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A desobediência civil na greve dos caminhoneiros

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Debate-se o tema da 'desobediência civil' em face da greve dos caminhoneiros, que trouxe inegáveis, graves e preocupantes consequências à vida econômica e social do país, atraindo, em certa medida, o debate político sobre a governabilidade.

O movimento grevista dos caminhoneiros, que abalou profundamente a vida nacional, trouxe graves consequências à economia e repercutiu, drástica e negativamente, no funcionamento de empresas públicas e privadas, escolas, aeroportos, feiras, mercados, supermercados e postos de combustíveis, causando transtornos à circulação de ônibus e veículos particulares, nas cidades, sobretudo nas rodovias. Iniciada em 21 de maio, assinalou um momento crucial da vida nacional e gerou uma crise sem precedentes, que culminou com a suspensão de serviços e atendimentos essenciais em hospitais e postos de saúde.        

Afetou, particularmente, a imagem do Governo Federal, que demorou em tomar medidas legais visando reprimir a paralisação dos caminhoneiros, os quais, senhores da situação, passaram a exigir o cumprimento de reivindicações que se tornaram caras ao Governo e terminaram onerando os cofres públicos.

Com efeito, ao propor um acordo com o objetivo de debelar a greve, o Governo sujeitou-se ao cumprimento de 12 ítens para atender exigências da categoria; mas verificou-se que o movimento dos trabalhadores continha, às ocultas, uma pauta com forte campanha empresarial, puxada pelas grandes distribuidoras de combustíveis, que visavam justamente uma formal redução de impostos. 

O problema, portanto, não se resumia ao transporte do combustível para o posto; e sim ao “imposto” cobrado das distribuidoras. É que o patronato, bastante incomodado com a carga tributária, terminou empurrando a categoria dos caminhoneiros para o centro das negociações com o Governo, uma estratégia que não conseguiu disfarçar a existência do ‘locaute’ > https://www.conjur.com.br/2018-mai-28/kleber-cabral-malandragem-distribuidoras-greve  >.

 Os 12 itens acordados:

1. redução a zero da CIDE sobre o óleo diesel, em 2018;

2. redução em 46 centavos do valor do óleo diesel por 60 dias;

3. estabelecimento de reajuste de preços a cada 30 dias;

4. estabelecimento de uma atualização da tabela de referência do frete trimestral, com a criação de uma tabela mínima de preços;

5. isenção da tarifa de pedágio sobre o eixo suspenso em caminhões vazios;

6. concordância na edição de Medida Provisória para autorizar a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) a contratar transporte rodoviário de cargas sem licitação, para, pelo menos, 30% da sua demanda de frete, junto a transportadores autônomos;

7. manutenção da desoneração da folha de pagamento das empresas do setor de transporte rodoviário de cargas;

8. compromisso de o Governo  requerer a extinção das ações judiciais propostas em razão do movimento dos caminhoneiros;

9. concordância em prestar informações às autoridades de trânsito sobre a celebração do Acordo, com o intuito precípuo de retirar multas de trânsito em função da greve;

10. aceitação, pelo Governo, da realização de reuniões periódicas com as entidades de classe, com a finalidade de acompanhar o cumprimento dos termos do Acordo, ficando estabelecido o prazo de 15 dias para realização do próximo encontro;

11. concordância do Governo em buscar, junto à Petrobras, condições para que os transportadores autônomos livres possam participar de operações de transporte como terceirizados;

12. cabe ao Governo solicitar da Petrobras que seja observada a Resolução ANTT nº 420/2004, que trata da renovação da frota nas contratações de transporte rodoviário de carga.

Contudo, após assinatura do Acordo, com as demandas dos caminhoneiros e do patronato supostamente atendidas nas negociações, a greve prosseguiu, para surpresa dos analistas da crise, embalada por um sub-reptício propósito político, considerando que vários setores da sociedade, com parcela significativa da população solidária aos caminhoneiros, passaram a apoiar o movimento paredista por entender que o governo desagrada a maior parte dos brasileiros, todos insatisfeitos com os escândalos políticos e até o desemprego alarmante que afeta o bolso das famílias.

A insatisfação contra o Governo impopular, envolvido em acusações de escândalos e corrupção, que não logrou reduzir o tamanho da carga tributária, passou a alimentar uma certa espetacularização do movimento grevista, com as pessoas, em diversos pontos do país, levando alimentos, água e cobertores para os grevistas, ações que chegaram a comover alguns, mostradas através da imprensa escrita e televisionada, e replicadas na Internet e nas redes sociais.  

