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A reação legislativa de criminalização das medidas protetivas de urgência

22/04/2018 às 09:45
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Com o objetivo de ampliar a proteção à mulher vítima de violência doméstica e recrudescer a punição ao autor de crimes dessa natureza, o legislador, por meio da Lei 13.643/2018, inova a ordem jurídica e cria nova figura típica no bojo da lei 11.340/06.

Com o claro objetivo de ampliar a proteção à mulher vítima de violência doméstica e recrudescer a punição ao autor de crimes dessa natureza, o legislador, por meio da lei 13.643/2018, publicada em 03 de Abril do corrente ano, inova a ordem jurídica e cria nova figura típica no bojo da própria Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), com a seguinte redação:

Art. 24-A.  Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.

§ 1o  A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas.

§ 2o  Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança.

§ 3o  O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis.[1]

A inovação legislativa teve origem na PL 173/2015, de autoria do deputado Alceu Moreira, do PMDB do Rio Grande do Sul, e objetiva, inegavelmente, cumprir a prima ratio da lei Maria da Penha, isto é, tornar efetiva a proteção às vítimas. A alteração acaba por inserir, de forma inédita, no bojo da lei 11.340/06, tipo criminal autônomo, pois, até então, não havia modalidade criminosa descrita em seu texto, mas, sim, formas específicas de processamento dos crimes disciplinados em outros diplomas legais que se adequassem às condições descritas entre seus art. 5º a 7º.

A alteração evidencia-se ser uma clara reação legislativa à jurisprudência atual, a qual afirma que, mesmo havendo o descumprimento da medida protetiva de urgência, o ato perpetrado pelo autor não se configura criminoso, não havendo, assim, a possibilidade, de per si, de se efetuar a sua prisão.

Para melhor compreensão, citemos algumas situações:

Primeira: imaginemos que o autor de crime submetido à sistemática da lei Maria da Penha tenha sido notificado sobre medida protetiva de urgência contra si expedida, que o proíba de se aproximar da vítima e manter um limite mínimo de distância (Art. 22, III, “a”, da lei 11.340/06), mas que, mesmo cientificado da proibição, acabe por violá-la e, ainda, por cometer novo crime, como, por exemplo, lesão corporal. Neste caso, não há maiores dificuldades, pois, estando ainda em alguma das situações flagranciais descritas entre os artigos 301 e 303 do Código de Processo Penal (CPP), poderá ele ser preso e conduzido ao ergástulo em decorrência da nova infração penal perpetrada.

Segundo: exemplo que gerava, antes da novatio legis, maiores controvérsias e debates, ocorria nos casos em que o autor de crime submetido à sistemática da lei Maria da Penha, notificado sobre medida protetiva de urgência contra si expedida, como alhures, que, sem motivo justificado, acabava por violar a proibição apenas se aproximando da vítima, não cometendo, porém, novo ato criminoso. Neste caso, de forma acertada, do ponto de vista técnico-legal, repise-se, antes do novel diploma, era o entendimento da impossibilidade de prisão do violador da medida, pois não havia, como defendido pela doutrina majoritária, a caracterização do crime de desobediência, descrito no Art. 330 do Código Penal.

A fundamentação da não incidência do delito de desobediência é pautada na sua natureza residual, pois, pelo fato de possuírem as medidas protetivas de urgência sistemática processual punitiva própria no caso de seu descumprimento, qual seja, a decretação da prisão preventiva, segundo a jurisprudência dos tribunais superiores, haverá descaracteriza-se o mencionado crime, ex vi:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ART. 330 DO CP. DESOBEDIÊNCIA. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTETIVA PREVISTA NA LEI MARIA DA PENHA. CONDUTA ATÍPICA. EXISTÊNCIA DE SANÇÕES ESPECÍFICAS NA NORMA DE REGÊNCIA. INSURGÊNCIA DESPROVIDA. 1. O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que o crime de desobediência é subsidiário, configurando-se apenas quando, desrespeitada ordem judicial, não existir sanção específica ou não houver ressalva expressa no sentido da aplicação cumulativa do art. 330 do Código Penal. 2. Considerando-se a existência de medidas próprias na Lei n.º 11.340/2006 e a cominação específica do art. 313, inciso III, do Código de Processo Penal, o descumprimento de medidas protetivas de urgência não configura o crime de desobediência. 3. Agravo regimental a que se nega provimento.(STJ. AgRg no RECURSO ESPECIAL Nº 1.651.550 - DF (2017/0021881-5).

Verifica-se, desta feita, após a publicação da lei 13.643/2018, estar, ao menos neste instante[2], superada a celeuma quanto à possibilidade de prisão daquele que, sem perpetrar novos crimes, descumpriu a medida, não havendo mais a necessidade de se subsumir a conduta ao crime de desobediência.

