Em erudito ensaio, que lhe descobre para logo a segurança da ciência do Direito e acrisoladas noções de Moral Prática, propõe o autor (Juiz Alexandre Semedo de Oliveira) engenhosa questão, a saber: é compatível com o ofício de julgar o sentimento de misericórdia e indulgência?
Para indicar a matriz de seu pensamento, declara formar entre aqueles que proclamam não haver lugar para misericórdia e perdão “sob a toga de um juiz”. Tudo isto diz o ilustre articulista, forte no simbolismo da Cruz e na celebração da Páscoa.
Peço-lhe vênia para, terceiro interessado, chegar a seu pé e tomar a mão sobre tema de tanto alcance.
Da função precípua do juiz tratou já, nos albores da era cristã, o guapíssimo jurisconsulto Ulpiano, em cláusula que a posteridade conservou entre os seus maiores tesouros: “Jus suum cuique tribuere” (Dig. 1.1.10.1).
Na esfera criminal, levando a mira em reparar o direito violado, resume-se a função judicante, de ordinário, em infligir o castigo ao infrator. E não há que objetar. Fale por todos o Pontífice Máximo do Direito Penal Brasileiro: “A pena traduz primacialmente um princípio humano por excelência, que é o da justa recompensa: cada um deve ter o que merece” (Nélson Hungria, Novas Questões Jurídico-Penais, p. 131).
A essa conta, nenhum sujeito imputável haverá de subtrair-se ao rigor da lei, formoso corolário de premissa lógica reproduzido pelo Des. Volney Corrêa Leite de Moraes Jr., saudoso colega e amigo (citado pelo autor do ensaio), em livro bem reputado e de muita originalidade[1]: “Todo homem deve saber do fundo de seu coração o que é certo e o que é errado (Alberto Oliva, filósofo)”.
Em pontos de criminalidade, não transigia realmente Volney com os postulados — que denominava “laxismo penal” — que figuram em barda nas cartilhas espúrias e contrafeitas de pseudodireitos humanos[2].
Ninguém ignora, salvo se inteiramente hóspede na sociologia jurídica e refratário às chispas do bom-senso, que a impunidade é poderoso incentivo do crime.
Suposto seja a pena o estipêndio do delito, não parece bem deva sempre o magistrado agravá-la. Eis por que, segundo tradicional usança, provectos e honrados Juízes — quando acertava punirem delinquentes (empedernidos até) — nunca lhes esquecia ponderar, nas conchas da balança de Têmis, assim as partes positivas e boas como as negativas e iníquas.
Que outra coisa, com efeito, ensinou o eloquente Cíceroà Humanidade, quando gravou com estilete o imortal prolóquio “Summum jus, summa injuria”[3], senão que o exagero punitivo contravém de rosto ao ideal de justiça, e que, pelo contrário, ao justo concreto não repugna alguma vez o estalão da indulgência?!
Poderá o juiz, dado que concorram circunstâncias ou razões particulares de vulto, assentar na fronte do réu o ferrete do castigo sem, todavia, recusar-lhe um como galardão de merecimento.
Aliás, a letra mesma da lei é a que o obriga (não só lhe inculca) dispensar benefício ao réu que espontaneamente confessa a autoria do crime (art. 65, nº III, alínea d, do Cód. Penal).
Há, deveras, alguma coisa de nobre e louvável nisto de o réu, perante o magistrado que o interroga, preferir — ainda que com prejuízo para si mesmo e sem alegar com o prestígio de causa descriminante — pôr-se ao lago da Justiça e, sem rebuços nem ambages, confessar, arrependido, a prática do ilícito penal que lhe imputa o órgão da Acusação!
Terá jus não só à redução da pena: será força que dele também se amerceie a Justiça e lhe defira benefícios (“verbi gratia”: regime especial de cumprimento de pena, substituição da pena privativa de liberdade, etc.).
Aqui me pedirá o inteligente e amável leitor lhe exiba a carta credencial para a outorga de semelhantes obséquios.
Desço, pois, ao particular e transcrevo, por amor de aplacar possíveis escrúpulos da crítica severa, estas sublimes palavras de um de nossos maiores processualistas:
“É certo que o juiz tem, diante de si, a lei. Mas a dificuldade não termina aí; ao contrário, aí é que ela começa: primeiro porque a lei procura ser igual para todos, mas as condições pessoais exigem tratamento individualizado, que só o juiz pode dar. A lei não pode existir intuitu personae, mas a sentença pode. A lei põe o problema em equação; mas quem dá o valor das incógnitas é o juiz. Só ele pode estabelecer a real, e não apenas fictícia, igualdade de tratamento, nivelando o poderoso e o deserdado, o rico e o pobre. A igualdade perante a lei é puramente lírica se não se concretiza na atuação judicial” (Hélio Tornaghi, Curso de Processo Penal, 1980, vol. I, p. XII).