O movimento não paralisou de todo o país, como queriam os apologistas da paralisação. Trouxe, entretanto, inegáveis e incontáveis prejuízos à economia e ao próprio orçamento do Estado brasileiro, com graves danos sociais e até políticos. A crise, que começou com a suspensão do transporte de combustíveis, culminou com a redução e parcial desaparecimento de alimentos e produtos de primeira necessidade em feiras, mercados e prateleiras de supermercados, visto que, além dos caminhões que transportavam combustíveis, havia aqueles que carregavam produtos alimentícios e outros gêneros básicos, tais como medicamentos, os quais ficaram estacionados, em acostamentos ou em pistas de rolamento das estradas e rodovias federais, estaduais e municipais, por cerca de onze dias seguidos, causando transtornos os mais diversos à livre circulação de veículos e pessoas, revelando-se, portanto, abusiva a greve feita por profissionais que exerciam atividade considerada como essencial, tudo com violação ao art. 10, I, II, III e V, da Lei Federal nº 7.783, de 28 de junho de 1989.  

Além de infrações à Lei de Greve, acima apontadas, os caminhoneiros infringiram, clara e acintosamente, os artigos 181, VII, e 182, V (este, infração gravíssima), do Código de Trânsito Brasileiro (Lei Federal nº 9.503, de 23.09.1997). E, acima de tudo, violaram, desrespeitaram, afrontaram o art. 5º, inciso XV, da Constituição Federal, que contempla a chamada liberdade de locomoção das pessoas, e o inciso XVI do mesmo artigo, que trata do direito de reuniões pacíficas, preceitos e garantias fundamentais da Carta Magna, que albergam cláusulas pétreas conferidas pela Lei Maior.    

A reivindicação  dos caminhoneiros, conquanto de aparência justa, trouxe prejuízos e estragos inestimáveis, com manifesta violação à Lei de Greve (artigos 6º, I, §§ 1º e 3º, 10, I, II e III, e 11, parágrafo único, da Lei Federal nº 7.783, de 28 de junho de 1989). Notar que o Governo Federal, para cumprir os acordos realizados com os caminhoneiros, precisou reduzir recursos que seriam canalizados às áreas de saúde e educação. Assim, para atender o programa de  subsídios ao óleo diesel,  conforme Medida Provisória nº 838, de 30.05.2018 > http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015 2018/2018/Mpv/mpv838.htm#art2 >, o Governo anunciou um corte de despesas da ordem de R$ 3,4 bilhões. Isso só foi possível, segundo  Gleisson Rubin,  Secretário Executivo do Ministério do Planejamento, porque essas despesas já estavam bloqueadas no Orçamento > https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/05/para-reduzir-diesel-governo-onera-exportadores-e-corta-recursos-para-obras.shtml >.

Houve consequências nefastas não só à economia como à vida plena das pessoas, de tal modo que a paralisação geral dos caminhoneiros afetou a normalidade da vida nacional. Ficou evidenciada uma mudança na vida das pessoas, as quais, de repente, sentiram a falta de combustíveis nos postos de atendimento e deixaram de atender ou adiaram compromissos, e não encontravam produtos básicos em feiras e supermercados. Tudo culminou com a brutal e irreprimível violência de alguns caminhoneiros, ou de manifestantes infiltrados no movimento, que se apossavam do veículo de trabalho do membro da categoria, retiravam a vítima do carro à força e lhe destruíam a carga. Houve, portanto, inequívoca violação a direitos e garantias fundamentais (art. 5º, XV e XVI, da Constituição Federal).

 O quadro da paralisação, com bloqueios em vias públicas e o emprego da violência, não tendo havido, por parte dos grevistas, a garantia, prevista em lei, da “prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade” (art. 11, da Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989), configurando clara inobservância a dispositivos da Lei de Greve, remete ao tema, de envergadura sócio-jurídica, da DESOBEDIÊNCIA CIVIL.

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 Ao deixar de observar preceitos legais relativos ao direito de greve, insculpidos nos artigos 6º, I, §§ 1º e 3º, 10 e 11 , da Lei Federal nº 7.783/89, o caminhoneiro, violando a ordem jurídica estabelecida, praticou a chamada ‘desobediência civil’ em situação clamorosa, pois em prejuízo da prestação de serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, colocando em perigo iminente a sobrevivência, a saúde e a segurança da população. 

Nem o apoio popular, na maioria das vezes emprestado por pessoas que não atentaram para as consequências funestas do movimento paredista, ou por aqueles que preferiram fazer a apologia da greve, todos esses alimentados por uma certa indignação contra o Governo Federal, nada disso pode justificar o ato de desobediência à lei, inclusive com violação ao  Texto Constitucional,  ferindo garantias legais fundamentais à vida do cidadão brasileiro (art. 5º, XV e XVI, da CF). 

