5. TRANSEXUALISMO, INTERSEXUALISMO E HOMOSSEXUALISMO
Nessa linha invoca-se em 1º lugar o art. 1º, inc. III, da CFR que elegeu a dignidade da pessoa humana como um dos princípios constitucionais fundamentais que orientam a construção e a interpretação do sistema jurídico brasileiro. Lembrando as angústias do transexual, que convive com problemas na escola, no trabalho, na vida social, no lazer e em suas relações amorosas, tudo decorrente da falta de identificação, da impossibilidade de aceitar a pp. condição, entre seu sexo real e o sexo desejado, o que implica em verdadeiro martírio, é de se questionar: Este modo aflitivo e conflituoso de vida é aquele que proclama o princípio da dignidade da pessoa humana? Ora, esse modo de vida angustiante só gera indignidade, que só poderá ser resolvida por intermédio da cirurgia de redesignação de sexo.
Outro alicerce constitucional é aquele primado no art. 3º, inciso IV, da CF, que estabelece que o objetivo fundamento do estado brasileiro é promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Ora, buscar o bem comum, ou seja, o bem de todos, é ir de encontro à felicidade e não se pode falar de felicidade em geral, mas da felicidade de cada ser humano.
Pode-se acrescentar, ainda, que o art. 5º, inc. X, estabelece que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem, e se se exigir que a pessoa se comporte de forma que sua intimidade seja aviltada, configuraria uma agressão à própria carta constitucional.
Exemplificando a idéia: Pode-se exigir que um transexual masculino, o qual, repita-se, efetivamente se considera uma mulher, use o banheiro público destinado aos homens? Ou que ao ser internado para tratamento de saúde fosse instalado em enfermaria coletiva masculina? Ou então qdo. preso, que fosse encarcerado em estabelecimento prisional destinado a homens? Isso não viola sua intimidade?
Além disso a Constituição Federal estabeleceu, no seu artigo 199, § 4º, que a lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos ou substâncias humanas para fins de transplantes, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.
O diploma legal a regulamentar tal dispositivo constitucional foi a Lei nº 9.434, de 4/2/1997, que NADA estabeleceu acerca do transgenitalismo. Como a lei não proibiu expressamente tal prática cirúrgica, se ela for considerada como "tratamento" estaria legitimada pela norma constitucional, que é mais ampla.
De outra parte, para contornar a incidência do art. 129, § 2º, II e IV, do CP, parcela significativa da doutrina tem entendido que esta modalidade de intervenção cirúrgica não constitui crime, porque o estado de necessidade, acrescido ao consentimento do paciente, à ausência de dolo do médico e ausência de tipo, completam os pressupostos necessários para excluir a operação de mudança de sexo dos delitos de lesões corporais.
Nessa linha, já decidiu o E.TACRIM.SP.: LESÃO CORPORAL DE NATUREZA GRAVE – Perda ou inutilização de membro, sentido ou função – Cirurgia realizada gratuitamente pelo acusado na vítima – transexualismo – abalação de órgãos genitais masculinos e abertura, no períneo, mediante incisão, de fenda, à imitação de vulva postiça – correção cirúrgica recomendada por renomados psiquiatras, endocrinólogos, psicólogos e geneticistas e tida como viável, sob o ponto-de-vista legal, por eminente jurista – ausência, pois de dolo – absolvição decretada – declaração de voto vencido – inteligência do art. 129, § 2º, III, do CP (RACRIM-RT 545/355).
Tem-se, por fim, que o Conselho Federal de Medicina, através a Resolução nº 1.482, de 10 de setembro de 1997, autorizou,a título experimental a realização de cirurgias de mudança de sexo em todo o Brasil, limitando porém a prática a hospitais universitários que desenvolvam atividades de pesquisa e a hospitais públicos adequados à pesquisa.
