Foram publicadas no Diário Oficial da União do dia 04 de abril duas novas leis, uma delas, Lei 13.641/201, alterando a chamada Lei Maria da Penha (Lei nº. 11.340/06) e a segunda modificando a lei que trata das atribuições investigatórias da Polícia Federal (Lei nº. 10.446/02). As alterações merecem alguma análise. É o que faremos, conjuntamente, a seguir:
A primeira nova lei, mudando o Capítulo II do Título IV da Lei nº. 11.340/06 (Lei Maria da Penha), acrescentou-lhe a Seção IV, com a seguinte epígrafe:
“Seção IV
Do Crime de Descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência
Descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência
Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.
§ 1o A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas.
§ 2o Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança.
§ 3o O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis.”
Até esta alteração legislativa, a sanção prevista para o descumprimento das medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha era a decretação da prisão preventiva, nos termos do art. 313, III, do Código de Processo Penal, não sendo cabível a responsabilidade criminal do indiciado ou do acusado pelo crime de desobediência, pois, havendo sanção já prevista para a recalcitrância (a decretação da prisão preventiva), não subsistiria a responsabilidade penal, salvo se houvesse ressalva expressa na lei, como ocorre, por exemplo, nos arts. 218 e 219 do Código de Processo Penal, relativamente à testemunha faltosa.
Assim, se a lei processual penal já estabelecia a decretação da prisão preventiva em caso de não cumprimento da medida protetiva de urgência, não era possível a responsabilização criminal do agente pelo crime de desobediência. Tal exegese decorre da aplicação do princípio da intervenção mínima do Direito Penal, considerado ultima ratio.
Mutatis mutandis, vejamos a jurisprudência:
“Não ocorre o crime do art. 330 do Código Penal, na conduta da vítima, previamente cientificada, que deixa injustificadamente de comparecer à audiência de oitiva, fato que apenas a sujeita à condução coercitiva, nos termos do art. 201, parágrafo único do Código de Processo Penal, que não ressalva a possibilidade de cumulação com o reconhecimento do crime de desobediência.” (TACRSP - RJDTACRIM 28/84).
“Não se justifica o processo penal por desobediência, uma vez que a lei prevê remédio específico para a punição da mesma.” (TASP - RT 368/265).
“Para a configuração do crime de desobediência não basta o fato material do não cumprimento da ordem legal dada pelo funcionário competente. É indispensável que, além de legal a ordem, não haja sanção especial para o seu não cumprimento.” (TACRIMSP – AC – Rel. Chiaradia Netto – RT 399/283).
Também no Superior Tribunal de Justiça:
“Para a configuração do delito de desobediência não basta apenas o não cumprimento de uma ordem judicial, sendo indispensável que inexista a previsão de sanção específica em caso de seu descumprimento. Precedentes.” (5ª. Turma – Habeas Corpus nº. 68.144/MG – Relator Ministro Gilson Dipp – j. 24.04.2007 – DJU 04.06.2007, p. 394).
O mesmo se diga em relação ao tipo penal previsto no art. 359 do Código Penal - Desobediência a Decisão Judicial Sobre Perda ou Suspensão de Direito -, considerando que há determinadas medidas protetivas de urgência consistentes na suspensão de direitos como, por exemplo, suspensão da posse ou restrição do porte de armas (art. 22, I da Lei Maria da Penha).
É bem verdade que a nova lei, expressamente, não excluiu a aplicação de outras sanções cabíveis; nada obstante, entendemos que se fez referência à possibilidade de decretação da prisão preventiva, além da responsabilidade penal pelo novo delito.
É evidente que denunciar o descumpridor da medida protetiva de urgência por dois ou três crimes - Descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência, Desobediência e Desobediência a Decisão Judicial Sobre Perda ou Suspensão de Direito – parece-nos um inaceitável bis in idem.
Assim, doravante, além da possibilidade da decretação da prisão preventiva (se não for o caso, evidentemente, da substituição da medida protetiva de urgência por outra mais eficaz, visto que “a prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar”, devendo sempre ser decretada “em último caso”, nos termos do art. 282, §§ 4º. e 6º. do Código de Processo Penal), será possível que o Ministério Público ofereça denúncia pelo crime tipificado no art. 24-A da Lei nº. 11.340/06, ainda que se trate de medida determinada por um Juiz cível, o que será raríssimo, tendo em vista se tratar de competência de um Juiz penal.
Neste caso, observa-se que não se trata de infração penal de menor potencial ofensivo, nada obstante a pena máxima ser igual a dois anos, pois, nos termos do art. 41 da mesma Lei Maria da Penha, não se aplica aos crimes praticados em situação de violência doméstica ou familiar o disposto na Lei nº. 9.099/95.
Portanto, incabíveis serão a transação penal, a composição civil dos danos, a suspensão condicional do processo, a lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência, sendo possível, outrossim, a lavratura do auto de prisão em flagrante e a instauração de inquérito policial (arts. 69, 74, 76 e 89 da Lei nº. 9.099/95).
Trata-se, ademais, de um crime de ação penal pública incondicionada, cujo procedimento será o sumário, disciplinado nos arts. 531 a 536 do Código de Processo Penal, aplicando-se, por analogia, o art. 538 do Código de Processo Penal.
A nova lei afastou, igualmente, a possibilidade de aplicação do art. 322 do Código de Processo Penal, pois, na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança, não mais a autoridade policial, como é permitido nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a quatro anos, nos termos do artigo acima citado.
Já a outra nova lei, a de nº. 13.642/18, acrescentou o inciso VII ao art. 1º. da Lei nº 10.446/02, que regulamenta o inciso I do § 1º. do art. 144 da Constituição Federal, dispondo sobre a atribuição da Polícia Federal para investigar infrações penais de repercussão interestadual ou internacional que exigem repressão uniforme.
De agora em diante, poderá o Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça, sem prejuízo da responsabilidade dos demais órgãos de segurança pública arrolados no art. 144 da Constituição, especialmente as Polícias Militares e Civis dos Estados, também proceder à investigação de “quaisquer crimes praticados por meio da rede mundial de computadores que difundam conteúdo misógino, definidos como aqueles que propagam o ódio ou a aversão às mulheres”.
Por fim, observa-se que a Lei nº 10.446/02 trata apenas de atribuição da Polícia Federal, e não de competência da Justiça Comum Federal, cujo tratamento encontra-se no art. 109 da Constituição. Portanto, salvo hipótese de incidência de um dos incisos deste artigo – por exemplo, os seus incisos V e V-A – a competência para o processo, julgamento e execução continuará sendo, em regra, da Justiça Comum Estadual.