O presente estudo busca analisar os princípios inerentes aos procedimentos de recuperação judicial de empresas e qual a sua relevância, sobretudo no contexto da crise sistêmica pela qual passa o Brasil. A instabilidade econômico-institucional da nação impacta diretamente no seio do núcleo empresarial, que é, inexoravelmente, a força-motriz do desenvolvimento econômico e social. Destarte, tem-se que o súbito desaparecimento de uma empresa atinge diretamente no microcosmo na qual ela está inserida, bem como, uma gama de interesses que vão além da figura do empresário isoladamente considerado. Como forma de promover o soerguimento da empresa economicamente viável, e com isso minimizar o impacto de sua ruína no mercado, surge a recuperação de empresas, instituto com rica base principiológica decorrente de extensa evolução doutrinário-legislativa. Para plena compreensão da relevância do procedimento no cenário atual e o seu consequente seu papel na retomada do crescimento da nação, é de cardeal impotância a análise de seus princípios, na medida em que eles representam o norte interpretativo de todos os atores do direito sujeitos ou não aos efetos da recuperação.
A pesquisa utilizou o método dedutivo, a partir de uma pesquisa teórico-bibliográfica baseada no levantamento de referências publicadas em livros, artigos científicos e bases de dados, especialmente aos relacionados ao direito concursal
1. Princípios Que Regem o Instituto da Recuperação de Empresa
É de importância ímpar, para além do estudo dos aspectos processuais e macroeconômicos, a análise dos princípios e fundamentos que norteiam o novel instituto jurídico da recuperação de empresas, de inegável impacto social, seja como forma de sanação das dificuldades encontradas pela empresa que almeja evitar o colapso financeiro, seja como meio de promover seu soerguimento, enquanto moribunda e maculada por fatores internos e externos.[1]
Como não poderia deixar de ser, o instituto possui sólida e interconectada base principiológica, fruto de anos de aperfeiçoamento doutrinário, de tal arte que para a sua plena compreensão, mister se faz realizar um breve levantamento acerca dos alicerces da Lei 11.101/05.
No ano de 2005, após longa evolução doutrinário-legislativa, a legislação falimentar pátria adequou-se ao novo paradigma do Estado Democrático de Direito, mostrando-se o legislador inconformado com a mera satisfação dos por vezes egoísticos interesses individuais dos credores da empresa em crise, o que evidencia a tentativa de funcionalização da atividade exercida pelo empresário devedor, cuja figura restou desvinculada da empresa propriamente dita. Desta forma, os princípios informadores dos processos de recuperação judicial têm como mote a orientação do magistrado no tocante às decisões tomadas no curso das ações, com vistas a possibilitar a realização de seu objetivo precípuo, qual seja: possibilitar o soerguimento da empresa economicamente viável, com vistas a perfectibilização de sua função social[2].
1.2 Princípio da Viabilidade da Empresa
Ainda que se dê especial destaque a importância da atividade econômica organizada no seio de uma sociedade pluralista e de livre iniciativa, há de se ter em mente, de igual forma, o desserviço prestado pela empresa irremediavelmente maculada pela crise econômica dos dias atuais, assolada pela insuficiência dos meios de pagamento e pela desestruturação. Daí extrai-se que há um ponto divisório ao se buscar remédios para os problemas advindos da insolvência empresarial, sintetizado em um princípio fundamental do processo recuperacional: o princípio da viabilidade da empresa[3].
A Lei de Recuperação de Empresas trata de fixar uma dicotomia fundamental, entre as empresas inviáveis e viáveis, sendo, por decorrência lógica, o processo de recuperação recomendado unicamente para estas, ao passo que a falência se mostra mais adequada para aquelas.[4]
Nesse sentido Fábio Ulhoa Coelho[5]:
A viabilidade da empresa a ser recuperada não é questão meramente técnica, que possa ser resolvida apenas pelos economistas e administradores de empresas. Quer dizer, o exame da viabilidade deve compatibilizar necessariamente dois aspetos da questão: não pode ignorar nem as condições econômicas a partir das quais é possível programar-se o reerguimento do negócio, nem a relevância que a empresa tem para a economia local, regional ou nacional. Assim, para merecer a recuperação judicial, o empresário individual ou a sociedade empresária devem reunir dois atributos: Ter potencial econômico para reerguer-se e importância social. Não basta que os especialistas se ponham de acordo quanto à consistência e factibilidade do plano de reorganização sobre o ponto de vista técnico. É necessário seja importante para economia local, regional ou nacional que aquela empresa se organize e volte a funcionar com regularidade; em outros termos, que valha a pena para a sociedade brasileira arcar com os ônus associados a qualquer medida de recuperação de empresa não derivada de solução de mercado.