Tal Resolução, contudo, exige, em linhas gerais, a presença dos seguintes pressupostos para que a cirurgia de redesignação de sexo seja realizada:
a) Caracterização do paciente como transexual, de acordo com os seguintes critérios: existência de desconforto com o sexo anatômico natural; desejo expresso de reversão sexual, com eliminação das genitálias, perda das características primárias e secundárias do próprio sexo e obtenção das do sexo oposto;
b) permanência desse distúrbio de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos e ausência de outros transtornos mentais;
c) realização de avaliação nos pacientes, candidatos à intervenção cirúrgica de transgenitalismo, por equipe multidisciplinar constituída por médico-psiquiatra, por cirurgião, por psicólogo e por assistente social, após dois anos de acompanhamento conjunto;
d) ser o paciente portador de diagnóstico médico que o identifique como transexual;
e) ser o candidato à intervenção cirúrgica maior de 21 anos;
f) ocorrer a ausência de características físicas inapropriadas para autorizar a cirurgia,
h) haver consentimento livre e esclarecido do paciente para se submeter à operação cirúrgica de mudança de sexo.
Convém, ressaltar, porém, que tal Resolução, apontada como um avanço nesta matéria, não vincula o Poder Judiciário, consistindo em norma aplicável apenas no âmbito do Conselho que a instituiu, para resolver questões ligadas à ética médica.
Com base em tudo quanto foi aqui exposto é que renomados juristas vêm defendendo que o ordenamento jurídico brasileiro já permite a cirurgia de mudança de sexo, de forma que não haveria ilicitude em sua prática.
6. A EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA
6.1. DIREITO ROMANO
Pater famílias – direito de vida ou de morte formando a família uma unidade econômica, religiosa, política e jurisdicional.
A idéia romana do casamento é diferente da dominante em nossos dias.
Para os romanos a affectio era um elemento necessário para o casamento que não deveria existir apenas no momento da celebração do casamento, mas enquanto este perdurasse. O consentimento das partes não devia apenas ser inicial mas continuado.
Assim, a ausência de convivência, o desaparecimento da afeição eram, por si só, causas necessárias para a dissolução do casamento.
Justiniano tentou restringir as causas de divórcio, só o permitindo em casos especiais, mas pouco depois voltava a ser admitido pelo direito romano o divórcio por consenso mútuo. A mesma vontade que fizera o casamento, pensavam os romanos, podia desfazê-lo.
6.2. DIREITO CANÔNICO
Os canonistas opuseram-se ao divórcio, considerando-o um instituto contrário à própria índole da família e ao interesse dos filhos cuja formação prejudica.
Sendo o matrimônio não apenas um contrato, um acordo de vontades, mas também um sacramento, não podiam os homens dissolver a união realizada por Deus: quod Deus conjunxit homo non separet.
Tanto no Velho como no Novo Testamento encontramos a idéia de que o marido e a mulher constituem uma só carne (Gênesis, 2,24 e Evangelho de São Mateus 19,6).
Durante a Idade Média as relações de família se regiam exclusivamente pelo direito canônico, sendo que, do século X ao século XV, o casamento religioso era o único conhecido.
Na doutrina canônica, o matrimônio é concebido como sacramento, reconhecendo-se a indissolubilidade do vínculo e só se discutindo o problema do divórcio em relação aos infiéis, cujo casamento não se revestia do caráter sagrado do casamento católico.
O divórcio não era concedido mesmo no caso de adultério, de ausência ou de cativeiro.
Coube ao direito canônico destacar a importância das relações sexuais no casamento. Assim, o casamento se realizava pelo consenso, declarando as partes a sua vontade, normalmente em público e na presença de sacerdote, tornando-se perfeito com a cópula carnal.
O direito canônico constituiu o quadro dos impedimentos para a realização do casamento abrangendo causas baseadas numa incapacidade (idade, diferença de religião, impotência, casamento anterior), num vício de consentimento (dolo para obter o consentimento matrimonial, coação ou erro quanto à pessoa do outro cônjuge) ou numa relação anteior (parentesco, afinidade).
