3 A LEI DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E OS REQUISITOS DA DELAÇÃO PREMIADA
A Lei nº 9.897/99 foi a primeira a falar sobre a organização criminosa. Sendo alterada seis anos depois pela Lei 10.217/2001, que dispõe acerca dos meios para prevenir e repreender as ações que são praticadas por organizações criminosas (MASSON; MARÇAL, 2017, p.36). Antônio Scarance Fernandes (1995, p.3) aduziu que o motivo para revogação da Lei de nº 9.897/99 foi justamente pelo fato de não ter contemplado à definição da organização criminosa, além de não estabelecer quais seriam os comportamentos da organização criminosa.
Luiz Luisi (2002, p.24) aduziu que a Lei 10.217/2001 também desrespeitou os princípios da taxatividade e da legalidade, posto que, usou a expressão “organização criminosa” de forma genérica. Logo depois foi criada a Lei 12.694/12, oportunidade na qual o legislador trouxe o conceito de organização criminosa. Em 2013, foi criada a Lei 12.850, momento em que o legislador reveu o conceito de organização criminos, adotando-se também os meios processuais. (SANCHES, 2013, p.14).
A Lei 12.850/2013 prevê nos artigos 4º a 7º, o instituto da Colaboração Premiada. Trata-se de um acordo entre a autoridade policial ou o membro do Parquet e o investigado, para que este último, receba o perdão judicial ou até mesmo a redução da sua pena caso auxilie as autoridades judiciárias na obtenção de provas, evitando que crimes sejam concretizados. Frise-se que no artigo 3º, a colaboração premiada tem natureza jurídica de meio especial de obtenção de prova, no qual o acordo é reduzido a termo para que haja a homologação judicial (art. 4.º, §§ 6.º e 7.º, da LCO) conforme afirmam Cleber Masson e Vinícius Marçal (2017, p. 149).
Eugênio Pacelli (2014, p.856-857) aduz que as regras do artigo 4º da supramencionada Lei só podem ser aplicadas ao crime de organização criminosa. Já Renato Brasileiro (2014, p.530-531) adota o entendimento de que não se pode negar a concessão dos benefícios previstos pela Lei 12.850/13, sob pena de tirar o efeito da colaboração premiada. Os prêmios legais previstos na Lei de Crime Organizado são: o perdão judicial; redução da pena privativa de liberdade em até dois terços; redução da pena até a metade, caso a colaboração for poste rior à sentença; progressão de regime; substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos; não oferecimento de denúncia caso o colaborador não tenha sido líder de organização criminosa (MASSON; MARÇAL, 2017, p.159).
Cabe elucidar que para concessão de tais benefícios é necessário que o magistrado analise os requisitos que são: circunstâncias subjetivas e objetivas favoráveis, eficácia da colaboração e a voluntariedade. Veja-se que este último requisito indica que as declarações feitas pelo delator devem ser espontâneas, jamais podendo ser coagido. Mário Rogério Sobrinho (2009, p.49) aduz que se a colaboração for espontânea, o colaborador não pode ser coagido a contribuir para a descoberta dos fatos. Caso haja excessos para que se obtenha as declarações do delator implicará na ilicitude da prova.
Lênio Streck (2006) enfatiza que se for utilizada a prisão preventiva para forçar a delação premiada, automaticamente estará ferindo a presunção de inocência do acusado, posto que, não se pode inverter o ônus da prova. Ademais, cabe elucidar a lição de Rafaela Alban e Sébastian Borges (2017, p.353) acerca da voluntariedade do sobredito instituto:
a ideia de voluntariedade para a delação é absolutamente incompatível com a prisão do colaborador, já que o Estado não pode se valer de instrumentos constritivos da aliberdade humana para obter a delação premiada, tampouco forçar, em completa violação ao princípio do “nemo tenetur se detegere”, alguém a se autocriminar.
Luiz Flávio Gomes e Raúl Cervini (1997, p.168) aduzem que há uma diferença entre o conceito de voluntariedade e de espontaneidade. Nesta, a iniciativa de praticar a colaboração premiada decorre do próprio agente, já naquela não se exige que seja do próprio agente. Ressalte-se que na espontaneidade, o delator não precisa estar arrependido. Frise-se que não pode ser qualquer delação premiada que autoriza o recebimento dos benefícios do aludido instituto, tem que ser eficaz de forma que se descubra as infrações penais e a sua autoria.
