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O Supremo e o constitucionalismo periódico brasileiro:

Uma emenda a cada três meses. Falta uma para 100

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30 anos de nossa Constituição. Grande excesso de emendas e um texto que constitucionalizou quase tudo. Talvez seja a hora de repensar o fato de que a Constituição só deve conter o que, de fato, é constitucional, e que o STF deve ser, de fato, somente um tribunal constitucional.

De uma forma geral, nos ordenamentos jurídicos em que há a figura de um tribunal com jurisdição constitucional — assim como o STF —, eles existem primordialmente como forma de defesa do balaústre constitucional, posto ser este o fundamento de sustentação do sistema jurídico-político. Em outras palavras, os tribunais constitucionais tutelam as constituições. São criados por elas e para elas. Portanto, as demandas que são analisadas pelas cortes constitucionais são aquelas que, de alguma forma, não se submetem ao texto constitucional.

É bem verdade que os tribunais constitucionais também costumam ter competência criminal para julgar os delito cometidos pelas autoridades que ocupam posição de cúpula. Mas isso, gize-se, de fato é restrito aos ocupantes de cargos de chefia dos poderes — não qualquer autoridade —, e não para todo e qualquer delito, mas somente àqueles ligados ao exercício da função desempenhada. Resumidamente, é assim que funciona em outros ordenamentos jurídicos.

No Brasil, entretanto, ao nosso tribunal constitucional foi atribuída competência para processar e julgar demandas das mais variadas que se possa imaginar, e que, muitas das quais, não guardam qualquer relação com a função de jurisdição constitucional. No que diga respeito à sua competência recursal, o STF serve como instância revisora de quase todas as causas protocoladas nas primeiras instâncias de todo o Brasil (visto que o texto da Lei Maior foi recheado com quase todo tipo de matéria, então de uma forma ou de outra, sempre haverá um “gancho” para levantar a causa ao STF); serve como delegacia de polícia quando o investigado tem foro privilegiado no próprio STF (não, o Supremo não acabou com a prerrogativa de foro); serve ainda como primeira e única instância para julgamento de algumas autoridades; serve como vara de execução penal; além de outras atribuições que lhes são conferidas de forma expressa pela Constituição Federal.

O STF ainda tem, dentre as suas competências, uma muito curiosa — para não dizer contraditória —, que é de julgar as causas contra o órgão que existe, e que foi criado, para lhe fiscalizar. Ou seja, compete ao STF julgar as causas contra o CNJ (art. 102, I, “r”), e compete ao CNJ fiscalizar o STF (art. 103-B, §4º). É mais ou menos assim: os Ministros do STF jugam as demandas, inclusive mandado de segurança, em face dos Ministros do CNJ; e, os Ministros do CNJ, decidem reclamações e outras ações, em face dos Ministros do STF. Ambos são fiscal/fiscalizado um do outro. É uma espécie de vigilância “sinalagmática”. STF e CNJ são entre si, e ao mesmo tempo, autoridade e súdito um do outro. Acredito que isso só ocorra em nosso País.

O atual texto constitucional atribui ao STF um leque de competência tão grande, que, se fosse uma pessoa física, não restaria dúvida de que sua condição poderia ser considerada como de análoga à escravo. Uma simples leitura na redação do artigo 102 mostra o que é a atividade judicante do STF. Trata-se de um sem número de situações, dividas em competência originária e recursal, as quais serão processadas e julgadas pelo tribunal constitucional brasileiro. Até mesmo os comandantes da Marinha, Exército e Aeronáutica serão processados e julgados, por infrações penais comuns, por nosso tribunal constitucional, não obstante exista, dentre os órgão do Poder Judiciário, o Superior Tribunal Militar.

Especificando a competência do STF, o caput do artigo 102 determina que “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:”, após essa redação do caput, tem-se início um rol extensivo de situações onde caberá ao nosso tribunal constitucional exercer jurisdição.

A questão é que ser o Guardião da Constituição brasileira não é nada fácil, por vários motivos, mas, principalmente porque, e acredito que ninguém negará, é muita coisa para ser guardada. Sinceramente, e com todas as vênias possíveis, não se entende como é que puseram no texto constitucional tantos assuntos, os quais poderiam ter sido tratados pela legislação federal.