O princípio da viabilidade econômico-financeira se trata de preceito basilar para empresas que almejam beneficiar-se da recuperação judicial, sendo pressuposto indispensável ao deferimento da recuperação, sem o qual a empresa não logrará êxito em demonstrar a sua condição de cumprir as disposições contidas em seu plano de recuperação judicial, bem como com os preceitos do art. 47 da LRE, ou seja, não conseguirá manter os postos de trabalho, cumprir sua função social e estimular a atividade econômica como um todo.[6]
Nesse sentido, é possível constatar na grande maioria dos julgados sobre o tema, que a viabilidade econômica da empresa sempre é levada em consideração quando das decisões, em qualquer fase do processo:
PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. DECISÃO DE CONVOLAÇÃO EM FALÊNCIA. MEDIDAS SANEADORAS ADOTADAS PELA RECUPERANDA, SOMADAS A SUA COMPROVADA VIABILIDADE ECONÔMICA QUE SÃO SUFICIENTES PARA, NESTE MOMENTO, AUTORIZAREM A INVALIDAÇÃO DA DECISÃO ATACADA. RECURSO PROVIDO, À UNANIMIDADE DE VOTOS. A DECISÃO DE CONVOLAÇÃO EM FALÊNCIA, DIANTE DA REPERCUSSÃO E IMPACTO QUE CAUSA, DEVE SER PAUTADA DE CAUTELAS, RAZÃO PELA QUAL A ANÁLISE DO ACERTO OU NÃO DA MESMA ENSEJA ANÁLISE DETIDA E PORMENORIZADA, NOTADAMENTE ACERCA DO QUE FOI APONTADO PELO MAGISTRADO A QUO COMO FUNDAMENTO PARA A CONVOLAÇÃO DE FALÊNCIA. APÓS PERCUCIENTE ANÁLISE DOS AUTOS, O QUE SE PODE PERCEBER É QUE, DE FATO, SÓ APÓS A DECRETAÇÃO DA CONVOLAÇÃO EM FALÊNCIA QUE A RECUPERANDA EMPREENDEU ESFORÇOS PARA REGULARIZAR ALGUMAS PENDÊNCIAS EXISTENTES NO CUMPRIMENTO DO PLANO, COMO O PAGAMENTO DE VALORES ATRASADOS A ALGUNS CREDORES TRABALHISTAS E QUIROGRAFÁRIOS, RAZÃO PELA QUAL DETERMINADAS DAS ILAÇÕES LANÇADAS PELO MAGISTRADO A QUO NO BOJO DA DECISÃO ATACADA REALMENTE PROCEDEM. - TODAVIA, AS MEDIDAS SANEADORAS ADOTADAS PELA RECUPERANDA, SOMADAS A SUA COMPROVADA VIABILIDADE ECONÔMICA, SÃO SUFICIENTES PARA, NESTE MOMENTO, AUTORIZAREM A INVALIDAÇÃO DA DECISÃO ATACADA, SEM PREJUÍZO, A TODA EVIDÊNCIA, DE, VOLTANDO A EMPRESA A DESCUMPRIR O PLANO DE RECUPERAÇÃO, SER A CONVOLAÇÃO EM FALÊNCIA MEDIDA EFETIVAMENTE CABÍVEL E NECESSÁRIA. - REGISTRE-SE AINDA QUE, NO ESTEIO DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ, A DECRETAÇÃO DA FALÊNCIA É MEDIDA EXTREMA E EXCEPCIONAL, QUE SOMENTE DEVE SER TOMADA QUANDO VERIFICADA A INVIABILIDADE DA PRESERVAÇÃO DA UNIDADE PRODUTIVA. RECURSO PROVIDO, À UNANIMIDADE DE VOTOS PARA, ATENTO AOS PRINCÍPIOS DA MANUTENÇÃO DA UNIDADE PRODUTIVA E DA EXCEPCIONALIDADE DA DECRETAÇÃO DA FALÊNCIA, ANULAR A DECISÃO RECORRIDA, MANTENDO, POR CONSEGUINTE, O CURSO DO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL DA EMPRESA AGRAVANTE. (grifo nosso).[7]
No julgado supra colacionado foi determinada a convolação da recuperação judicial em falência, em vista da inércia da agravante, empresa do ramo de bebidas, em promover medidas que de fato contribuíssem para o seu soerguimento. No entanto, consoante narrativa do caso, após a dita convolação, agravante de fato empreendeu esforços para a regularização de pendências em seu plano de recuperação e a regularização dos pagamentos ali previstos, de sorte que o juízo ad quem, quando da análise da situação fática da empresa, constatou a sua viabilidade econômica, o que, somada a regular execução do plano aprovado, justificam a reversão da decisão do juízo a quo, eis que a decretação da falência deve ser medida excepcional, dada a sua gravosidade e impacto no microssistema em que a empresa está inserida.