Cabe elucidar as lições de Antonio Henrique Graciano Suxberger e Gabriela Starling Jorge Vieira de Mello (2017, p.16), no qual enfatizam que a prisão preventiva utilizada como método para obter a delação premiada do investigado, retira a possibilidade de este ter alguma possibilidade de escolha, posto que, o seu objetivo é simplesmente recuperar a sua liberdade. Ressalte-se que a restrição de liberdade do individuo acaba configurando uma coação, violando de tal maneira o artigo 4º, caput, da Lei 12.850/2013.
Quanto ao requisito das circunstâncias subjetivas e objetivas que é previsto no art.4, §1º, exige-se que o magistrado analise a personalidade do delator, a natureza, a gravidade, circunstância e, por fim, a eficácia da colaboração. Nessa senda, àquele devará analisar o comportamento habitual do delator, investigar a sua história. Saliente-se que não se torna necessário que o investigado possua bons antecedentes e seja primário, mas se possuir esses requisitos, a colaboração terá plena eficácia conforme afirmam Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto (2013, p.47).
Por fim, o requisito da eficácia da colaboração que consiste na eficácia da colaboração, em que o delator auxiliará as autoridades judiciárias para auxiliar no desvendamento do crime. Saliente-se que o delator terá que comparecer as diligências investigativas quando for solicitado (SOBRINHO, 2009, p.49). Neste requisito, o delator deve colaborar de forma que esteja à disposição das autoridades competentes para elucidar todos os fatos investigativos.
A Lei impõe no seu artigo 4º que haja: I - a identificação dos demais coautores da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa. III – a prevenção de ações penais decorrentes das atividades da organização criminosa. O legislador entende que com essa prevenção, haveria uma redução de crimes; IV – recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas por organizações criminosas. Ao final, o inciso V que consiste na localização de eventual vítima com sua integridade física preservada.
4 PROCESSO PENAL DE EMERGÊNCIA: O EMPREGO DA PRISÃO PREVENTIVA COMO MÉTODO PARA OBTENÇÃO DE DELAÇÕES PREMIADAS NA OPERAÇÃO LAVA JATO
A Operação Lava Jato foi deflagrada no ano de 2014 pela polícia federal na cidade de Curitiba, sendo investigadas diversas organizações criminosas coordenadas por doleiros, os quais são investigados por lavagem de dinheiro e crimes contra o sistema financeiro nacional. Na aludida operação, o Ministério Público Federal obteve provas de um grande esquema criminoso que envolveu a Petrobrás por aproximadamente 10 anos e grandes empreiteiras, que pagavam propinas a vários executivos e principalmente agentes públicos.
De acordo com as informações retiradas do site oficial da Operação Lava Jato criado pelo Ministério Público Federal, o nome da operação originou-se do uso de uma rede de combustíveis e lava jato de automóveis para mobilizar recursos ilícitos pertencentes às organizações criminosas. Nesse cenário, frise-se que houve até o presente ano, a decretação de 79 prisões preventivas e 71 acordos de colaboração premiada.
Será abordado inicialmente neste capítulo acerca da delação premiada como legislação de emergência. Logo após será demonstrado algumas prisões preventivas decretadas no curso da Operação Lava Jato, dentre elas a de Marcelo Bahia Odebrecht e Eike Batista. Permite-se aludir que os magistrados ao decretarem as prisões preventivas dos aludidos empresários sequer obedeceram aos pressupostos e os fundamentos daquelas. Essa inobservância entra em desarmonia com os métodos de interpretação que exige toda a decisão judicial, são esses métodos que norteiam o magistrado, para que este não decida conforme com a sua subjetividade, mas de acordo com os ditames constitucionais, justamente para que não propicie o arbítrio e o ativismo judicial.
4.1 A DELAÇÃO PREMIADA COMO LEGISLAÇÃO DE EMERGÊNCIA
De acordo com Fauzi Hassan Chouckr (2002, p.1) a ideia de emergência, encontra-se inevitavelmente atrelada a de urgência, e, de certa maneira, a de crise. Trata-se de um fenômeno que “desestabiliza o status quo ante, colocando em xeque os padrões normais de comportamento e a consequente possibilidade de manutenção das estruturas’’
Nesse sentido, pode-se dizer que a emergência está necessariamente vinculada a necessidade de uma resposta imediata. Salienta, ainda, Fauzi Chouckr (2002, p.1) a importância de diferenciar a emergência do campo penal do campo constitucional. Isto porque, consoante o autor, as medidas emergênciais presentes no âmbito constitucional estão previstas expressamente na Carta Magna, consistindo em medidas excepcionais a serem adotadas com o intuito de manter ou até mesmo reestabelecer a ordem em momentos de anormalidade.