A questão é que constitucionalizaram matérias que não necessitavam da tutela constitucional. Além disso, não só estamparam tais matérias na corpo da Lei Maior, mas o fizeram de forma minuciosa. Ou seja, o constituinte, não satisfeito em constitucionalizar assuntos os mais variados, também o fez de forma detalhada, tecendo filigranas jurídicas que poderiam muito bem ser norteadas por leis infraconstitucionais. Não é por outro motivo que quem observar o texto da nossa Constituição, perceberá que os artigos são, grande em parte, acompanhados por uma verdadeira procissão composta por parágrafos, incisos, alíneas e itens.

Ora, o Poder Constituinte Originário, com suas características, que, convenhamos, são mais divinas do que propriamente jurídicas (inicial, autônomo, incondicionado e etc.), tem amplos poderes para imprimir no corpo da Constituição tantas matérias quanto assim o queira. E assim nosso constituinte o fez. Pintou a tela constitucional como bem entendeu. No entanto, o problema não reside apenas no fato de ter redigido o texto constitucional com todos os assuntos que bem entendesse. A grande questão também é que a redação dos mesmos deu-se de forma extremamente detalhada. Ou seja, os assuntos não apenas foram escritos na Constituição Federal de 1988, mas o foram de forma extensa.

Acreditamos que, se o desejo era constitucionalizar toda matéria importante, então que fosse posto no texto constitucional apenas a gênese da questão, porém não havia a necessidade de esmiuçar cada pequeno detalhe como foi feito, o que poderia ser feito por lei infraconstitucional, complementar, ordinária ou mesmo por decreto.

Tomemos por exemplo a centenária constituição americana. É um típico exemplo de constituição sintética, pois são apenas 7 artigos e 27 emendas, sendo que a emenda mais recente data de 1992, ou seja, são 26 anos sem alteração no texto constitucional. No entanto, engana-se que o texto constitucional norte americano não trata dos assuntos realmente necessários, pois, apesar de sintética, ela norteia um considerável rol de assuntos: composição bicameral do Congresso Nacional, formado pelo Senado e pela Câmara de Representantes, aquele composto por representantes dos estados e este por representantes do povo americano, inclusive estabelecendo requisitos para quem pretenda se candidatar; número máximo de parlamentares por habitantes; competência para processar e julgar impeachment; estabelece que o vice-presidente presidirá o Senado, mas não terá direito à voto; a competência para julgar os crimes cometidos pelo presidente norte americano; remuneração dos parlamentares; competência legislativa do Senado; competência tributária; habeas corpus; irretroatividade da lei penal; proibição do poder de tributar; poderes do presidente; processo eleitoral; estrutura e funcionamento do Poder Judiciário; irredutibilidade de vencimentos dos magistrados; competência processual; garantia da presunção de veracidade dos documentos públicos; direitos e garantias individuais; forma de governo; devido processo legislativo para emissão de emendas constitucionais; liberdade religiosa; e etc.

Esse rol supracitado é meramente exemplificativo, pois quem analisar o texto da constituição norte americana vai perceber que existe ainda vários outros assuntos que foi constitucionalizado (esses itens supracitado sequer chegam à metade do que ainda existe na constituição americana). No entanto, como dito, verifica-se que tais matérias lá estão postas de forma essencial, ou seja, o texto constitucional norte americano não foi utilizado para vaticinar os detalhes das matérias por ele agasalhado, como acontece com a nossa CF/88.

Saliente-se que existe, no Brasil, a figura da lei complementar à Constituição, que existe justamente para fixar os detalhes das matérias mais importantes que a Lei Maior estampa. Ou seja, ainda que houvesse a necessidade de se constitucionalizar alguma matéria, todavia, se fosse o caso da necessidade de se detalhar a matéria, então a figura a lei seria editada pelo legislador infraconstitucional, podendo vir ao mundo com de lei complementar, cujo processo de criação e alteração é mais rígido do que das leis ordinárias.