Nota-se que a empresa que se encontra em determinado nível irremediável de crise, deve ser imediatamente retirada do mercado. Faticamente, existem crises irreversíveis e crises que podem, na medida do possível, serem contornadas mediante o emprego de soluções de mercado e procedimentos recuperacionais, assim, verifica-se que o Estado, na medida em que concede ao devedor em situação de colapso econômico-financeiro uma possibilidade de soerguimento e superação da crise, mediante a disponibilização de significativa gama de opções de recuperação, pela via prevista na Lei 11.101/05, trata de zelar pela integridade do mercado, afastando o empreendedor que não encontra as mínimas condições de competitividade, sob pena de trazer malefícios não só para o mercado propriamente dito, mas para também para a sociedade como um todo.[8]
Importante ressaltar que a análise da viabilidade da empresa não deve se ater a aspectos puramente econômicos, mas sim considerar outros vetores de igual importância para aferição da real possibilidade de soerguimento, como por exemplo o tempo de existência da empresa no mercado, sendo certo que quando da análise o tratamento para novas e antigas empresas deve ser diverso, de sorte que, via de regra, se entende que empresas muito jovens somente podem ter acesso à recuperação de empresas, caso haja significativo potencial econômico ou impacto social. Da mesma forma, há de se levar em conta o porte da empresa, no sentido de dosar o grau de exigência das medidas de recuperação, levando em conta a dimensão e a amplitude das atividades de cada recuperanda em potencial.[9]
Assim, diz-se que a recuperação judicial de empresas, busca corrigir disfunções do sistema econômico, não substituindo, contudo, a iniciativa privada. Nesse diapasão, pontua Fábio Ulhoa Coelho[10]:
A recuperação judicial não pode significar, como visto, a substituição da iniciativa privada pelo juiz na busca de soluções para a crise da empresa. Se a sobrevivência de determinada organização empresarial em estado crítico não desperta o interesse de nenhum agente econômico privado (empreendedores ou investidores), então, em princípio, as suas perspectivas de rentabilidade não são atraentes quando comparadas com as das demais alternativas de investimento. Ora, se assim é, ninguém vai perder dinheiro investindo naquele negócio. Contudo, pode ocorrer de a solução de mercado não se viabilizar por alguma disfunção do sistema econômico, como no exemplo do valor idiossincrático. Nesse caso, e com o objetivo de garantir o regular funcionamento das estruturas do livre mercado, pode e deve o juiz atuar. Note-se, a solução da crise não é dele, nem sequer deve ser aprovada por ele; o papel do estado-juiz deve ser apenas o de afastar os obstáculos ao regular funcionamento do mercado.
Em suma, para além do aspecto econômico, deverá ser avaliado o impacto do encerramento da atividade na comunidade onde a empresa exerce sua influência e a sua relevância face aos concorrentes. Em outros termos, é necessário que a reorganização da empresa seja importante para a economia, seja em âmbito local ou regional, para que se justifique suportar os ônus associados a qualquer medida de recuperação.[11]
1.2. Princípios da Transparência e da Lealdade
Outro princípio de cardeal importância no processo de recuperação de empresas é o princípio da transparência, o qual afirma a necessidade de a empresa, que busca uma renegociação de sua dívida com os credores, apresente aos mesmos a sua situação real, para que estes, por sua vez, possam analisar se o plano de recuperação porventura apresentado tem real e efetiva substância ou se trata de mera retórica técnica, com vistas a adiar uma inevitável falência[12].