Em relação à emergência na seara penal, Chouckr (2002, p.1) afirma que se infiltra no seio cultural da normalidade com evidente prejuízo desta. Essa emergência trata-se de um verdadeiro estado de fato, no momento em que o estado adota medidas extraordinárias devido ao aumento da criminalidade. Fauzi Chouckr (2002, p.01-02) define a emergência penal da seguinte maneira:
emergência vai significar aquilo que foge dos padrões tradicionais de tratamento pelo sistema repressivo, constituindo um subsistema de derrogação dos cânones culturais empregados na normalidade. Num certo sentido a criminologia contemporânea dá guarida a esse subsistema, colocando-o na escala mais elevada de gravidade criminosa a justificar a adoção de mecanismos excepcionais a combatê-la, embora sempre defenda o modelo de “estado”.
Feita essas considerações cabe pontuar que o instituto da delação premiada é considerado uma uma medida emergencial, devido a sua excepcionalidade em atender ao clamor público. Nessa vertente, Alberto Silva Franco (1994, p.10) pontua que o controle penal desempenha uma função simbólica, posto que, a intervenção penal, nos tempos hodiernos, não tem mais como fito tutelar os bens jurídicos considerados essenciais.
Assim, reconhece-se que o supramencionado instituto viola o sistema acusatório, a partir do momento que o juiz homologa confissões e delações, ampliando assim o número de culpáveis para impulsionar a máquina persecutória. Essa afronta ao processo penal democrático sacrifica garantias individuais, formas e procedimentos, como se a punição fosse o único caminho. É de se ver, portanto, que no instituto da delação premiada há inserção de instrumentos oriundos de uma legislação de emergência, ensejando o endurecimento da legislação processual penal. Nesse particular, cabe frisar o ensinamento de Luigi Ferrajoli acerca dessa legislação de emergência (2002, p. 487):
[...] a prática da negociação e do escambo entre confissão e delação de um lado e impunidade ou redução de pena de outro sempre foi uma tentação recorrente na história do direito penal, seja da legislação e mais ainda da jurisdição, pela tendência dos juízes, e sobretudo dos inquiridores, de fazer uso de algum modo de seu poder de disposição para obter a colaboração dos imputados contra eles mesmos. A única maneira de erradicá-la seria a absoluta vedação legal, o que a longo prazo acabaria por se tornar uma regra de deontologia profissional dos magistrados, de negociar qualquer relevância penal ao comportamento processual do imputado, também aos fins da determinação judiciária da pena dentro dos limites legais.
Na lição de Eugenio Raúl Zaffaroni (1996, p. 61), no que concerne a ineficiência do estado em sua persecução penal:
a impunidade de agentes encobertos e dos chamados 'arrependidos' constitui uma séria lesão à eticidade do estado, ou seja, o princípio que forma parte essencial do estado de direito. [...] o estado está se valendo da cooperação de um delinquente, comprada ao preço de sua impunidade de se 'fazer justiça', o que o direito penal liberal repugna desde os tempos de Beccaria.
Assim, tendo em vista os esclarecimentos do que se entende da delação premiada como legislação de emergência, Eugenio Raúl Zaffaroni (1998, p.617.) acrescenta que a solução dada através dessa legislação não resolve o problema do combate às organizações criminosas, pois tem como intuito somente proporcionar aos cidadãos a sensação de que tende a resolvê-lo. Essa inflação de normas penais e processuais penais pauta-se no discurso de manutenção de segurança e reestabelecimento da ordem, todavia, o que se vê na prática é a utilização de um conceito sombrio e vago (CHOUCKR, 2002, p.51).
Essa emergência repressiva coloca o sistema penal no caminho do autoritarismo, consistindo em uma forma de controle próprio dos estados absolutos e avessa ao estado de direito (FERRAJOLI, 2002, p.87). Ferrajoli aduz que a resposta a esta crise de legitimidade e inefetividade do sistema penal seria a criação de um sistema penal garantista, no qual implica na utilização de métodos alternativos da justiça penal para defesa dos direitos humanos.