Todavia, a figura da lei complementar está se tornando algo cada vez menos utilizado, pois a própria Constituição não apenas constitucionaliza as matérias, mas também já traça os respectivos regulamentos, de forma que não se tem mais o que complementar. E a prova disso é que, em termos de quantidade, temos quase tantas emendas constitucionais quanto leis complementares, e no atual ritmo de produção das emendas constitucionais, em um curto espaço de tempo teremos muito mais emendas do que leis complementares.

Com um grau de prolixidade da Carta de 1988, não resta mais nada a ser complementado.

Isso é uma prova de que, como dito, aqui no Brasil as matérias constitucionalizadas são redigidas com minúcias que são incabíveis para um texto constitucional, e que poderiam muito bem ser detalhadas por lei infraconstitucional.

A ideia central de todo e qualquer constitucionalismo de fato constitucional (perdoem-me o triste, mas necessário, trocadilho) as mais importantes matérias do estado, em uma norma de superior hierarquia (seja ela codificada ou consuetudinária), que é tutelada por um tribunal constitucional, e cujo texto é rígido quanto à possibilidade de sua alteração, visando, mediante todo este aparato de segurança institucional, proteger os princípios basilares que dão sustentação aos poderes estatais.

Porém, infelizmente, não é assim conosco. Pois a nossa Constituição tem se tornado o depósito de todas as matérias que nosso parlamento entende ser importantes.

Como se já não bastasse aos nossos Constituintes o fato de terem confeccionado um texto constitucional onde grande parte do que lá foi posto, não é matéria constitucional, além disso, esse texto vem sofrendo acréscimos e variações de toda ordem. Há quem diga, de forma jocosa, que a Constituição Federal brasileira de 1988 deveria ser classificada como um “periódico”. Bom, se “periódico” pode ser conceituado como um texto que é publicado em intervalos regulares de tempo, então essa afirmação não seria tão jocosa assim.

Até agora já são 99 emendas constitucionais, ou seja, falta uma para comemorarmos a centésima emenda constitucional. Devendo ser salientado que não estamos contabilizando nenhuma das 6 emendas constitucionais de revisão.

Pois bem, como a Constituição Federal está completando 30 anos de vida, então, fazendo um cálculo aritmético simples, verifica-se que a média é de uma emenda constitucional a cada 3 meses. Não podemos concluir outra coisa senão que, sim, a Constituição Federal brasileira de 1988 é um periódico, com publicação trimestral.

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Em outras palavras, cada nova edição dos livros de direito constitucional que é lançada, em 3 meses já será considerada desatualizada, tendo por paradigma apenas o texto constitucional em si, ou seja, sem levar em conta as alterações na jurisprudência constitucional (mutação constitucional).

A verdade é que o texto original da Constituição já foi alterado muito mais do que se pensa, pois as quase cem emendas constitucionais, não trazem apenas pequenas alterações, mas algumas delas são mais extensas que a já citada constituição norte americana. Ou seja, não é apenas a Constituição que é extensa, suas emendas também o são. Por exemplo, só a Emenda Constitucional 45/04 alterou a redação de 25 artigos, acrescentou outros 4 artigos, revogou 3 incisos, 1 alínea e 4 parágrafos.

Portanto, como dito, é muita coisa para o STF guardar.   

Porém, imaginemos que o artigo 102 da Constituição Federal não tivesse nenhum dos seus parágrafos, incisos e alíneas, contivesse apenas a seguinte redação: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, unicamente, a guarda da Constituição”. Ou seja, o texto da Lei Maior não atribuiria nada senão apenas a defesa da própria Lei Maior. Alguém poderia pensar que isso resolveria o problema de excesso de trabalho do nosso tribuna constitucional. Ledo engano. Pois, se este fosse o caso, ainda assim a missão do STF seria um trabalho imensurável, pois o texto constitucional brasileiro é de uma prolixidade inigualável.

Fazendo uma comparação, seriam necessárias 176 folhas de papel do tamanho A4 para imprimir nossa Constituição Federal, incluído também os ADCT. Se compararmos com outras compilações legais, perceberemos que a Lei Maior é maior também em extensão e não apenas em importância. Por exemplo, mantidas as mesmas formatações (tamanho e forma de letra, tamanho de papel, espaçamento entre linhas, margens, bordas e etc.), necessitaríamos de 124 folhas de papel para imprimirmos o Código de Processo Penal; 95 para o Código Penal; 89 para o ECA; 92 para o Código Eleitoral; 224 folhas para imprimirmos o atual Código de Processo Civil; 231 folhas para imprimirmos o atual Código Civil, com seus mais de dois mil artigos. Ou seja, a Constituição não é tão menor assim, pois seu texto corresponde a quase 80% do Código Civil.

