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Coisa julgada: limites objetivos e recorribilidade das questões incidentalmente decididas na sentença

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03/11/2018 às 17:33
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3 – EFEITOS E RECORRIBILIDADE

3.1. Efeitos Positivo e Negativo da Coisa Julgada

Assevera José Federico Marques[30] que:

“A res judicata marca, inconfundivelmente, o ato jurisdicional, visto que ali se concentra, em sua plenitude, o comando emergente da sentença tornado estável pela imutabilidade de que passa a revestir-se dentro e fora do processo”

As clássicas palavras do festejado processualista referem-se ao chamado efeito negativo atribuído à autoridade da coisa julgada, em razão do qual não é dado às partes e/ou ao juiz, reestabelecer ou mesmo modificar a solução de mérito encontrada pelo judiciário, dentro ou fora do processo em que fora proferida, preclusos ou vencidos os recursos cabíveis.

É dizer, que uma vez transitada em julgado a decisão de mérito, e acobertados seus comandos dispositivos pela coisa julgada, ressalvadas hipóteses muito específicas, como singular efeito inerente ao dever de pacificação, não há se falar em modificação daquela decisão.

Segue José Federico Marques[31] para dizer, ainda, que:

“A res iudicata se insere, assim, na ordem normativa, fixando a regra concreta que deve regular a situação contenciosa em que incidiu o julgamento, compondo definitivamente o conflito de interesses a que deu lugar a pretensão do autor”

Refere-se o inoxidável autor ao chamado efeito positivo da coisa julgada, que vincula as partes e também o juiz à observância da decisão de mérito que deu solução à lide, impedindo nova discussão sobre os mesmos fatos, mesmos pedidos e mesma causa de pedir, obrigando-os ao acatamento dos comandos dispositivos insertos na solução dada ao processo de conhecimento que deu origem à respectiva decisão.

Sobre o assunto, leciona Humberto Theodoro Junior:

“Essa situação jurídica cristalizada pela coisa julgada caracteriza-se por dois aspectos fundamentais: de um lado, vincula definitivamente as partes; de outro, impede, partes e juiz, de restabelecer a mesma controvérsia não só no processo encerrado, como em qualquer outro.”

E conclui dizendo que:

“Portanto, quando o art. 502 fala em indiscutibilidade e imutabilidade da sentença transitada em julgado refere-se a duas coisas distintas: (i) pela imutabilidade, as partes estão proibidas de propor ação idêntica àquela em que se estabeleceu a coisa julgada; (ii) pela indiscutibilidade, o juiz é que em novo processo, no qual se tenha de tomar situação jurídica definida anteriormente pela coisa julgada como razão de decidir, não poderá reexaminá-la ou rejulgá-la; terá  de tomá-la simplesmente como premissa indiscutível. No primeiro caso atua a força proibitiva (ou negativa) da coisa julgada, e, no segundo, sua força normativa (ou positiva).” 

3.2. Preclusão x Efeito Preclusivo da Coisa Julgada

Prescreve o Art. 508 do NCPC:

Art. 508.  Transitada em julgado a decisão de mérito, considerar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e as defesas que a parte poderia opor tanto ao acolhimento quanto à rejeição do pedido.

Por sua vez, dispõe o Art. 507 do mesmo diploma que “É vedado à parte discutir no curso do processo as questões já decididas a cujo respeito se operou a preclusão”.

Mencionados dispositivos estão a tratar, respectivamente, do efeito preclusivo da coisa julgada e da preclusão.

Apesar das semelhanças conceituais e semânticas, referidos institutos não se confundem, merecendo sua distinção um singelo espaço neste trabalho, especialmente porque o primeiro tem inegável repercussão na prática forense moderna, em razão das alterações trazidas pelo novo código.

Humberto Theodoro Junior[32] explica que “embora não se submetam as decisões interlocutórias ao fenômeno da coisa julgada material” nem por isso gozam elas de livre discutibilidade e alterabildiade. Tampouco as faculdades processuais à disposição das partes podem ser praticadas ao tempo, modo e forma por elas livremente elegidas, sendo certo que sua prática ou inércia em fazê-lo, hão de igualmente tolher-lhes o direito de renovar ou praticar o ato.

Em casos tais, ocorre a chamada preclusão, fenômeno do qual defluem consequências semelhantes às da coisa julgada formal.[33]

Outrossim, não podem as partes ressuscitar em um novo processo, entre os mesmos litigantes e com os mesmos pedidos e causa de pedir, argumentos já resolvidos ou que poderiam ter sido ventilados em processo anterior, este já transitado em julgado materialmente. 