Destarte, a importância de estudar acerca do instituto da delação premiada justamente porque é influenciado pela cultura emergencial, o que certifica que há uma hipertrofia do Estado Penal. Essa inserção da legislação de emergência na seara penal, denota a ideia de que há um prejuízo efetivo dos direitos e garantias fundamentais com o intuito de apresentar o direito penal como solução única e eficaz no combate a criminalidade.
4.2 CASO MARCELO ODEBRECHT
A decisão interlocutória proferida pelo Juiz Sergio Moro, que decretou a prisão preventiva de Marcelo Odebrecht (Pedido de Busca e Apreensão Criminal nº 502425172.2015.4.04.7000/PR, evento 8), não observou o pressuposto da prisão preventiva: o fumus comissi delicti, que consiste na plausibilidade de que um crime foi cometido pelo imputado. A inobservância desse pressuposto, enseja a violação do princípio da proporcionalidade, que exige que toda a decisão deva ser adequada e fundamentada para a proteção dos bens jurídicos considerados relevantes, conforme demonstrará a seguir:
Na Odebrecht, os principais executivos envolvidos seriam Rogério Santos de Araújo, Márcio Fária da Silva, Cesar Ramos Rocha, Alexandrino de Salles Ramos de Alencar e Marcelo Bahia Odebrecht.
Considerando a duração do esquema criminoso, pelo menos desde 2004, a dimensão bilionária dos contratos obtidos com os crimes junto a Petrobrás e o valor milionário das propinas pagas aos dirigentes da Petrobrás, parece inviável que ele fosse desconhecido dos Presidentes das duas empreiteiras, Marcelo Bahia Odebrecht e Otávio Marques de Azevedo.
Além disso, há provas e fatos específicos que os relacionam aos crimes, como a aludida mensagem eletrônica enviada a Marcelo Bahia Odebrecht sobre sobrepreços em contratos de sonda e a ligação entre Otávio Marques de Azevedo e Fernando Soares, um dos operadores do pagamento de propinas. (grifo nosso).
Nessa seada, revela-se notório destacar que a decisão que decretou a prisão preventiva de Marcelo Odebrecht fora baseada na teoria domínio do fato. Essa teoria, formulada por Welzel (ROXIN, 2000, p.85), demonstra que o efetivo domínio final do fato é que constitui o critério essencial do domínio do fato e não a vaga vontade do autor. Isso quer dizer que os cúmplices possuem domínio sobre a sua participação e não sobre o fato integral e, quanto ao autor, este é quem executa sua resolução visando um fim.
Logo após a teoria formulada por Welzel, Claus Roxin (2000, p.155 e ss) a desenha, aduzindo que, a partir de diretrizes, tais quais: autoria mediata, imediata e coautoria procurar-se-á estabelecer quando haverá ou não o domínio do fato. Nessa vertente, exsurge das constatações do autor que na autoria mediata, uma organização verticalmente estruturada poderá emitir uma ordem, cujo comportamento será entregue aos executores. Frise-se que esta teoria não foi utilizada de forma adequada no caso em tela, posto que, houve a inexistência de comprovação fática ao atribuir a responsabilidade a Marcelo Odebrecht. Veja-se que esta teoria, nesta operação, foi trabalhada baseada no domínio da organização e não baseada no domínio da vontade, no qual o indíviduo não realiza a ação, mas demonstra a vontade de quem realiza a ação.
Além de não atender o requisito do fumus comissi delicti, há um trecho da mesma decisão, em que o juiz supramencionado não atendeu o periculum libertatis, que consiste no risco que decorre do estado de liberdade do sujeito passivo, em face do risco á ordem pública, ordem econômica, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal:
há presença de risco à ordem pública. Na assim denominada Operação Lavajato, este Juízo tem cotidiamente se deparado com um quadro, em cognição sumária, de corrupção e lavagem de
dinheiro sistêmicas. Em um contexto de criminalidade desenvolvida de forma habitual, profissional e sofisticada, não há como não reconhecer a presença de risco à ordem pública, sendo a prisão preventiva, infelizmente, necessária para interromper o ciclo delitivo. O risco em concreto de reiteração é evidente. Apesar da Petrobrás ter proibido as empreiteiras de celebrarem novos contratos, há diversos contratos em execução. Segundo informações colhidas pela Polícia Federal constantes no Relatório de Análise de Material nº 154 (evento1, anexo 22, 1-8), e no Relatório de Análise de Material nº 133 (evento 1, anexo30, 1-3), estariam ativos, pela Odebrecht. (..) A prisão cautelar é o único remédio apto a quebrar a aludida "regra do jogo". (grifo nosso).