Portanto, é muito texto para se guardar, de forma que, muito provavelmente, a atual Constituição brasileira seja o melhor exemplo de uma Constituição prolixa. Além disso, o texto constitucional é extenso não apenas em tamanho, mais também em assuntos. Classifica-se como um texto analítico. Se houvesse, apenas dentre os textos constitucionais considerados analíticos, uma subclassificação partindo dos textos menos analíticos para os mais, não há qualquer dúvida de que nossa Lex Mater encabeçaria os textos analíticos como a mãe dos analíticos.

É surpreendente o conteúdo de alguns dispositivos da Constituição, por exemplo:

  • O artigo 5º, com todos os seus 78 incisos, além dos 4 parágrafos, é o maior artigo do Mundo;
  • Está na Constituição o devido processo legislativo com o delineamento passo-a-passo de todo o trâmite para formação das leis e emendas constitucionais;
  • Há um único inciso com 24 alíneas (inciso IV do artigo 29), que vai de “a” a “x” (passando por “k” e pelo “w”), apenas para se estabelecer a quantidade de número de vereadores proporcional ao número de habitantes;   
  • O inciso XI do artigo 37 é composto por 168 palavras, duas vezes mais que o Preâmbulo;
  • Há dispositivos constitucionais com exatamente a mesma grafia: “Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião” (§3º do artigo 183 e parágrafo único do artigo 191);
  • Temos não apenas uma, mas duas modalidades de usucapião, inclusive com o detalhamento dos respectivos requisitos (arts. 183 e 191);
  • O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias é permanente e não transitório;
  • Requisitos para aposentadoria de servidor público;
  • Calendário de reunião do Congresso Nacional (art. 57, caput);

E isso sem falar em questões que, não obstante sejam importante, porém não necessitavam de guarida constitucional, tais como afirmar que o trabalhador tem participação dos lucros; que o advogado é indispensável à administração da justiça; atribuições do Ministério Público; da advocacia pública; da defensoria pública; atribuições das polícias inclusive da polícia ferroviária (não leia-se rodoviária) e guarda municipal; princípios gerais, e normas específicas, do sistema tributário, da atividade econômica, do orçamento público, da política urbana e agrícola; ciência e tecnologia; comunicação social; meio ambiente; família, jovem, idoso e índio; a criação da justiça desportiva; regulação da venda do álcool carburante; e etc.

O fato é que, em decorrência dessa mania de se constitucionalizar matérias que o império da lei infraconstitucional poderia muito bem resguardar, é possível, de forma direta ou indireta, encontrar qualquer assunto dentro da Constituição Federal de 1988. Garimpando-se com cuidado, encontra-se qualquer tema. E, não encontrando o assunto que se quer, basta invocar o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana que, via de regra, o caso deverá ser analisado pelo STF. Como dito no início, não é difícil encontrar um “gancho” para içar qualquer causa protocolada em 1º grau de jurisdição até a cúpula do Judiciário. A jurisdição constitucional não existe para isso.  

Em suma, a análise que podemos fazer desses 30 anos de constitucionalismo democrático é que criamos o “constitucionalismo periódico”; constitucionalizamos assuntos que não necessitam de guarida constitucional; e fizemos do STF a vala comum do Poder Judiciário, onde tudo vai desaguar. Sinceramente, desejamos que haja uma mudança no constitucionalismo brasileiro, e que nos próximos anos a Constituição contenha apenas o que de fato é constitucional, e que o STF seja de fato um tribunal constitucional.

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Sobre o autor
Agnelo Baltazar Tenório Férrer

Advogado militante. Servo de Jesus Cristo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERRER, Agnelo Baltazar Tenório Férrer. O Supremo e o constitucionalismo periódico brasileiro:: Uma emenda a cada três meses. Falta uma para 100. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5802, 21 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67170. Acesso em: 19 mar. 2024.

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