Roseli Rego dos Santos, aponta que:
A transparência é mais do que a obrigação de informar, é o desejo de transmitir para todas as partes interessadas as informações que sejam de seu interesse e não somente aquelas determinadas pela legislação. Essa transparência gera um clima de confiança interna e externa e, não deve se restringir aos aspectos econômico-financeiros, mas outros fatores que balizam a gestão empresarial e criam valor para a sociedade.[13]
Nessa linha, em pertinente julgado[14], o desembargador relator Ricardo Negrão, discorre, dentre outros pontos, acerca do princípio da transparência no âmbito da ação de recuperação de empresas, cujas ponderações restaram sintetizadas na ementa abaixo:
AGRAVO DE INSTRUMENTO Proposta da recuperanda à suspensão da publicidade dos protestos e das restrições nos cadastros do SERASA e SCPC existentes em seu nome enquanto cumprido o plano recuperatório. Inviabilidade. Precedentes do Tribunal de Justiça de São Paulo. Distinções no Direito Comparado. Aplicação do princípio da transparência. Exigência à aplicação antes e durante o processo recuperatório. Mecanismos transparência na negociação que se estende aos credores não sujeitos ao plano recuperatório Recurso provido para cancelar a cláusula aprovada. (grifo nosso)
No julgado acima referido, a agravante, credora quirografária[15] da recuperanda, sustenta que determinadas disposições do plano de recuperação padecem de nulidade, por confrontarem expressamente princípios da matéria e comandos legais, em especial a que busca o cancelamento dos protestos e dos lançamentos em cadastros restritivos de crédito por ocasião do deferimento da recuperação judicial. Invocando o princípio da transparência, o Relator Des. Ricardo Negrão sustenta que o fato de a credora ter formulado o pedido de recuperação não lhe outorga o direito postular o cancelamento das anotações, salvo nos casos de cumprimento integral das disposições do plano. Sustentou que os processos falimentares e recuperacionais devem ser transparentes, pois importam em custas tanto para os credores como para a empresa em crise, sendo de vital importância a disponibilização de informações claras e precisas acerca do real estado da recuperanda para a correta tomada de decisão dos atores do processo, desta forma, no que toca ao ponto analisado, o desembargador acatou a pretensão do agravante, reconhecendo a adequação das inscrições levadas a efeito pela credora.
Denota-se, portanto, a importância da transparência da empresa, de modo que os credores tenham a capacidade técnica de avaliar a gama de informações atinentes ao processo de recuperação judicial, especialmente o rol de documentos do art. 51[16] da LRE, bem como possam ter o conhecimento do mercado de atuação da empresa recuperanda. Somente mediante a observância do princípio da transparência e a consequente fidedignidade das informações prestadas pelo devedor, podem os credores assumir, de maneira consciente, o risco de aprovar ou não o plano de recuperação judicial, peça central do processo recuperacional.[17]
O cânone sob análise guarda estrita relação com o princípio da lealdade, o qual é decorrência lógica do sistema recuperacional implementado pela Lei 11.101/05 e revela-se exigência para a o deferimento da pretensão à recuperação de empresas, tendo em vista a necessária inexistência de ato fraudulento, má-fé, ou crime falimentar, inteligência dos arts. 48[18], VI, 94[19], III e 161[20] da lei em apreço. A não observância desse mister enseja a destituição do sócio controlador, bem como dos administradores, da condução da atividade empresarial, além da convolação da recuperação judicial em falência, forte nos arts. 31 e 73 da LRE, respectivamente. Nota-se o estabelecimento de medidas atinentes a prevenir ou mesmo remediar a não observância do princípio da lealdade, a qual poderia frustrar os interesses dos credores, vítimas da ausência de boa-fé do devedor inescrupuloso. É possível constatar que o supedâneo do princípio da lealdade é o dever de o empresário manter a correta escrituração[21], o registro, arquivo e inscrição relativos a todos os documentos e livros indispensáveis ao regular exercício da empresa.[22]
