4 DAS LIMITAÇÕES DO PODER REFORMADOR
De acordo com Bornin (2009, n.p.), “Emenda Constitucional é a espécie normativa que integra o processo legislativo, sendo seu objeto a reforma da Constituição. Uma vez aprovada, promulgada e publicada, a emenda passa a situar e ter a mesma eficácia da Constituição [...]”.
A Emenda Constitucional, conforme o art. 60, da CF, pode ser proposta por, no mínimo, 1/3 do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados; pelo Presidente da República; ou, ainda, por mais da metade das Assembleias Legislativas, pela maioria relativa de seus membros. Para aprovação, é necessário 3/5 dos votos de cada casa do Congresso Nacional, realizado em dois turnos de votação. (BRASIL, 1988)
Quanto aos limites materiais do poder reformador, dispõe o §4 do referido artigo que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais. (BRASIL, 1988)
Segundo Pedra (2006), as cláusulas pétreas servem para assegurar a Constituição, impedindo que eventuais modificações ensejem na sua abolição. Entretanto, embora a redação do texto constitucional seja a mais adequada no momento de sua elaboração, muitas vezes são exigidas transformações constitucionais que visam a adequar a Constituição ao contexto atual.
Gomes (2013) destaca que o aumento do rol de crimes imprescritíveis não viola cláusula pétrea, uma vez que a vedação imposta pelo legislador originário somente proíbe projetos de emenda que tenham a tendência de abolir algum direito e garantia individual.
Cabe mencionar que uma parte da doutrina considera que não é possível aumentar o rol de crimes imprescritíveis. Tal postura tem como fundamento o direito fundamental que se extrai a prescrição. Destarte, se o Estado demorar para punir o autor do crime, tem direito à prescrição em face à inércia do Estado. (SOUSA, 2014)
Em contradição, o Supremo Tribunal Federal, pelo RE 460971 – RS, entende que é possível aumentar esse rol de crimes imprescritíveis previsto na CF/88. Esta posição funda-se no entendimento que apesar da Constituição indicar apenas duas hipóteses de exceção à regra de prescrição, trata-se de um rol exemplificativo, e não taxativo, não se esgotando, assim, tais hipóteses de imprescritibilidade. (SOUSA, 2014)
Outrossim, Sousa (2014) ressalta que o Estatuto de Roma, pelo qual se criou o Tribunal Penal Internacional (TPI), considera imprescritíveis os crimes de competência do TPI, elencados em seu artigo 5º. Desta forma, o Estatuto de Roma impõe a imprescritibilidade de outros crimes, além daqueles previstos na CF/88, quando julgados pelo TPI.
Deste modo, percebe-se que, assim como já foi feito com relação a outros delitos, é possível tornar um crime imprescritível através de uma Emenda à Constituição, passando a prever que no tocante a este delito, não haverá um prazo máximo pré-determinado para que o Estado processe e puna o criminoso.
5 DA PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 64/2016
A PEC 64/2016 visa alterar o inciso XLII, do art. 5º, da Constituição Federal para tornar imprescritíveis os crimes de estupro, sob a justificativa de que o estupro é um crime que deixa profundas e permanentes marcas nas vítimas.
No texto que embasa a referida PEC, é demonstrado que além da violência que esta prática impõe, a ferida psicológica deixada na pessoa estuprada raramente cicatriza. Por conta disso, a coragem para denunciar um estuprador, se é que um dia apareça, pode demorar muitos anos.
Diante desse quadro, a imprescritibilidade do crime de estupro surge como medida capaz de fazer com que a vítima se fortaleça e denuncie, contribuindo para que o estuprador não fique impune. Nas palavras da Senadora Simone Tebet, em seu voto:
[...] a coragem da mulher para denunciar pode levar anos. Essa tabela do prazo prescricional que hoje consta no código brasileiro é insuficiente, ela é pequena, porque, muitas vezes, depois de todo o tratamento psicológico, romper o ciclo com a família, ter a coragem de denunciar, o crime está prescrito, e a impunidade impera. [...] Imaginem quando ela tem que denunciar um companheiro, imaginem quando estamos falando de pais, de padrastos, de tios, de avós, como aconteceu em Campo Grande, a minha cidade, em Mato Grosso do Sul. Imaginem quando acontece com crianças de dois, de três, de cinco, de oito anos de idade. Imaginem quando o estupro não é único e isolado, mas acontece por anos a fio em relação a uma criança, em relação a um adolescente, e mesmo em relação a uma mulher. Por tudo isso, o projeto precisa ser aprovado. [...] (Diário do Senado Federal nº 57, p. 65)
A Senadora Marta Suplicy, em seu voto, argumentou que a sociedade, muitas vezes, culpa a mulher adulta ou a criança pelo ocorrido. No caso da criança, com o passar do tempo, ela compreenderá que foi vítima, mas o crime já pode estar prescrito. Desta forma, se faz necessário esse avanço, no sentido de tornar o crime de estupro imprescritível.
O Senador Jorge Viana, autor da PEC em questão, enfatiza que, em diversos casos, quando uma vítima de estupro procura uma autoridade policial, a primeira pergunta feita a ela é que roupa ela estava usando, em que lugar ela estava, em que horário da noite, se havia bebido ou não, passando a ser duplamente vítima.