A bem da verdade, a preclusão é fenômeno eminentemente endoprocessual, ao passo que os efeitos da coisa julgada dizem respeito ao devir.

É dizer, que muito embora o desdobramento do conceito de coisa julgada em formal e material, aquela também conhecida como pressuposto desta, há que se ter em mente que a preclusão, como perda, extinção ou consumação do direito ao exercício de uma faculdade processual, cujo objetivo é propriamente o de fechar as diversas fases do procedimento, é fenômeno que projeta efeitos somente para dentro de determinada relação processual. Na lição de Assumpção Neves:

“A preclusão é fenômeno que merece ser compreendido como a perda da possibilidade da prática de alguma ato processual pelo transcurso de um prazo (preclusão temporal), pela sua prática incompleta ou equivocada (preclusão consumativa), ou pela prática de algum ato incompatível com o que deveria ter sido praticado (preclusão lógica).”

Já o chamado efeito preclusivo da coisa julgada é fenômeno que torna defesa a discussão do deduzido, e irrelevante a arguição do dedutível em processo posterior, triplamente identificado (mesmas partes, pedido e causa de pedir), este último acobertado pela autoridade da coisa julgada material. É verdadeira positivação do antigo brocardo tantum iudicatum quantum disputatum vel disputari debeat. Em outros países, tal entendimento deu azo à criação do chamado julgamento implícito, entendimento repelido por nosso ordenamento, que atribui o indigitado efeito a denominação de efeito preclusivo da coisa julgada. 

Nos dizeres de Elpídio Donizetti:

“Transitada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido (art. 508). Trata-se da chamada eficácia preclusiva extraprocessual da coisa julgada, efeito exclusivo, evidentemente, da res iudicata material. Consoante Gustavo Filipe Garcia, tal preclusão é dotada de especificidade, porquanto opera não no âmbito interno do processo, mas fora dele.                              

3.3 Recorribilidade e Coisa Julgada

Muito embora parte da doutrina entenda (e remansoso seja o communis opinio nesse sentido), que com a irrecorribilidade, e portanto a indiscutibilidade e imutabilidade das decisões de mérito sejam efeitos da coisa julgada, quer nos parecer que essa não é o melhor entendimento da questão.

Não se pode negar que em dado momento, precluida a faculdade recursal, ou esgotadas as suas vias, e (nos casos em que aplicável) também superada a inelutável remessa necessária, a proferida decisão de mérito passa por relevante metamorfose, tanto no plano da eficácia, quanto da existência, mormente aos olhos do ordenamento jurídico pátrio, em que os efeitos da sentença, via de regra, passam a surtir tão somente após o trânsito em julgado.

Este sistema já era adotado pelo CPC/73, e apesar de fortemente combatido durante a tramitação do novo diploma no congresso, foi encampado pelo NCPC, como revela o Art. 1.012, que a despeito de elencar também as exceções, e justamente por isso, não deixa margem de dúvidas quanto à regra adotada pelo legislador, no sentido de que somente operam-se os efeitos da sentença, uma vez transitada a guerreada decisão em julgado, ou, ao menos, em tese, superada a via recursal ordinária.

Explica Barbosa Moreira, todavia, que os efeitos da sentença não guardam relação umbilical com a autoridade de coisa julgada. Seja porque aquela pode ou não existir sem essa, seja porque esta não projeta seus efeitos sobre aquela, mas sobre o comando sentencial propriamente dito.[34]

Ensina o festejado processualista, ainda, que tampouco é a autoridade de coisa julgada que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito. Ao revés, referidas qualidades se não preexistem, passam a existir no mesmo instante em que nasce também a coisa julgada:

“...não é a coisa julgada material, em nosso modo de ver, que torna imutável e indiscutível a sentença, como se entre "coisa julgada material", de um lado, é "imutabilidade e indiscutibilidade", de outro, houvesse relação de causa e efeito - o que a rigor só seria possível se a coisa julgada material preexistisse à imutabilidade e à indiscutibilidade. Se algo torna imutável e indiscutível a sentença, no sentido de que a faz passar a semelhante condição, será antes o trânsito em julgado (assim entendida a preclusão das vias recursais e, nos casos do art. 475, também o exaurimento do duplo grau de jurisdição) do que propriamente a coisa julgada material. Quanto a esta, só começa a existir no mesmo instante em que a sentença deixa de ser mutável e discutível, de modo que logicamente - repita-se - não há como atribuir-lhe a virtude de torná-la tal.” 