1.3. Princípio da Paridade dos Credores
Igual importância guarda o princípio da paridade dos credores, expresso no brocardo par condicio creditorum, o qual decorre da regra constitucional de igualdade, insculpida no art. 5º caput[23] da Constituição da República. Constitui princípio informativo, posto que universal, do direito falimentar pátrio, e que determina a igualdade proporcional entre os créditos da mesma natureza, observadas as preferências e privilégios.[24]
Nesse sentido, o julgado abaixo colacionado reformou decisão advinda da esfera trabalhista, que não levou em consideração os créditos dos demais credores sujeitos à recuperação:
CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. COMERCIAL. LEI 11.101/05. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PROCESSAMENTO DEFERIDO. 1. A DECISÃO LIMINAR DA JUSTIÇA TRABALHISTA QUE DETERMINOU A INDISPONIBILIDADE DOS BENS DA EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL, ASSIM TAMBÉM DOS SEUS SÓCIOS, NÃO PODE PREVALECER, SOB PENA DE SE QUEBRAR O PRINCÍPIO NUCLEAR DA RECUPERAÇÃO, QUE É A POSSIBILIDADE DE SOERGUIMENTO DA EMPRESA, FERINDO TAMBÉM O PRINCÍPIO DA "PAR CONDITIO CREDITORUM". 2. É COMPETENTE O JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL PARA DECIDIR ACERCA DO PATRIMÔNIO DA EMPRESA RECUPERANDA, TAMBÉM DA EVENTUAL EXTENSÃO DOS EFEITOS E RESPONSABILIDADES AOS SÓCIOS, ESPECIALMENTE APÓS APROVADO O PLANO DE RECUPERAÇÃO. 3. OS CRÉDITOS APURADOS DEVERÃO SER SATISFEITOS NA FORMA ESTABELECIDA PELO PLANO, APROVADO DE CONFORMIDADE COM O ART. 45 DA LEI 11.101/2005. 4. NÃO SE MOSTRA PLAUSÍVEL A RETOMADA DAS EXECUÇÕES INDIVIDUAIS APÓS O MERO DECURSO DO PRAZO LEGAL DE 180 DIAS. CONFLITO CONHECIDO PARA DECLARAR A COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA 3ª VARA DE MATÃO/SP (grifo nosso).[25]
Trata-se de conflito de competência instaurado entre o juízo trabalhista e da recuperação judicial de determinada empresa de implementos agrícolas, respectivamente suscitada e suscitante. No âmbito de uma ação cautelar proposta pelo Ministério do Trabalho, a suscitada determinou a indisponibilidade de bens da recuperanda e de seus sócios, como forma de assegurar o pagamento de verbas trabalhistas, o que ensejou a suscitação do conflito positivo de competência por parte do juízo da recuperação, sob o argumento de que tal prática, além de atentar contra os créditos dos demais credores, poderia representar risco para a execução do plano. O Ministro Luiz Felipe Salomão, em seu voto, conheceu do conflito para declarar competente o juízo da recuperação, ponderando que no caso o valor deve preponderar é o da preservação da empresa. Permitir que cada qual defenda seu crédito, significa colocar abaixo o princípio nuclear da recuperação, além de por em risco o princípio da “par conditio creditorum”, na medida que haverá um privilégio do credor trabalhista e detrimento dos demais, igualmente sujeitos ao plano.[26]
O princípio em comento, outrora era, por vezes, tido como aplicável unicamente ao direito falimentar, mas atualmente é expressamente extensível às recuperações de empresa, consoante entendimento consolidado no enunciado 73 da segunda Jornada de Direito Comercial[27]. Tal princípio preceitua que deve haver tratamento equitativo entre os créditos no âmbito dos procedimentos concursais, devendo cada qual observar o sítio que a lei lhe reserva na classificação geral, com vistas a assegurar que a índole preferencial de alguns seja de fato observada, respeitando-se as peculiaridades de cada credor.[28]
1.4 Princípio da Função Social da Empresa
De modo a compreender a importância do princípio da função social da empresa, mister se faz realizar uma breve, porém abrangente, recapitulação histórica, de modo a contextualizar a realidade que propiciou o advento do aludido princípio e de suas variantes.