O artigo 5º, XLII da CF, nos termos da PEC nº 64 2016, passaria a vigorar com a seguinte redação: “Art. 5º [...] XLII - a prática do racismo e do estupro constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.”
Em consulta pública disponibilizada no Site do Senado Federal, foram apurados 3.306 votos favoráveis e 43 contra a PEC nº 64/2016. A proposta foi aprovada pelo Senado em primeiro turno com 68 votos favoráveis e, em segundo turno, com 62 votos. Atualmente, está em trâmite na Câmara dos Deputados para aprovação em dois turnos.
6 DA NECESSIDADE DE TORNAR O CRIME DE ESTUPRO IMPRESCRITÍVEL
De acordo com Gonzaga (2016), é inegável que o Brasil vive hoje uma cultura do estupro, ou seja, a sociedade impõe um conjunto de padrões de comportamento, crenças e costumes que acabam naturalizando o estupro, gerando uma cultura de tolerância com este tipo de violência.
É cediço que a prática do estupro atinge homens e mulheres. Entretanto, a incidência dos crimes cometidos contra a mulher é consideravelmente maior, devido a uma sociedade machista. Segundo dados disponibilizados pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Sinan, 89% das vítimas de estupro são mulheres.
Os preconceitos acabam justificando a violência de gênero e as mulheres estão cada vez mais sendo culpabilizadas pela própria violência da qual são vítimas, seja pelo fato de ter bebido, pelo horário em que estava na rua ou pela roupa que vestia. (GONZAGA, 2016)
Estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, no ano de 2014, aferiu que o número de estupros por ano no Brasil seja em torno de 527 mil casos de estupros no país, dos quais apenas 10% foram denunciados. Também foi apurado que 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima.
Segundo dados fornecidos pelo Ministério da Saúde, no ano de 2015, foram registrados 45.460 casos de estupros consumados e 6.988 tentativas de estupro. Esses números correspondem apenas a uma parcela de crimes sexuais cometidos, considerando que a maioria dos casos de estupro não são reportados.
Acerca das consequências do estupro na vida da vítima, Braz de Lima (2012) menciona que os traumas provocados no indivíduo desencadeiam uma grande violação dos limites físicos e psicológicos, gerando diversas consequências negativas para a vítima ao longo de seu desenvolvimento cognitivo, afetivo, comportamental e social, e para os seus relacionamentos futuros.
No caso de uma criança vítima de estupro, ela “pode manifestar um sofrimento emocional muito intenso [...] e apresentar problemas mais leves como a dificuldade de aprendizagem, como também sérias consequências psíquicas e emocionais.” (BRAZ DE LIMA, 2012, p. 13)
A autora ainda ressalta ser de “suma importância que as vítimas dessa violência se encorajem para efetuar a denúncia evitando que o abusador fique impune.” (BRAZ DE LIMA, 2012, p. 13)
Entretanto, levando em conta o receio de que as vítimas têm de sofrer preconceito, superexposição ou serem “revitimizadas”, é preciso observar que a coragem para denunciar um estuprador pode demorar muitos anos, não sendo possível estabelecer um prazo de recuperação para todas as vítimas.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do estudo, verifica-se que a prescrição elimina a ideia de que a punição possa ocorrer a qualquer tempo, de forma indefinida, garantindo, assim, o devido processo legal. Entretanto, é necessário um olhar diferenciado para o crime de estupro e verificar a possibilidade de torná-lo imprescritível, incluindo-o no inciso XLII, do art. 5º, da Constituição Federal.
O que permite a imprescritibilidade do crime de estupro é o lapso temporal que existe entre o crime cometido e o tempo que se leva para que o indivíduo tenha a coragem de denunciar, não sendo razoável estabelecer um tempo para a vítima, uma vez que esta pode necessitar de muito mais que 20 anos para se recuperar dos traumas causados pelo crime e ter coragem de denunciar o agressor que, muitas vezes, pode ser seu companheiro ou um familiar.
Assim como os crimes elencados na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, XLII e XLIV (prática de racismo e ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, respectivamente), o crime de estupro também é de alta importância e gravidade.
O estupro gera um grave impacto psicológico na vida da vítima, que pode precisar de um longo prazo para se restabelecer. Determinar um prazo prescricional para um crime como este contribui para a impunidade, que, por sua vez, acaba estimulando o aumento da criminalidade e refletindo negativamente na sociedade.
Vale salientar que o aumento do rol de crimes imprescritíveis não viola cláusula pétrea, uma vez que a vedação imposta pelo legislador originário somente proíbe projetos de emenda que tenham a tendência de abolir algum direito e garantia individual, o que, certamente, não ocorreria caso fosse incluído o crime de estupro no rol de crimes imprescritíveis.
Destarte, a Proposta de Emenda à Constituição nº 64 de 2016 se apresenta como meio eficaz capaz de tornar o crime de estupro imprescritível, inserindo-o no inciso XLII, do art. 5º, da CF, junto à prática do racismo, o que pode gerar, se aprovado, grandes benefícios para a sociedade, uma vez que permitirá que a vítima reflita pelo tempo que for necessário, recupere-se e denuncie o estuprador, além de contribuir para a não impunidade no país.
REFERÊNCIAS
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