Entretanto, não se pode deixar de citar que o novo crime possui natureza jurídica, no mínimo, conturbada, do ponto de vista doutrinário, pois se caracteriza, pela pena máxima abstratamente cominada, em crime de menor potencial ofensivo, entretanto, em decorrência do art. 41 da lei 11.340/06, tem obstada a utilização dos preceitos despenalizadores da lei 9.099/95, bem como possui gravame típico dos crimes hediondos, qual seja, a proibição, ao menos em fase policial, da concessão da fiança, a qual lembremos, pode ser concedida pela autoridade policial no caso de crimes com pena máxima abstrata de 04 anos, conforme art. 322 do CPP.

Antes de se findar este ensaio, uma situação prática se mostra preocupante, qual seja: a comprovação da notificação da medida protetiva ao conduzido, em especial, quando detido fora do horário de expediente do Poder Judiciário. A preocupação possui grande relevância, pois tal ato de notificação se configura como condição objetiva de punibilidade[3] e, sem a prova inequívoca de sua realização, não há possibilidade de se efetuar a prisão, sob pena de se cometer patente ilegalidade. Dessarte, para se evitar citadas situações, será imprescindível a necessidade de eficaz e imediata comunicação à autoridade policial sobre o cumprimento da notificação, sob pena de, na situação acima explicitada, ficar o tipo sem aplicabilidade.  

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Por derradeiro, ao se efetuar análise global da novatio legis, há de se elogiar o legislador quanto o objetivo de proteger a mulher vítima de violência doméstica, entretanto, verifica-se que, no afã de usar a lei penal para a solução de todas as mazelas sociais, o que a doutrina hodierna nomina de inflação legislativa punitivista, acaba-se criando situações de retrocesso tanto social quanto dogmático, como no caso da supressão da fiança por parte da autoridade policial, a qual nos remete à situação de uma prisão remédio que visa claramente acalmar os ânimos exaltados, fazendo-nos recordar das nefastas prisões para averiguação.


notas

[1]  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13641.htm

[2] Refiro-me desta forma, pois é ululante a instabilidade criada hodiernamente pelos tribunais superiores quando da discussão de matérias importantes, remetendo o leitor a outro artigo de autoria desse subscritor que trata do assunto: http://emporiododireito.com.br/leitura/a-liquida-hermeneutica-juridica-1508243327.

[3] Condições objetivas de punibilidade: são as condições exteriores à conduta delituosa, não abrangidas pelo elemento subjetivo, que, como regra, estão fora do tipo penal, tornando-se condições para punir. São causas extrínsecas ao fato delituoso, não cobertas pelo dolo do agente. Ex.: sentença declaratória de falência em relação a alguns casos de crimes falimentares (art. 180, Lei 11.101/2005). São chamadas, também, de anexos do tipo ou suplementos do tipo. Nada impede, no entanto, que estejam
inseridas no tipo penal, embora mantenham o seu caráter refratário ao dolo do agente, isto é, não precisam por este estar envolvidas. (NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado - 17. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017. p.404).

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Sobre o autor
Marcelo Ricardo Colaço

Mestre em Desenvolvimento e Sociedade (Uniarp). Especialista em Ciências Criminais (Uniderp-Anhanguera). Especialista em Docência Superior pela Universidade Alto Vale do Rio do Peixe (Uniarp)- Campus Caçador. Possui graduação em Direito pela Universidade Alto Vale do Rio do Peixe (2011). Professor no programa de Pós-Graduação da UNOESC- Campus Videira/SC, no curso de Direito Penal e Processo Penal, onde ministra as matérias de Teoria Geral do Crime e Tópicos Especiais de Direito Penal. Professor no programa de Pós-Graduação da UNIGUAÇU- Campus União da Vitória/PR, no curso de Direito Penal e Processo Penal, onde ministra as matérias de Teoria Geral do Crime e Tópicos Especiais de Direito Penal. Foi Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Universidade Alto Vale do Rio do Peixe- Campus Caçador. Professor das matérias de Direito Constitucional e Direito Processual Penal no curso preparatório para concursos Club da Aprovação. Delegado de Polícia na Secretaria da Segurança Pública e Defesa do Cidadão de Santa Catarina. Lattes: https://wwws.cnpq.br/cvlattesweb/PKG_MENU.menu?f_cod=E5C7415590A02F62DF8172B528F6925B E-mail: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COLAÇO, Marcelo Ricardo. A reação legislativa de criminalização das medidas protetivas de urgência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5408, 22 abr. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65357. Acesso em: 26 abr. 2024.

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