 O movimento pôs em xeque a própria governabilidade do país, quando percebeu-se que, no clímax dos protestos paredistas, os manifestantes passaram a usar palavras de ordem em favor de uma “intervenção militar” no Estado brasileiro   > https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/05/para-especialistas-pedido-de-intervencao-militar-afronta-constituicao-e-pode-ser-crime.shtml  >.

 Alguns protestos, inflamados, carregados da intenção de fazer-se uma “intervenção militar” no Brasil, tornaram evidente a  “subversão da ordem política e social”,  punível à luz da Lei de Segurança Nacional – Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983, na forma dos artigos 22, I, e 23, I.

 Indisfarçável, ficando ao largo da lei, a conduta da ‘desobediência civil’, cuja teoria e aplicação foi defendida, modernamente, por Henry David THOREAU (1817-1862), célebre poeta, naturalista, ativista anti-impostos, crítico da ideia de desenvolvimento, ensaísta e filósofo estadunidense, que pregava o não pagamento de impostos por entender que nenhum governo é legítimo, pois qualquer governo é responsável por dano e injustiça.

  No seu famoso ensaio sobre a ‘desobediência civil’, inicialmente intitulado “Resistência ao Governo Civil”, que parece ter sido um texto escrito para uma conferência, feita em 1848, ao tempo da guerra entre os Estados Unidos e o México, e que ganhou o título definitivo, em 1866, após a morte do autor, de  “A Desobediência Civil”  (‘On Civil Desobedience’), o grande escritor norte-americano diz que “A lei nunca tornou os homens mais justos, no mínimo que fosse, e, por via de seu respeito a ela, mesmo os de boas disposições vêem-se diariamente convertidos em agentes da injustiça” (in “A Desobediência Civil”, seleção, prefácio e notas de José Paulo Paes, São Paulo, Editora Cultrix, MCMLXVIII, pág. 19).

  Para THOREAU, o desrespeito à lei era, mais do que uma necessidade, um ato e dever de “consciência do indivíduo”. Aceitar as leis equivalia a ser um súdito. Mas dizia que devemos, em primeiro lugar, ser homens, e depois súditos. Assim, acreditava, sintetizando o seu pensamento político, que  “O melhor governo é o que não governa de modo algum”  (ob. cit., pág. 17).

  Porém, consta que o filósofo norte-americano nunca usou da violência para se furtar ao pagamento de impostos:“...declaro quietamente guerra ao Estado, à minha maneira” (ob, cit., pág. 40). Ao contrário, entendia, por ver que os “sentimentos pessoais” de justiça eram superiores ao dever de pagar tributos, que um homem não podia sujeitar-se ao Estado, e que, nesse caso, o melhor lugar para um homem justo era a prisão. Defendia, assim, que todos deviam se recusar ao pagamento de impostos, pois tal não seria uma medida violenta e sangrenta, acreditando que esta seria “a definição de uma revolução pacífica” (ob. cit., pág. 31). E termina dizendo como foi preso, certa vez, por não pagar capitação há seis anos. Encarou com ironia a situação, pois considerava que o Estado não era “dotado de inteligência ou honestidade superior, e sim de superior força física” (ob. cit., pág. 35).

  A classe de caminhoneiros, sem constrangimentos a direitos e garantias fundamentais, e de maneira absolutamente pacífica, poderia ter se inspirado na  teoria política de THOREAU, ainda que contrariada ou indignada com a alta carga de impostos, ou ainda que não acreditasse no Governo, para realizar uma paralisação legítima, com respaldo legal, que respeitasse, estritamente, os mandamentos da Lei de Greve, que a categoria deve conhecer muito bem, porém não levou em consideração.

  RUI BARBOSA, em magistral lição de civilidade que todos deviam guardar, já advertia que: “A observância da lei é o princípio específico da perseverança das instituições livres, e, sobretudo nas organizações democráticas, não há outra salvação para as sociedades” ( “Primeira Carta a “La Nación”, in “Escritos e Discursos Seletos”, 2ª edição, Rio de Janeiro, Aguilar Editora, 1966, pág. 1.016).

  Assim, não estando ainda satisfeita com os resultados do movimento, que a categoria se conscientize da lição do grande brasileiro, nunca descurando do bom senso, e assim possa, se for necessário, mas sob o pálio da lei, deliberar sobre a conveniência de qualquer nova paralisação.

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Sobre o autor
José Ribamar da Costa Assunção

Procurador de Justiça Aposentado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ASSUNÇÃO, José Ribamar Costa. A desobediência civil na greve dos caminhoneiros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5665, 4 jan. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66673. Acesso em: 2 nov. 2024.

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