Todo modo, nos parece possível afirmar, com certa segurança, que não coexistem, a respeito do mesmo dispositivo sentencial, recorribilidade e coisa julgada. É dizer que, se há um, o outro não tem lugar, justamente porque, como visto, a autoridade de coisa julgada (consectária que é da indiscutibilidade e irreformabilidade da decisão de mérito), esxurge somente após o trânsito em julgado, que por sua vez pressupõe a preclusão das vias recursais, ou seu esgotamento, bem como a superação da remessa necessária, se o caso for.

Não se deslembre, contudo, forte nos ensinamentos de Candido Rangel Dinamarco[35] a respeito dos capítulos de sentença, máxime porque tantum devolutum quantum appellatum[36], que podem coexistir dispositivos de uma sentença transitados em julgado (logo aptos a surtir efeito) devidamente acobertados pela autoridade da coisa julgada, com outros, oriundos da mesma decisão, que em razão de impugnação parcial do decisum, encontram-se ainda mutáveis e alteráveis.

“Sendo a apelação parcial, a devolução abrangerá apenas a matéria impugnada”[37], a ensejar, inclusive, a requerimento da parte, a execução definitiva do julgado não impugnado.

Certo é que, para evitar o trânsito em julgado, afastando assim a formação de coisa julgada, deve a parte interpor o competente recurso.

O sistema recursal, por sua vez, deve obediência a uma série de normas disciplinadoras dos limites e formas deferidas ao interessado, pelo que somente será conhecido e processado o recurso que atender aos competentes requisitos de admissibildiade. A este respeito, ensina Elpídio Donizetti que:

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“De acordo com parte da doutrina, os requisitos de admissibilidade dos recursos dividem-se em subjetivos e objetivos. Os subjetivos são a legitimidade e o interesse. Os requisitos objetivos são o cabimento, a tempestividade, o preparo, a regularidade formal e a inexistência de fato extintivo ou impeditivo do direito de recorrer...”

Em se tratando de recurso de apelação, por exemplo, uma vez interposto e preenchidos o competentes requisitos de admissibilidade, operam-se desde logo os efeitos devolutivo e suspensivo, ex vi legis, impedindo o trânsito em julgado e a formação de coisa julgada a respeito da matéria impugnada. Não interposto recurso, ou esgotados todos eles, e/ou (nos casos cabíveis) superado o julgamento da remessa necessária, desde logo transita em julgado a decisão, tornando-se estável a norma jurídica concreta, defesa nova discussão, entre as mesmas partes, do mesmo pedido e causa de pedir.

Ocorre que diante das alterações trazidas pelo NCPC com relação à extensão da autoridade de coisa julgada às soluções dadas, nas decisões de mérito, às questões prejudiciais incidentalmente decididas, independentemente de provocação e/ou vontade das partes, aliada à razoável dúvida quanto à necessidade de expressamente lançar o juízo referida solução em determinada parte do texto do decisum, há motivo bastante a ensejar uma análise mais detida dos operadores do direito, máxime quanto à efetiva legitimidade e interesse recursal nos casos em que, a despeito de ter acolhido seus pedidos, se veja a parte prejudicada com decisão desfavorável de questão prejudicial incidentalmente decidida, porventura fagocitada desapercebidamente pela autoridade em questão, impedindo sua futura discussão.

É dizer, que mesmo vitoriosa na questão principal, pode a parte se ver diante de decisão incidental desfavorável, decisão esta que, em certos casos, acobertar-se-á pelos efeitos da coisa julgada, impedindo sua futura discussão entre as mesmas partes, havendo por prejudicar o suposto vitorioso.

Daí pergunta-se: pode a parte recorrer para reforma de decisão quanto à questão prejudicial incidentalmente decidida, ainda que a questão principal tenha sido decidida a seu favor?

3.4 Questão Prejudicial e Coisa Julgada: Recurso sem sucumbência?

Como visto, a relação entre questão prejudicial e coisa julgada ganhou inegável força diante do novo regramento trazido no bojo do CPC/15. De acordo com a nova legislação, não só a questão principal, mas também as questões prejudicais incidentalmente decididas, quando preenchidos determinados requisitos legais, farão coisa julgada entre as partes em que for proferida, impedindo sua futura discussão em nova demanda.

Num primeiro momento, a novidade pode parecer desimportante, haja vista que também sob a égide do revogado CPC/73 tal situação afigurava-se possível. Ocorre que sob a luz da legislação em vigor, este fenômeno (de extensão da coisa julgada às questões prejudiciais incidentalmente decididas) independe da vontade e provocação das partes, tampouco de expressa manifestação judicial neste sentido, bastando que sejam preenchidos os requisitos elencados nos incisos do §1° do Art. 503.