Frise-se que a presença do Periculum Libertatis é imprescindível, até porque o perigo gerado pela liberdade do acusado deve ser concreto, com um suporte fático probatório suficiente para decretar a prisão cautelar, jamais podendo ser fruto de deduções. Afigura-se notar que a decretação da prisão preventiva do aludido empresário na sobredita operação visa exclusivamente a garantir a ordem pública e a ordem econômica, rompendo com o princípio da legalidade, justamente porque se trata de um conceito indefinido, vago e amplo. Deste modo, surgem decisões injustas e ilegítimas que desrespeitam os direitos fundamentais.
A utilização do fundamento da garantia da ordem pública e da ordem econômica para manter provisioriamente o acusado em cárcere, viola o princípio da presunção de inocência, até porque àqueles fundamentos não tutelam a pretensão satisfativa, mas assumem contornos de uma pena antecipada com base em juízo de culpabilidade já formado. Cabe frisar que o juiz ao decretar a prisão preventiva do investigado deve ter prudência, posto que, quando decretada o preso provisório não irá saber por quanto tempo ficará em cárcere. É cediço que sua custódia protrairá enquanto não surgir uma decisão judicial que revogue a medida constritiva que fora decretada. Nessa linha lógica, cumpre elucidar o posicionamento de Rogério Schietti (2006, p.16) acerca da prisão preventiva:
Como negar que o preso provisório muitas vezes se vê em situação até pior em relação ao preso definitivo? Enquanto este último goza de vários direitos como, por exemplo, direito ao trabalho, ao estudo, ao lazer (banho de sol, atividades esportivas etc), tendo, ainda, possibilidade de saídas temporárias e outros benefícios previstos na Lei de Execuções Penais, o preso provisório é geralmente mantido em locais absolutamente impróprios, não separados, como exigido por lei, dos presos que cumprem penas, muitos dos quais extremamente agressivos. Isso implica um suplemento mortificante à pena, o qual não é decorrência natural e objetiva da própria privação da liberdade.
Conforme lição de Odone Saguiné (2003, p.115) a prisão preventiva decretada para garantir a ordem pública é utilizada como forma de prevenção geral. Essa teoria da prevenção geral possui a finalidade de atender as demandas sociais, trazendo uma sensação de equilíbrio para os cidadãos. Fernanda Ravazzano (2016) elucida que àquela teoria não pode ser utilizada para manter a prisão preventiva. Note-se que após a decretação da prisão preventiva pelo juizo a quo, Marcelo Bahia Odebrecht e outros executivos do Grupo Odebrecht celebraram o acordo de delação premiada com a Procuradoria Geral da República, oportunidade na qual foi homologado pelo STF, dispondo o seguinte:
A voluntariedade do acordo foi reafirmada pelo colaborador no depoimento ja mencionado, prestado judicialmente na presença e corn anuencia de seus advogados, conforme demonstra a mídia juntada aos autos. (…) Sob esse aspecto, o conjunto das cláusulas do acorda guarda harmonia corn a Constituiçăo e as leis, com exceçăo da expressăo "renúncia" a garantia contra a autoincriminaçăo e ao direito ao silêncio, constante no título VI do acordo.
Veja-se que o Ministro do Supremo Tribunal Federal aduziu que houve a renúncia do direito ao silêncio, a autoincriminação, porém homologou por entender que, no caso em tela, houve voluntariedade do delator e legitimidade das provas apresentadas pelo Ministério Público Federal. Revela-se necessário destacar que esta homologação do Supremo Tribunal Federal sequer obedeceu a voluntariedade, a regularidadade e a legalidade do acordo de delação premiada prevista na Lei 12.850/13. Saliente-se que essa delação premiada do aludido empresário não poderia ter sido obtida através de pressão, posto que, com esse método está desrespeitando os requisitos da prisão preventiva, que estão previstos no artigo 213 do Código de Processo Penal. Cezar Roberto Bitencourt (2017) demonstra que a liberdade e a voluntariedade são pressupostos de validade do aludido instituto.
