem recebido destaque também em importantes julgados do Superior Tribunal de Justiça, que, com fulcro no princípio da boa-fé objetiva (arts. 187 e 422 do Código Civil), tem avaliado, diante de cada caso concreto, se a gravidade do inadimplemento justifica as conseqüências drásticas que dele pode advir. É interessante conhecer os critérios adotados pelo tribunal que atualmente tem posicionamento mais rigoroso sobre o tema.

Em caso relativo à dissolução de sociedade de fato, o STJ aplicou a teoria do adimplemento substancial à hipótese em que uma das partes cumpriu em parte sua obrigação de doar imóvel para filha com usufruto para a mãe, não reconhecendo o tribunal o direito da mãe de rescindir o contrato da sociedade de fato [26]. Nos contratos de seguro, também já foi aplicada a teoria do inadimplemento mínimo para afastar a extinção do contrato de seguro, por falta de pagamento da última prestação do prêmio, sob o argumento de que a seguradora sempre recebeu as prestações com atraso, o que estava, aliás, previsto no contrato, sendo inadmissível que apenas rejeitasse a prestação quando ocorrido o sinistro[27].

Na mesma linha do tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, já foi reconhecida pelo STJ a aplicação da teoria, em contrato de alienação fiduciária, quando o valor do inadimplemento é pequeno em relação ao valor do bem e o automóvel é essencial a atividade da devedora[28]. Ocorre que no início de 2017, a segunda Seção do Tribunal pacificou entendimento em sentido contrário, entendendo que a tese do adimplemento substancial não pode ser aplicada nos casos de alienação fiduciária. Sustentou-se que a incidência subsidiária do Código Civil, sobretudo as normas gerais, em relação à propriedade fiduciária sobre bens que não sejam móveis infungíveis, regulada por leis especiais, é excepcional, somente possível no caso em que o regramento específico apresentar lacunas e a solução da "lei geral" não se contrapuser às especificidades do instituto regulado pela lei especial[29].

Argumentou-se ainda que a utilização da teoria do inadimplemento mínimo, para obstar a utilização da ação de busca e apreensão, poderia figurar como um incentivo ao inadimplemento das últimas parcelas contratuais, com o nítido propósito de desestimular o credor a buscar outras vias judiciais menos eficazes, ante as conhecidas dificuldades dos meios de execução. Adotar entendimento diverso, aduzem, enfraqueceria da boa-fé contratual propugnada e a segurança jurídica às concessões de crédito, essencial ao desenvolvimento da economia nacional.

O julgado tem uma importante função: trazer à baila a problemática definição do que seria inadimplemento mínimo. Isto para fins de afastar o direito do credor de atribuir ao inadimplemento todas as conseqüências legais – aplicação da exceção do contrato não cumprido, negativa de renovação da locação comercial, dentre outros –, bem como refletir o inadimplemento insignificante não apenas sob o aspecto quantitativo como também qualitativo. A definição de inadimplemento insignificante é o desafio que se busca enfrentar no ponto a seguir.     

A CONFIGURAÇÃO DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL NO CASO CONCRETO.

O grande desafio da idéia de cumprimento relevante está em fixar parâmetros que permitam ao julgador identificar no caso concreto se o adimplemento se afigura ou não significativo, substancial. O bom senso e os critérios de normalidade social, acolhidos pelo art. 113 do Código Civil, orientados pelos ditames da boa-fé, podem contribuir para a identificação em cada caso de qual falta é totalmente desproporcional a recusa da prestação.

Para alcançar a definição concreta da ocorrência do adimplemento substancial, no caso concreto, é possível estabelecer três requisitos: i) a insignificância do inadimplemento[30]; ii) a satisfação do interesse do credor; e iii) a diligência por parte do devedor[31].

A “insignificância do inadimplemento” resta patente quando as obrigações inadimplidas não compõem o cerne do contrato, caracterizando obrigações laterais, anexas.

Um exemplo pode esclarecer a explicação.

Imagine-se um contrato de locação de imóvel para fins comerciais – nosso tema –, no qual além do pagamento de prestações mensais se acordou também que o locatário ficaria responsável pelo pagamento de IPTU e realização de seguro para o imóvel. O contrato se protraiu no tempo por mais de cinco anos ininterruptamente com o pagamento pontual das prestações mensais. A locatária pagou todos os aluguéis pontualmente, as taxas condominiais e os tributos. Houve a contratação de seguro de incêndio, mas não contra desabamento.