Promulgado pelo Papa João Paulo II, em 25/1/1983, entrou em vigor em 27/11/1983, o novo Código de Direito Canônico, trouxe alterações em matéria de matrimônio: a não concessão do divórcio mesmo em caso de adultério, evoluiu para a elaboração da teoria das nulidades ou da regulamentação de separação de corpos e de patrimônios (divortium quoad thorum et mensam), que extingue a sociedade conjugal, sem todavia dissolver o vínculo.
A diferença entre a separação do DIREITO CANÔNICO e o divórcio do DIREITO ROMANO OU JUDAICO reside no fato de que a separação, para o DIREITO CANÔNICO, não importa na dissolução do vínculo e por ser um ato judiciário da autoridade religiosa, enquanto que, em ROMA e para os HEBREUS, constituía um ato privado contra o qual a parte prejudica podia recorrer à autoridade judiciária.
O grande problema, que surge no fim da Idade Média, é o conflito entre os tribunais civis e religiosos, inicialmente quanto a certos aspectos patrimoniais do direito de família e, em seguida, em relação aos seus efeitos pessoais.
Para os protestantes, a competência em matéria de direito de família devia pertencer ao Estado, não se justificando a atribuição de caráter sagrado ao casamento. Tratando-se de um simples ato da vida civil, de um contrato natural, nada impedia que a vontade dos cônjuges dissolvesse o vínculo matrimonial, no entender da religião reformada.
Como reação dos meios católicos, instituiu-se o Concílio de Trento (1542-1563) que reformou solenemente o caráter sacramental do casamento, reconhecendo a competência exclusiva da Igreja e das autoridades eclesiásticas em tudo que se relacionasse com o casamento, a sua celebração e a declaração de sua nulidade. Caracterizou-se ainda o casamento como ato solene, devendo ser precedido de publicidade e só se permitindo a coabitação dos nubentes após terem recebido a benção nupcial. O sacerdote é considerado como testemunha necessária e não como ministro do sacramento, tendo a obrigação de manter um registro de casamento pelo qual se prova o matrimônio.
Entretanto, fortalecendo-se a autoridade do rei e voltando a dominar o mundo, pela 2ª vez, o DIREITO ROMANO, na época do renascimento, o Estado reivindicou a competência para julgar as questões referentes ao direito de família.
Os países reformados tiverem que elaborar uma legislação própria para o direito de família e exerceram assim importante influência sobre os países católicos, alguns dos quais, como a
França, não tendo recebido o Concílio de Trento, se viram na contingência de criar novas normas para a matéria.
O acordo entre a Igreja e o Estado se realiza, então, na luta comum contra os casamento clandestinos, na exigência de uma publicidade prévia e da presença de testemunhas no ato, conquistas que se incorporaram definitivamente ao DIREITO MODERNO.
O problema das minorias não católicas leva o Estado a admitir, ao lado do casamento religioso, o casamento civil, instituído na França em 1767.
Em sua técnica, o direito leigo de família conservou, todavia, os conceitos básicos elaborados pela doutrina canônica, que ainda hoje encontramos no próprio direito brasileiro.
6.3. NO BRASIL
Até meados do século XIX observou-se as disposições do Sagrado Concílio Tridentino, autorizadas em Portugal pelo alvará de 12.9.1564.
Ainda em Portugal, em 1595 foi determinada a Compilação das Ordenações Filipinas que a Lei de 11/1/1603 mandou observar.
No Brasil, a Lei de 20/10/1823 manteve em vigor a legislação portuguesa, consubstanciada nas Ordenações, leis, regimentos, alvarás, decretos e resoluções, inclusive o Concílio Tridentino, enquanto não se organizasse um novo código e não fossem tais disposições especialmente revogadas ou alteradas.
Em meados do século XIX surgiu entre nós uma legislação especial referente ao casamento dos acatólicos: Lei 1.1434, de 11/9/1861, que deu efeitos civis aos casamentos religiosos realizados pelos não católicos desde que estivessem devidamente registrados.