Com a excelência desta doutrina concerta a lição do venerando Magistrado Eliézer Rosa, a quem os colegas reconhecem e proclamam como seu muito vivo paradigma:
“Daí a necessidade de o Juiz do nosso tempo e para o nosso tempo saber que deve praticar o razoável e não o puramente racional” (Dicionário de Processo Civil, 2a. ed., p. 261).
E mais estas, dignas só de um elevado espírito, como foi Goffredo Telles Junior, mestre em Direito e sábio:
“Na interpretação das leis, mais importante do que o rigor da lógica racional é o entendimento razoável dos preceitos, porque o que se espera inferir das leis não é, necessariamente, a melhor conclusão lógica, mas uma justa e humana solução” (A Folha Dobrada, 1999, p. 163).
Ajunto ainda este florilégio de conceitos, por onde se conhecerá que, na judicatura criminal — ressalvadas e atentas algumas circunstâncias de peso —, moderação e castigo não são ideias que se implicam:
I. “Não estejais com os que agravam o rigor das leis, para se acreditar com o nome de austeros e ilibados. Porque não há nada menos nobre e aplausível que agenciar uma reputação malignamente obtida em prejuízo da verdadeira inteligência dos textos legais” (Rui Barbosa, Oração aos Moços, 1a. ed., p. 43).
II. “Nenhum homem deve envergonhar-se de ter coração! Não fica mal a juízes mostrar que o têm! Julgar o contrário leva a muitas vaidades e inconcebíveis erros!” (Pedro Eurico, Figuras do Passado, 1915; Lisboa. Pedro Eurico era o pseudônimo do insigne juiz português Augusto Carlos Cardoso Pinto Osório (1840-1920), presidente do Supremo Tribunal de Justiça).
III. “Deve o rigor do castigo temperar-se sempre com a moderação da clemência” (Manuel Bernardes, Nova Floresta, 1728, t. V, p. 466).
IV. “Não há realmente Justiça sem Piedade! (Eliézer Rosa, Romeiro Neto,o Último Romântico da Advocacia Criminal, 1984, p. 26).
V. “Amparando os mais fracos, não fazemos favor, senão justiça” (Teodomiro Dias: apud Odilon Costa Manso, Letras Jurídicas, 1971, p. 111).
VI. “A interpretação das leis não deve ser formal, mas sim, antes de tudo, real, humana, socialmente útil. (...). Se o juiz não pode tomar liberdades inadmissíveis com a lei, julgando contra legem, pode e deve, por outro lado, optar pela interpretação que mais atenda às aspirações da justiça e do bem comum” (Min. Sálvio de Figueiredo, Revista do Superior Tribunal de Justiça, vol. 26, p. 384).
Aqui faço ponto, meu caro Alexandre Semedo de Oliveira, não entre a fatigá-lo com estas pífias e insípidas nótulas, ao mesmo passo que o cumprimento pelo magnífico ensaio que as provocou; por fim, desejo-lhe, “ex corde”, nesta Páscoa e no exercício de seu difícil e honroso cargo de juiz, muitas felicidades e a recompensa própria dos que praticam as boas ações: a glória de tê-las praticado! (O que fará, creio-o — sobretudo no paroxismo das crises que abalam o Mundo contemporâneo —, sob o influxo da bondade, que é a cruz de todas as religiões!). Meu fraterno abraço.
Notas
[1] Ricardo Dip e Volney Corrêa Leite de Moraes Jr., Crime e Castigo, 2002, p. 3; Millennium Editora.
[2] O alto sentido da presença do Crucifixo nos Tribunais, lembrado pelo Des. Volney Corrêa Leite de Moraes Jr. — e que serviu de epígrafe ao ensaio do Dr. Alexandre Semedo de Oliveira —, já o acentuara, em tópicos de rara beleza, o prestigioso advogado e homem de letras Plínio Barreto: “Cristo é um assunto inesgotável para pintores, escultores e nunca fica deslocado em qualquer tribunal. Vítima suprema de uma injustiça revoltante, é um apelo permanente à consciência dos juízes e um consolo perpétuo para os que não encontram, entre os juízes, água e mantimento para a sede e fome de justiça, que os devoram. No júri, a sua presença é mais do que uma fonte de consolações: é uma necessidade imprescindível” (Vida Forense, 1922, p. 87).
[3] “De Officiis”, I, 10, 33. Igual fórmula já traziam as divinas letras: “Noli esse justus multum” (Eccl 7, 17). Não sejas por demasiado justo.