Como esclarece Viviane Perez[29], o salto tecnológico experimentado sobretudo após a revolução industrial, imprimiu um novo paradigma em uma sociedade até então predominantemente agrícola, qual seja, o da produção em larga escala, tornando inadequados boa parte dos métodos tradicionais de geração de riquezas. Neste interim, surge uma nova acepção de empresa, concebida sob um viés econômico, o que desloca o centro de poder para a burguesia, detentora do capital, que passa a imprimir seus ideais liberais à sociedade. No entanto, o ideário liberal mostrou-se demasiadamente injusto na prática, pois possibilitava a ascensão de grandes monopólios sem uma justa contrapartida à sociedade, que não gozava dos benefícios advindos da atividade empresarial. Neste contexto, o Estado passa a intervir no mercado, de modo a regular-lhe o funcionamento e garantir a concorrência, relativizando o dogma da autonomia da vontade, em favor de uma tutela dos interesses sociais, o que foi o gérmen do conceito de função social de diversos institutos de direito privado.
O Estado deixa de assistir de forma passiva o exercício da atividade econômica. Sua atuação positiva, como regulador e interventor na esfera privada, justifica-se diante da busca pelo interesse social. Os governantes constatam que a implementação de políticas públicas eficazes depende da atuação sobre mercados, inibindo ou incentivando condutas dos agentes econômicos. Tal postura afirmativa ensejou a criação do princípio da função social da propriedade, predecessor do princípio ora estudado. Em linhas gerais, o cerne da função social da propriedade reside na ideia de uma socialização na noção de propriedade, deixando esta de ser um direito do indivíduo, para verter-se em função social, em que alguém, na condição de proprietário, teria a incumbência de empregá-la no incremento da riqueza e do bem comum.[30]
Esta funcionalização da propriedade repercutiu diretamente no campo empresarial, posto que a organização dos fatores de produção e do respectivo nexo de negócios jurídicos não poderia ser concebida de maneira individualista. Seja sob seu aspecto funcional, ou em conformidade com suas facetas objetivas e subjetivas, a empresa, tendo em vista sua inegável importância social, não poderia mais ser analisada e tutelada apenas sob o prisma liberal individualista.[31]
A moderna acepção de empresa, concebida como atividade econômica organizada, a caracteriza como uma entidade produtora de riquezas, com uma função social a desempenhar. Com efeito, a empresa possui papel fundamental na realidade social que a cerca, seja na produção bens e serviços necessários à satisfação das necessidades das pessoas, na organização do trabalho ou mesmo na realização e distribuição de riquezas, representando uma instituição chave na sociedade civil, tornando-se um instrumento de transformações sociais e econômicas.[32]
Em vista do importante papel da empresa no contexto socioeconômico, o art 47 da Lei 11.101/05 tratou de expressamente prever a função social da empresa como política legislativa no que toca à recuperação de empresas em crise. Tal premissa, reflete ainda a atual visão correspondente às organizações empresariais, cuja existência está estribada na atuação responsável no domínio econômico, não para cumprir as obrigações típicas do Estado, tampouco substituí-lo, mas sim no sentido de dever a existência do organismo empresarial ser balizada pela criação de postos de trabalho, respeito ao meio-ambiente e à coletividade como um todo.[33]
Destarte, tal qual explanado na breve síntese histórica do princípio, uma vez superada a fase do liberalismo puro, típico da fase absenteísta dos Estados, os institutos devem se conformar aos interesses maiores da sociedade, a fim de dar cumprimento à função social que lhes é inerente. Tais interesses, a seu tempo, devem corresponder às premissas constitucionais, inseridas no âmbito do Texto Maior. Assim, conclui-se que a compatibilização dos diversos interesses que gravitam a atividade empresária só se mostra possível por meio da utilização do vetor da função social da empresa, como harmonizador da livre iniciativa aos demais interesses socialmente relevantes.[34]
1.5 Princípio da Preservação da Empresa
No que tange à base principiológica da recuperação judicial, merece especial destaque o princípio da preservação da empresa, enquanto esteio do instituto. Traçando as linhas gerais acerca do princípio em comento, Waldo Fazzio[35] ensina:
Insolvente ou não, a empresa é uma unidade econômica que interage no mercado, compondo uma labiríntica teia de relações jurídicas com extraordinária repercussão social. É uma unidade de distribuição de bens e/ou serviços. É um ponto de alocação do trabalho, oferecendo empregos. É um elo na imensa corrente do mercado que, por isso, não pode desaparecer, simplesmente, sem causar sequelas.