O Dec. 3.069, de 17/4/1983, regulamentando a Lei de 1861, estabeleceu dentre outras normas básicas que a única prova do matrimônio admitida pelo decreto citado era a certidão passada pelos respectivos ministros ou pastores, esclarecendo o texto que: "Nenhuma outra prova será admissível ainda que se apresente escritura pública ou particular de contrato de casamento e tenha os contraentes vivido no estado de casado"
Essa legislação imperial conservou, pois, na regulamentação do casamentos dos acatólicos, a técnica jurídica do direito canônico inspirada nas decisões do Concílio de Trento.
Na mesma época, as idéias liberais se impõem e surgem as reivindicações referentes à separação do Estado e da Igreja e ao casamento civil.
A proclamação da República teve como corolário a desvinculação da Igreja em relação ao Estado. 1ª constituição republicana, no seu art. 72, § 4º, esclareceu que só reconhecia o casamento civil cuja celebração será gratuita.
A regulamentação do casamento civil foi feita pelo Dec. 181, de 24/1/1890, de autoria de Ruy Barbosa, em virtude do qual ficou abolida a jurisdição eclesiástica, considerando-se como único casamento válido o realizado perante as autoridades civis. O decreto permitiu a separação de corpos com justa causa havendo mútuo consenso, mantendo todavia a indissolubilidade do vínculo e utilizando a técnica canônica dos impedimentos.
Em 1916 inaugura-se o Código Civil Brasileiro que, segundo PONTES DE MIRANDA, Fontes e evolução do direito civil brasileiro, p. 489, revela um direito ‘mais preocupado com o círculo social da família do que com os círculos sociais da Nação", ao manter, num Estado leigo, uma técnica canonista e, numa sociedade evoluída do século XX, o privativismo doméstico e o patriarcalismo conservador do direito das Ordenações.
Enfim, família era aquela formada e constituída única e exclusivamente em decorrência do matrimônio.
6.4. FAMÍLIA E ENTIDADE FAMILIAR
Com a promulgação da CF/88 o Direito de Família recebeu o influxo do Direito Constitucional uma vez que em face do princípio da igualdade, foram banidas as discriminações existentes no âmbito familiar (derrogando-se toda a legislação que hierarquizava homens e mulheres, bem como a que estabelecia diferenciações entre os filhos pelo vínculo existentes entre os pais) para albergar outras espécies de família que não aquelas originadas do matrimônio.
Assim é que às famílias derivadas do matrimônio acrescentaram-se às famílias não-matrimoniais, derivadas da união estável e da monoparentalidade.
Nessa nova paisagem, não mais se distingue a família pela existência do matrimônio, solenidade que deixou de ser seu único diferencial.
Assim, a união estável recebe a proteção do Estado, desde que formada por um homem e uma mulher. Essa diferenciação de sexos do casal ignora a existência de entidades familiares formadas por pe4ssoa do mesmo sexo.
Daí porque discriminatória a norma constitucional, que veda diferenciar pessoa em razão do seu sexo, contrariando o princípio da igualdade que dela mesmo emana.
Invoca-se aqui a célebre lição de CARL SCHMITT (15) (doutrinador espanhol) que distingue constituição e lei constitucional, podendo esta integral ou não aquela.
Constituição é princípio que exprime decisão política intangível.
As leis constitucionais devem seguir esses princípios, mas não são intocáveis e, em certos casos, mesmo quando inseridas no texto da Constituição, podem até ser mudadas pelo processo legislativo ordinário.
Já OTTO BACHOF (16) (doutrinador português) permite julgar inconstitucionais as normas constitucionais que, embora presentes no seu texto, ferem algum princípio da Constituição.
A verdade é que o princípio constitucional que deve prevalecer é o da igualdade cumulado com o da liberdade individual, ambos resultando no preceito maior da isonomia.
Perante esses máximos princípios da Constituição Brasileira, a regra do § 3º do seu artigo 226, na parte em que condiciona à distinção de sexos o reconhecimento da união estável:
- ou é mera lei constitucional, que pode ser reformada até por lei ordinária, segundo Carl Schmitt,
- ou é norma constitucional inconstitucional, conforme sustenta Otto Bachof, que deve ser banida do ordenamento jurídico-constitucional.