Em ação de renovação do contrato de locação comercial, o locador opõe a exceção do contrato não cumprido para afastar o direito compulsório do locatário a renovação. O locatário adimpliu regularmente todas as prestações mensais, mas não comprovou o pagamento de algumas contas de luz e não realizou especificamente o seguro contra desabamento, não obstante tenha contratado seguro contra incêndio. A falta de comprovação do pagamento de algumas contas de luz (que podem ter sido pagas, já que a energia elétrica continuou sendo fornecida ao imóvel aonde o locatário exercia suas atividades) e a inexistência de seguro específico contra desabamento mostra-se insignificante diante da amplitude do contrato de locação cujos valores são significativamente superiores ao dessas obrigações laterais e sempre foram quitados pontualmente.  A obrigação principal, os ônus tributários e encargos condominiais foram quitados cumprindo o locatário cabalmente as demais obrigações contempladas pelo contrato de locação. A substância do contrato foi perfeitamente adimplida.

 O interesse do credor resta atendido quando a obrigação principal é integralmente adimplida e o inadimplemento de deveres laterais não lhe causa qualquer prejuízo[32].  No exemplo acima, o interesse do credor de receber o pagamento dos aluguéis restou atendido e a não comprovação do pagamento de luz não lhe causou qualquer prejuízo, pois a luz nunca deixou de ser fornecida e a não realização de seguro específico contra desabamento tampouco lhe gerou qualquer dano, pois o imóvel não desabou. A falta de comprovação do pagamento de algumas contas de luz (o que se admite a título meramente argumentativo) e a inexistência de seguro contra desabamento não comprometeram – sequer minimamente – o atendimento da função concreta do contrato de locação celebrado entre as partes. O escopo especificamente perseguido pelas partes com a constituição do vínculo obrigacional não deixou de ser alcançado por causa de tais inadimplementos, não restando dúvidas de que houve um adimplemento substancial da obrigação.

A diligência por parte do devedor evidencia-se na adoção de todas as providências necessárias ao atendimento do interesse do credor, não sendo doloso o descumprimento de parte insignificante do contrato. No exemplo sob exame, a realização do seguro contra incêndio pelo locatário demonstra que ele foi diligente e adotou providências para resguardar o patrimônio do devedor. A diligência é comprovada também pelo pagamento de todas as prestações mensais de aluguel, dos tributos e dos encargos condominiais, se desincumbindo do cumprimento da obrigação principal. A falta de comprovação do pagamento de luz foi pontual e não gerou o corte no fornecimento de luz decorrendo da falta de organização não intencional. Logo, não ficou comprovada a intenção do locatário de não cumprir integralmente com todos os termos do contrato.  

A teoria do adimplemento substancial encontra inspiração no caso chamado “Boone versus Eyre”, julgado pelas Cortes de Equity da Inglaterra, de 1977, relatado pelo lorde Mansfield, no qual também podem ser visualizados os três requisitos. O objeto do litígio foi um contrato no qual o autor (Boone) passaria uma fazenda e seus escravos para Eyre que pagaria 500 libras pelo bem, além das prestações anuais de 160 libras, em caráter perpetuo. A controvérsia surgiu porque Boone alienou a propriedade, mas não tinha direito de transferir os escravos, razão porque Eyre suspendeu o pagamento das prestações anuais alegando inadimplemento. Diante desse caso, a Corte inglesa entendeu que o comprador não poderia deixar de pagar as prestações, pois a obrigação de dar os escravos não seria uma condição precedente em face da obrigação de pagar as prestações anuais perpétuas. A entrega dos escravos seria uma obrigação secundária, não podendo gerar a resolução do contrato, mas apenas indenização por perdas e danos[33].  

Demonstrado os requisitos para a configuração do adimplemento substancial da obrigação, resta analisar a aplicação da teoria à renovação do contrato de locação comercial por aplicação das disposições do art. 187 e 422 do Código Civil.  

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Sobre a autora
Gabriela Macedo Ferreira

Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia, especialista em Direito Processual Civil pelo Jus Podivm, Juíza Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Gabriela Macedo. A aplicação da boa-fé objetiva nas relações obrigacionais:: O adimplemento substancial e a ação renovatória de locação comercial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5356, 1 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64473. Acesso em: 28 mar. 2024.

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