O princípio da preservação da empresa, de modo geral, parte da premissa de que a empresa representa, como bem ensina Lobo[36], “um valor objetivo de organização que deve ser preservado, pois toda a crise da empresa causa um prejuízo à comunidade”.
Nessa mesma linha, João Pedro Scalzilli, Rodrigo Tellechea e Luis Felipe Spinelli[37] esclarecem que o princípio da preservação da empresa é a pedra fundamental da Lei de Recuperação de Empresas, sobretudo diante dos interesses que em torno dela gravitam, posto que a empresa é a célula essencial da economia de mercado e cumpre relevante função social, pois, ao explorar a atividade prevista em seu objeto social e ao perseguir o lucro, promove interações econômicas com outros agentes de mercado, seja construindo, vendendo, gerando empregos, pagando tributos, movimentando a economia, desenvolvendo a comunidade em que está inserida, entre outros, assim criando riqueza e ajudando no desenvolvimento do país, não pelo fato de este ser o seu objetivo primordial, mas sim por conta de um efeito colateral e benéfico do mero exercício regular de sua atividade.
Nesse sentido, em conflito de competência tombado sob o nº 110392[38], o Supremo Tribunal Federal, em acertada decisão, flexibilizou a rigidez da norma que exclui o credor fiduciário de bem imóvel dos efeitos da recuperação, tendo em vista a função social da empresa e sua consequente necessidade de preservação, diante do pleito recuperacional em curso, haja vista ser o bem dado em garantia de extrema necessidade para a manutenção da atividade:
CONFLITO DE COMPETÊNCIA. IMISSÃO DE POSSE NO JUÍZO CÍVEL. ARRESTO DE IMÓVEL NO JUÍZO TRABALHISTA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL EM CURSO. CREDOR TITULAR DA POSIÇÃO DE PROPRIETÁRIO FIDUCIÁRIO. BEM NA POSSE DO DEVEDOR. PRINCÍPIOS DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E DA PRESERVAÇÃODA EMPRESA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO. 1. Em regra, o credor titular da posição de proprietário fiduciário de bem imóvel (Lei federal n. 9.514 /97) não se submete aos efeitos da recuperação judicial, consoante disciplina o art. 49, § 3º, da Lei 11.101/05.2. Na hipótese, porém, há peculiaridade que recomenda excepcionar a regra. É que o imóvel alienado fiduciariamente, objeto da ação de imissão de posse movida pelo credor ou proprietário fiduciário, é aquele em que situada a própria planta industrial da sociedade empresária sob recuperação judicial, mostrando-se indispensável à preservação da atividade econômica da devedora, sob pena de inviabilização da empresa e dos empregos ali gerados.3. Em casos que se pode ter como assemelhados, em ação de busca e apreensão de bem móvel referente à alienação fiduciária, a jurisprudência desta Corte admite flexibilização à regra, permitindo que permaneça com o devedor fiduciante "bem necessário à atividade produtiva do réu" (v. REsp 250.190-SP, Rel. Min. ALDIR PASSARINHOJÚNIOR, QUARTA TURMA, DJ 02/12/2002).4. Esse tratamento especial, que leva em conta o fato de o bem estar sendo empregado em benefício da coletividade, cumprindo sua função social ( CF , arts. 5º , XXIV , e 170 , III ), não significa, porém, que o imóvel não possa ser entregue oportunamente ao credor fiduciário, mas sim que, em atendimento ao princípio da preservação da empresa (art. 47 da Lei 11.101 /05), caberá ao Juízo da Recuperação Judicial processar e julgar a ação de imissão de posse, segundo prudente avaliação própria dessa instância ordinária.5. Em exame de conflito de competência pode este Superior Tribunal de Justiça declarar a competência de outro Juízo ou Tribunal que não o suscitante e o suscitado. Precedentes. 6. Conflito conhecido para declarar a competência do juízo da 2ª Vara Cível de Itauquaquecetuba – SP, onde é processada a recuperação judicial da sociedade empresária
Da mesma forma, tendo como supedâneo o princípio da preservação da empresa, o Tribunal de Justiça gaúcho determinou, em sede de agravo interno[39], a manutenção do fornecimento de energia elétrica de uma empresa em recuperação, haja vista a essencialidade do serviço para a continuidade das operações:
Ementa: AGRAVO INTERNO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL AÇÃO CAUTELAR INOMINADA. LIMINAR. GARANTIA DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. MANUTENÇÃO. A recuperação judicial tem o intuito de propiciar ao devedor a superação das dificuldades econômico-financeiras, visando à preservação da empresa e evitando os negativos reflexos sociais e econômicos que o encerramento das atividades empresariais poderia causar. Princípio da preservação da empresa. Inteligência do art. 47, da Lei nº 11.101/2005. [...]. III. Deve ser garantido o fornecimento de energia elétrica, por se tratar de serviço essencial, de modo a viabilizar a manutenção da empresa recuperanda e fazer cumprir os objetivos da Lei nº 11.101/2005. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. (Agravo Nº 70064837222, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge André Pereira Gailhard, Julgado em 24/06/2015) (grifo nosso)
No caso concreto, a agravante se insurgiu contra decisão monocrática que, nos autos de um agravo de instrumento por ela interposto, negou seguimento ao recurso que tinha como condão reformar uma decisão advinda do processo de recuperação judicial da agravada. Sustenta a agravante, em síntese, que as faturas emitidas posteriormente ao ajuizamento da recuperação judicial devem ser adimplidas, sob pena de realização do corte no fornecimento de energia, uma vez que a liminar concedida nos autos da recuperação e que determinou a manutenção do serviço não especificou quais faturas estão abrangidas pela decisão. Quando do julgamento do feito, o relator, ao invocar o art. 47 da Lei 11.101/05, sustentou que deve a empresa, tanto quanto possível ser preservada e mantida, motivo pelo qual se criou o instituto da recuperação da empresa para “resguardá-la dos males conjunturais e mantê-la em benefício de todos”[40], de sorte que nenhuma interpretação pode ser aceita se dela restar circunstância inviabilize e deixe de fomentar a superação do estado de crise, pelo que deve ser mantido o fornecimento de energia, posto que essencial para o regular desenvolvimento das atividades da recuperanda, sem prejuízo de cobrança pelas vias adequadas. A decisão acerca da amplitude da liminar, no entanto, foi conferida ao juízo de origem, sob pena de haver a supressão de um grau de jurisdição.
No que toca às companhias, uma verdadeira compreensão do princípio da preservação da empresa e da pluralidade de interesses quando da recuperação judicial de empresas com este arranjo particular somente será atingida mediante uma análise transdisciplinar, isto é, para além do estrito âmbito das regras da insolvência, motivo pelo qual estudar-se-ão, de forma sintética, as teorias do interesse social, a saber, a contratualista e a institucionalista. A primeira delas, de cunho contratualista alinha-se com a concepção de que o interesse social estaria intimamente identificado com aquele pertencente aos sócios como um todo, derivando da compreensão do ente social como decorrência de uma relação contratual, cujo escopo seria o contentamento dos interesses das partes contratantes. Tal ideia, fortemente adotada nos Estados Unidos, justifica a orientação aos interesses dos acionistas no fato de serem estes os proprietários da empresa, e protege-los seria indiretamente proteger a todos. A segunda teoria, de matriz alemã, e adotada pela legislação brasileira, denominada institucionalista, enfatiza a relevância social e o interesse público representado pela empresa, fatores estes que justificariam uma limitação da influência dos proprietários, via de regra interessados em satisfazer apenas os próprios interesses. Sob esta concepção, a empresa possuí grande relevância para o Estado, sociedade e economia como um todo, pelo que estes possuem interesse na sobrevivência e desenvolvimento das empresas eficientes. Desta forma, a empresa passa a ser concebida não como uma associação de acionistas, mas sim como uma organização que agrega múltiplos participantes e distintos interesses, sendo esta visão o que permite que a preservação da empresa seja aceita como elemento mínimo entre todos os participantes, com vistas ao alcance do bem comum[41].
Já Viviane Perez, ao discorrer acerca da função social da empresa, subdivide sua aplicação em dois distintos ramos, primeiramente como incentivadora do exercício da empresa, e após como condicionadora de tal exercício. No que diz respeito à primeira faceta em particular, como advoga a autora, nela se encontra a gênese do princípio da preservação da empresa, que aponta uma primazia do interesse da empresa, enquanto centro de diversos outros interesses, de sorte que é possível concluir que o princípio em comento pode ser concebido como corolário da função social da empresa, ao mesmo tempo em que se verifica uma relação de complementaridade entre ambos.[42]