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A investigação criminal direta pelo Ministério Público

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23/07/2018 às 16:00
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O panorama da investigação criminal pelo Ministério Público no Brasil

Inicialmente, cumpre demonstrar que a Polícia não detém o monopólio das investigações criminais. O artigo 144, § 1º, IV, da Constituição Federal dispõe que compete à Polícia Federal exercer, com exclusividade, as funções de Polícia Judiciária da União.

Tal dispositivo não confere, de forma nenhuma, monopólio investigativo, uma vez que trata tão somente de explicitar que compete exclusivamente à Polícia federal ser a Polícia Judiciária da União.

Também constitui prova contundente de que a Constituição Federal não outorgou monopólio investigativo à Polícia a previsão contida no artigo 58, § 3º, da Carta Magna, mormente ao conferir poderes investigatórios às comissões parlamentares de inquérito.

Ademais, não se deve confundir o desempenho da atividade de Polícia Judiciária com a atividade de investigação criminal. Essa função de Polícia Judiciária - qual seja, a de auxiliar o Poder Judiciário - não se identifica com a função investigatória, qual seja, a de apurar infrações penais. Destarte, a Polícia Judiciária, e não a função investigativa criminal, é que seria atribuição exclusiva da Polícia Federal no âmbito da União e, por simetria, da Polícia Civil no plano estadual.

Lado outro, constitui rematado equívoco imaginar que o artigo 144, § 4º[16], da Constituição Federal poderia significar alguma espécie de monopólio investigativo da Polícia. Tal dispositivo não prevê exclusividade, monopólio ou titularidade privativa da investigação, o que se depreende de uma simples leitura.

Por sua vez, o artigo 4, parágrafo único, do Código de Processo Penal dispõe que a atribuição da Polícia referente à apuração de infrações penais não excluirá a de autoridades administrativas a quem por lei seja cometida a mesma função, o que comprova que outros órgãos também podem realizar investigações penais, não existindo, portanto, monopólio.

Internalizada a premissa de inexistência de monopólio investigativo da Polícia, é viável avançar e verificar os dispositivos constitucionais e legais através dos quais é possível extrair a possibilidade de investigação direta do Ministério Público.

Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o Ministério Público foi nitidamente fortalecido, uma vez que recebeu uma ampla gama de atribuições cíveis e criminais, cabendo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

A Constituição Federal estabeleceu que compete ao Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública.

De acordo com a teoria dos poderes implícitos (“implied powers”), quando a Constituição confere uma função a determinado órgão, haverá a atribuição implícita dos poderes e dos meios necessários para a execução daquele encargo, salvo limitação expressa. Surgida nos Estados Unidos da América, a teoria preconiza que a Constituição estabelece apenas as regras gerais e as funções dos órgãos e poderes constituídos, incumbindo-lhes a utilização dos meios necessários para a consecução das finalidades previstas.

Assim, para viabilizar o exercício da ação penal pública há que se atribuir implicitamente, como desdobramento necessário do artigo 129, I, da Constituição Federal, a possibilidade de o Ministério Público investigar.

Neste aspecto, não merece acolhida o argumento de que a Constituição Federal já explicitou o meio adequado ao estatuir a atribuição da Polícia de realizar investigação criminal, razão pela qual não seria adequada a invocação da teoria dos poderes implícitos.

Isto porque, em sua essência, a definição da teoria dos poderes implícitos está ligada originalmente à autorização de um segundo meio implícito, mormente em decorrência de o primeiro meio possível não atender às necessidades do órgão que abarca a finalidade a ser alcançada.

Destarte, a teoria é aplicável ao tema em análise em função da outorga privativa da ação penal pública ao Ministério Público (art. 129, I, da Constituição Federal de 1988). Se o Ministério Público pode o mais, que é propor a ação penal pública, também pode o menos, que é a investigação, a apuração das circunstâncias para que possa exercer, se for o caso, a ação penal pública.

Mauro Fonseca Andrade comenta, inclusive, que a teoria dos poderes implícitos já foi invocada pela doutrina francesa do século XIX para justificar a possibilidade de o Ministério Público realizar investigação criminal fora dos casos em que ele detinha legitimidade estatuída expressamente pela lei.[17]

A Constituição Federal de 1988 também contém outros dispositivos que permitem inferir a faculdade investigatória penal do Ministério Público. No artigo 129, VI, há previsão da atribuição de expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva.

Neste aspecto, a expedição de notificações e a requisição de informações e documentos são atividades eminentemente ligadas à investigação de algum fato, que tanto pode ocorrer no âmbito civil quanto na seara penal. Com efeito, quando a Carta Magna diz “procedimentos administrativos de sua competência”, significa que abrange todos aqueles procedimentos inerentes às funções ministeriais, o que, obviamente, abrange as funções penais.