Imaginemos, verbi gratia, processo pelo rito comum em que se discute a exigibilidade de dada obrigação contratual. O autor ingressara em juízo buscando compelir o réu ao adimplemento de obrigação por ele não cumprida. Em sua defesa, o requerido assevera, prejudicialmente, a invalidade do contrato havido entre as partes, por vício na manifestação de sua manifestação de vontade quando da formação do mesmo, e, no mérito, sustenta ser a obrigação inexigível, por manifesta abusividade especificamente da cláusula contratual que a estipulara.

Neste caso hipotético, à míngua da oferta de pedido contraposto ou reconvenção por parte do réu, temos que a validade ou não do contrato será analisada incidentalmente pelo juiz, já que prejudicial à solução a ser encontrada quanto à questão principal (exigibilidade da obrigação contratual inadimplida). Sendo assim, desde que haja prévio e efetivo contraditório a seu respeito, far-se-á coisa julgada também a respeito da decisão proferida quanto a esta questão.

Nesta ordem de ideias, imagine-se que o magistrado entenda válido o contrato em questão, por inexistência do aventado vício, porém, julgue improcedente o pedido exordial, porque efetivamente abusiva a cláusula que estipulara a obrigação então exigida.

É dizer, julga improcedente a ação proposta pelo Autor, acatando a defesa de mérito oferecida pelo réu, que, portanto, sai vitorioso, ao mesmo tempo em que afasta a questão prejudicial apresentada pelo requerido, atestado a inexistência do vício a que fizera alusão a contestação, julgando válido o contrato.

Como visto, a autoridade de coisa julgada haverá de recair também sobre a questão incidentalmente decidida, e não somente àquela principal, de modo que, em futura ação não poderá tanto réu quanto autor discutirem novamente a existência ou não daquele vício de consentimento, porquanto definitivamente decida a questão no aludido processo.

Assim, se entende o réu que inválido o contrato, parece-nos imprescindível que ele recorra da decisão, que, a princípio, lhe é favorável.

Além da iminente possibilidade da questão passar em julgado por um descuido do interessado, que apesar de hipoteticamente vitorioso sai igualmente prejudicado, em razão do teor do julgamento da questão incidental, é também duvidosa a efetiva possibilidade deste recorrer.

Como visto, a possibilidade recursal está adstrita ao preenchimento de alguns pressupostos. Tratando especificamente da legitimidade, dispõe o Art. 996 que o recurso pode ser interposto: (i) pela parte vencida; (ii) pelo terceiro prejudicado; e (iii) pelo Ministério Público.

Tratando do tema, assevera Cassio Scarpinela Bueno que:

“A legitimidade da parte depende, como o próprio dispositivo destaca, de seu interesse. Não basta ser parte para recorrer, ela tem que ser, ainda que em parte, prejudicada para tanto. Sem o interesse recursal – a necessidade de recorrer para remover o prejuízo causado por decisão judicial -, é insuficiente que a parte ostente legitimidade.”[38] 

Já o processualista Daniel Amorim Assumpção Neves, tratando especificamente desta questão, e dissertando sobre a problemática já à luz do NCPC, nos lembra que tal como assevera Scarpinela Bueno, o interesse recursal está intimamente ligado à noção de sucumbência. Lembra-nos o renomado processualista, todavia, que nem sempre dependerá a possibilidade recursal de sucumbência do legitimado, máxime quando tratar-se do Ministério Público ou de terceiro prejudicado.

“A doutrina tradicionalmente estuda o fenômeno do interesse de agir à luz da existência de sucumbência, o que geraria a necessidade na utilização do recurso. Essa associação decorre da concepção de que não deve existir recurso sem um prejuízo, um gravame, gerado pela decisão. Como o termo sucumbência deve ser entendido como frustração de uma expectativa inicial, resta claro que, havendo sucumbência no processo, terá havido o gravame ou a lesão exigida para a interposição do recurso. Essa construção, entretanto, deve ser analisada com o devido cuidado.”[39]

Note-se que com relação ao terceiro prejudicado, não há se falar em sucumbência através do resultado do processo, ensina o citado professor, já que sequer fazia ele parte da relação processual ao tempo da prolação da decisão, pelo que não há se falar em frustração de um expectativa inicial, ao menos em termos jurídicos. Já quanto ao interesse Recursal do Ministério Público, quando atuante na condição de custus legis, assevera o professor que seu interesse recursal “ ...está pressuposto na outorga de legitimação, sendo dispensável o preenchimento desse requisito para esse legitimado recursal, o que só parece correto quando funciona como fiscal da ordem jurídica”.