Sobre o tema, é importante trazer à baila a lição de Hugo Nigro Mazzilli:

“No inc. IV do art. 129, da Constituição, cuida-se de procedimentos administrativos de atribuição do Ministério Público – e aqui também se incluem investigações destinadas à coleta direta de elementos de convicção para formar sua opinio delictis: se os procedimentos administrativos a que se refere este inciso fossem apenas de matéria cível, teria bastado o inquérito civil de que cuida o inc. III. O inquérito civil nada mais é que um procedimento administrativo de atribuição ministerial. Mas o poder de requisitar informações e diligências não se exaure na esfera cível; atinge também a área destinada a investigações criminais.”[18]

Portanto, ao conferir o poder de expedir notificações e de requisitar informações e documentos, o constituinte originário outorgou o poder de investigar, uma vez que estas atividades são tarefas de investigação.

E não seria possível excluir da dicção constitucional os procedimentos de investigação penal em razão de dois princípios comezinhos de hermenêutica jurídica: 1) onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir; 2) a lei não contém palavras inúteis. Se o inciso quisesse se referir apenas às investigações na seara cível, o inciso III já seria suficiente e o legislador teria sido explícito como o foi nas oportunidades em que pretendeu fazer referência apenas a procedimentos administrativos não penais.

No plano infraconstitucional, a Lei Complementar nº 75/93, em seu artigo 8, estabelece que, nos procedimentos de sua competência, o Ministério Público poderá:

“I - notificar testemunhas e requisitar sua condução coercitiva, no caso de ausência injustificada;

 II - requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades da Administração Pública direta ou indireta;

III - requisitar da Administração Pública serviços temporários de seus servidores e meios materiais necessários para a realização de atividades específicas; 

IV - requisitar informações e documentos a entidades privadas;  

V - realizar inspeções e diligências investigatórias; 

VI- ter livre acesso a qualquer local público ou privado, respeitadas as normas constitucionais pertinentes à inviolabilidade do domicílio;

 VII - expedir notificações e intimações necessárias aos procedimentos e inquéritos que instaurar;

VIII - ter acesso incondicional a qualquer banco de dados de caráter público ou relativo a serviço de relevância pública; 

IX - requisitar o auxílio de força policial.

Portanto, é perceptível que a LC nº 75 elencou diversas diligências de investigação que podem ser realizadas diretamente pelo Ministério Público nos procedimentos de sua competência, o que abrange os procedimentos destinados à investigação de infrações penais[19]. Esta interpretação tem plena compatibilidade com as funções institucionais do Ministério Público.

Cumpre asseverar, ainda, que a LC nº 75 prevê atribuição investigativa do Ministério Público para a apuração de infrações penais praticadas por seus membros.

A Lei nº 8.625/93 contém prerrogativas semelhantes. No artigo 26, I, há a seguinte previsão:

“Art. 26. No exercício de suas funções, o Ministério Público poderá:

I - instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes e, para instruí-los:

a) expedir notificações para colher depoimento ou esclarecimentos e, em caso de não comparecimento injustificado, requisitar condução coercitiva, inclusive pela Polícia Civil ou Militar, ressalvadas as prerrogativas previstas em lei;

b) requisitar informações, exames periciais e documentos de autoridades federais, estaduais e municipais, bem como dos órgãos e entidades da administração direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;

c) promover inspeções e diligências investigatórias junto às autoridades, órgãos e entidades a que se refere a alínea anterior

A lei estabelece expressamente a prerrogativa de instaurar procedimentos administrativos pertinentes nos quais as diligências investigativas poderão ser realizadas. E é evidente que os procedimentos investigatórios criminais são pertinentes às funções institucionais do Ministério Público. Cumpre frisar que na primeira parte o dispositivo tratou do inquérito civil e outras medidas análogas, razão pela qual quando menciona “outros procedimentos administrativos pertinentes” quer fazer referência a procedimentos investigativos diversos, entre os quais estão evidentemente incluídos aqueles relacionados à investigação criminal.

Considerando a possibilidade de investigação do Ministério Público, o Conselho Nacional do Ministério Público editou a resolução nº 181/2017[20], que disciplina o procedimento investigatório criminal.

Sobre o tema, não merece prosperar o argumento crítico de que uma resolução viola a lei ao estabelecer a atribuição investigativa do Ministério Público. Neste caso, a resolução representa simplesmente a regulamentação da investigação que já decorre naturalmente de dispositivos constitucionais e legais.

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Ou seja, no tocante ao tema da investigação criminal, a resolução do Conselho Nacional do Ministério Público não cria o direito no ordenamento jurídico, mas simplesmente regulamenta de maneira pormenorizada e impõe limites à atribuição investigativa estabelecida pela Constituição Federal e pelas leis federais.

Ademais, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu que as resoluções do Conselho Nacional de Justiça – e, deste modo, igualmente, as do Conselho Nacional do Ministério Público - possuem “caráter normativo primário” (ADC 12-MC).

Se o cenário normativo contém o supedâneo da investigação direta do Ministério Público, é necessário explicitar o entendimento jurisprudencial sobre o tema. O Supremo Tribunal Federal reconhece que o Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado.[21]

Analisando a perspectiva à luz de questões práticas, também é possível vislumbrar a necessidade de conferir ao Ministério Público o poder investigatório. Neste ponto, a primeira questão diz respeito às infrações penais praticadas por policiais. Em tais casos, se o Ministério Público não pudesse investigar, haveria um sério comprometimento das investigações com elevado risco de impunidade.