Contudo, escanteada a problemática em relação a aqueles sujeitos, resta vigorosa dúvida com relação à problemática em torno da legitimidade recursal da parte em casos tais como o citado alhures, em que a despeito de sair vitoriosa com relação à questão principal, fora ela prejudicada por decisão sobre questão prejudicial incidental.

Em casos tais, assevera Assumpção Neves que:

“Quando o legitimado recursal é a parte, é imprescindível distinguir sucumbência formal e sucumbência material. Por sucumbência formal se entende a frustração da parte em termos processuais, ou seja, a não obtenção por meio da decisão judicial de tudo aquilo que poderia ter processualmente obtido em virtude do pedido formulado ao órgão jurisdiconal. Nesse sentido será sucumbente formal o autor se este não obtiver a procedência integral de seu pedido e o réu se não obtiver a improcedência integral do pedido do autor. Na parcial procedência do pedido haverá sucumbência recíproca.”[40]

E segue o autor:

“A sucumbência material, por sua vez, se refere ao aspecto material do processo, verificando-se sempre que a parte deixar de obter no mundo dos fatos tudo aquilo que poderia ter conseguido com o processo. A análise nesse caso nada tem de processual, fundando-se no bem ou bens da vida que a parte poderia obter em virtude do processo judicial e que não obteve em razão da decisão judicial. Essa discrepância entre o desejado no mundo prático e o praticamente obtido no processo gera a sucumbência material da parte.”

No exemplo por nós colacionado anteriormente, em que o réu logra obter a improcedência total dos pedidos do Autor através de sua defesa de mérito, mas tem sua defesa prejudicial de mérito afastada, acabando com culminar na declaração judicial de inexistência  do apontado vício de consentimento, quer nos parecer que a despeito de formalmente não sucumbente (já que será o pedido autoral julgado totalmente improcedente), não obteve o réu tudo aquilo que esperava lograr, na prática.

Considerando, como esposado anteriormente, que não há se falar em lançamento desta decisão incidental no espaço físico destinado à parte dispositiva da sentença, e que, por tanto, a questão subsistirá tão somente como fundamento da decisão de mérito, poderia o vitorioso réu apelar desta sentença, para atacar e alterar sua fundamentação? Em caso afirmativo, tratar-se-ia de exceção à regra de legitimidade recursal, possibilitando que a parte recorra tão somente para alterar a fundamentação, ainda que não sucumbente?

Para responder à questão, Assumpção Neves se socorre de exemplo análogo ao por nós apresentado:

“Mathias ingressa com ação de alimentos contra Felipe, que em sua contestação alega não ser pai do autor, criando, assim, uma questão prejudicial referente à paternidade. Preenchidos os requisitos do art. 503, §§ 1º (positivos) e 2º (negativos), o juiz reconhece a paternidade de Felipe mas julga improcedente o pedido, entendendo que o autor tem até mais condições de se manter do que o réu.”

Note-se que tal como no exemplo por nós trazido, neste outro o réu também logrou obter a total improcedência dos pedidos autorais, e justamente à míngua de reconvenção, a questão da filiação será decidida incidenter tantum, e fará indissociável parte da fundamentação, já que prejudicial à questão principal.

Para hipóteses tais, segundo o Assumpção Neves, “O Novo Código de Processo Civil amplia as hipóteses de interesse recursal para se modificar apenas a fundamentação de decisão, o que passa a ser possível, portanto, para ações individuais”.

A solução encontrada pelo autor, apesar de singela, revela a profundidade dos impactos da novel legislação, e aponta no sentido de que a despeito de formalmente vitorioso, o réu será sucumbente e terá sim legitimidade recursal, ainda que tão somente para modificar tão somente a fundamentação da decisão guerreada, considerando sua natural aptidão à formação de coisa julgada, já que “apesar de vitorioso, é inegável o interesse recursal de Felipe de recorrer contra a decisão da questão prejudicial que o reconheceu como pai de Mathias”

“Nesse caso, parece que a sucumbência, com força de coisa julgada, pode vir somente da fundamentação da decisão, de forma que a parte vitoriosa no mérito terá interesse recursal exclusivamente para modificá-la.”[41]

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORTEZ, Murilo. Coisa julgada: limites objetivos e recorribilidade das questões incidentalmente decididas na sentença. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5603, 3 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67618. Acesso em: 23 abr. 2024.

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