Também nas infrações penais praticadas por funcionários públicos e agentes políticos de elevada hierarquia na composição constitucional da República há risco de comprometimento da eficácia da investigação, uma vez que as Polícias Federal e Civil estão subordinadas aos respectivos Poderes Executivos, o que torna as Polícias mais sensíveis à influência política e a pressões políticas e institucionais no curso da apuração dos fatos.

Neste quadro, a independência do Ministério Público representa aspecto relevante para a eficácia dessas investigações mais complexas que envolvem funcionários públicos e agentes políticos de elevada envergadura na ordem constitucional.

Em outra perspectiva, é inegável que vivemos um período em que as investigações policiais não conseguem apurar a autoria da imensa maioria dos crimes ocorridos no território nacional. Embora as estatísticas não sejam precisas, é fato que a taxa de elucidação de crimes no território nacional é irrisória, o que gera uma impunidade extremamente perniciosa.

Há inúmeras investigações que nem sequer são iniciadas pela Polícia, inquéritos policiais em curso há muitos anos sem que nenhuma diligência concreta tenha sido realizada, cidadãos que reclamam da recusa dos órgãos policiais em investigar determinados fatos, entre outras situações que comprovam a necessidade da investigação ministerial. Cumpre frisar, ainda, as incontáveis situações nas quais as requisições ministeriais não são cumpridas pela Polícia sem nenhuma justificativa plausível.

Diante deste painel, não se afigura razoável defender o monopólio investigativo da Polícia, desconsiderando o verdadeiro quadro de impunidade que grassa soberano no país e o reclame da sociedade em geral acerca da falta de efetividade do trabalho policial para solucionar a contento toda a demanda existente.

Noutro rumo, se há relativo consenso no sentido de que a investigação pode servir para preparar a ação penal, é natural que o Ministério Público possa investigar. Não há empecilho para que o órgão do Parquet que participou da investigação exerça eventual ação penal, se for o caso.[22]

Neste ponto, não tem procedência o argumento de que haveria parcialidade na investigação, o que, por consequência, desautorizaria a realização de diligências investigativas diretamente pelo Parquet.

Inicialmente, é válido frisar que a investigação não deve ser feita exclusivamente para a acusação. Há uma apuração dos fatos e de todas as suas circunstâncias, de modo que o membro do Ministério Público, amparado também pela independência funcional, não tem motivo para imprimir um enfoque acusatório visando dar um rumo específico à investigação, desconsiderando as evidências ou as linhas investigatórias mais plausíveis.

Lado outro, este argumento é enfraquecido, pois, partindo dessa premissa de parcialidade, o risco de condução dos rumos da investigação seria intrínseco à legitimidade investigatória conferida a qualquer autoridade pública (Polícia Judiciária, Juiz-Instrutor, etc.), e não apenas ao Ministério Público.

De igual forma, o argumento é fragilizado diante da constatação realística de que, em muitos casos concretos, o Ministério Público, quando chamado a intervir na investigação, adota uma postura de contenção do enfoque mais incisivo e acusatório imprimido pela Polícia.

Impende notar que a possibilidade investigatória do Ministério Público não retira a atribuição da Polícia. Neste aspecto, os críticos da investigação ministerial invocam o problema prático da eventualidade de investigações paralelas pelas duas instituições.

Se é certo que é de bom alvitre reduzir quaisquer fontes de insegurança jurídica, não menos correto é que tal intento pode ser alcançado de outras formas, não servindo tal circunstância para justificar a retirada de uma atribuição natural e intrinsecamente ligada à atividade ministerial.

Para tanto, visando aplacar eventuais problemas da duplicidade de investigações, a doutrina aponta algumas propostas concretas possíveis: 1) manutenção da primeira investigação que houver sido instaurada, com o consequente arquivamento daquela que foi instaurada posteriormente, seja ela presidida pelo Ministério Público, seja pela Polícia; 2) possibilidade de avocação da investigação policial pelo Ministério Público quando existir motivo relevante e baseado no interesse público; 3) instituição de um sistema de seleção de casos nos quais o Ministério Público conduziria diretamente as investigações de alguns crimes, notadamente os mais graves e contra os bens jurídicos de maior importância, com o apoio da Polícia, inclusive permitindo a configuração de um modelo semelhante ao modelo norte-americano nestes delitos selecionados; 4) implantação de um trabalho integrado e planejado entre a Polícia e o Ministério Público com a definição de estratégias, metas, planos e acordos quanto às investigações, levando-se em conta as necessidades e as particularidades de cada localidade geográfica.

Portanto, é possível concluir que o ordenamento jurídico brasileiro prevê expressamente a investigação direta pelo Ministério Público, o que é natural no sistema processual penal adotado no território nacional.

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Sobre o autor
Péricles Manske Pinheiro

Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios,

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHEIRO, Péricles Manske. A investigação criminal direta pelo Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5500, 23 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67549. Acesso em: 26 abr. 2024.

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