Nessa seada, a decretação da prisão preventiva não pode estar condicionada à colaboração premiada, posto que, estaria violando o processo penal democrático transmudando-se em um verdadeiro processo penal emergencial. Fernanda Ravazzano (2016) explica que a prisão para delatar configura-se uma nova espécie de prisão cautelar, até porque o magistrado utiliza-se do fundamento da garantia da ordem pública ou da conveniência da instrução criminal até que o investigado delate outros corréus. Enfatizou, ainda, que em uma audiência pública, o Procurador da República Deltan Dallagnol acentuou acerca da relevância de obtenções das delações premiadas quando os investigados estão em cárcere, posto que, adotando tal medida, haveria uma maior expansão das investigações.
Veja-se que, a partir do momento que o magistrado consente com a prisão preventiva para obter a colaboração premiada do investigado, acaba desrespeitando seus deveres como magistrado, passando a atuar como um juiz-promotor, perdendo de tal forma a sua imparcialidade. Nessa linha lógica, cumpre frisar que a decretação da prisão preventiva de Marcelo Odebrecht propiciou o ativismo judicial. Esse ativismo, conforme Elival da Silva Ramos (2010, p.116-117) tem sido relacionado com a exacerbação de poderes dos juízes, que invadem de forma indevida as esferas de outros poderes Executivo e Legislativo, sendo visto como um comportamento deletério para a democracia e para a separação de poderes.
Assim, caso o juiz interprete o texto normativo e traga significados novos e argumentos extrajuridícos de modo que afaste da letra da lei, estar-se-á diante do ativismo judicial. Esse papel do poder judiciário como criador de normas jurídicas, no qual decorre do pós-positivismo, deve ser evitado, posto que, com esta proibição asseguraria que as decisões políticas sejam discutidas por quem tem legitimidade democrática. Mauro Capelleti (1993, p.73), aduz que a criatividade constitui um fator inevitável da função jurisdicional, e que existem razões para o desenvolvimento de tal criatividade. No seu modo de pensar, compreende que, caso os juízes assumam um papel acentuadamente criativo, sua função jurisdicional acaba se igualando à legistativa, e os juízes invadem o domínio do poder legislativo.
É de bom alvitre mencionar que Capelleti (1993, p.82) admite que existem debilidades e “enfermidades” práticas nas atividades jurisdicionais. Essas debilidades, consistem na dificuldade de informação, que faz com que haja um obstáculo de um pleno acesso ao direito; a eficácia retroativa das decisões que muitas vezes acaba tendo conflito com os valores da certeza e da previsibilidade e por fim, a terceira debilidade consiste na incompetência institucional da magistratura para agir como força criadora do direito. O autor informa, ainda, que para a criação do direito é necessário instrumentos que não estão à disposição do tribunal e que os juízes não têm possibilidade de desenvolver uma obra criativa, posto que, esta atividade não se limita às leis e precedentes, envolvendo problemas complexos.
Em uma entrevista para a Revista caasp, da Caixa assistência dos advogados de São paulo, o professor Lênio Streck afirmou que o ativismo judicial é um mal para a democracia, visto que, a moral e a política se sobrepõem ao direito. Ele afirma que o que está sendo observado atualmente, principalmente na operação lava jato, é que o direito acabou sofrendo ataques de moral e da política e quando o juiz substitui o legislador adota uma atitude comportamentalista, tornando-se um juiz ético-político-moral. Assim, compreende-se que este papel criativo dos juízes de forma acentuada, pode acabar interferindo no equilíbrio democrático entre os poderes. É cediço que esse desequilibrio pode ser visualizado quando o poder judiciário invade a competência do poder legislativo para resolver conflitos normativos e conflitos de interesses, conduta esta que deve ser vedada na magistratura.
Percebe-se que a prisão cautelar não se mostrou uma medida adequada, no caso em tela, posto que a utilização da custódia como forma de que as autoridades recuperem os ativos que foram desviados pelo empresário, viola os ditames constitucionais. Frise-se que a prisão somente poderá ser utilizada em casos excepcionais, quando outras medidas idôneas para proteção dos bens e direitos e interesses perseguidos pelo processo penal mostrassem insuficientes. Observe-se que na aludida operação, é mais viável engessar no patrimônio do acusado, bloqueando as suas contas do que o prender, até porque adotando esta medida iria impossibilitar qualquer possibilidade de fuga e não ensejaria um imenso custo social e individual para o investigado (AURY, 2014, p.682).
4.3 Caso Eike Batista
Levando-se em conta a decisão da custódia preventiva de Marcelo Bahia Odebrecht, cumpre também mencionar a decisão da decretação da prisão preventiva de Eike batista, a qual foi proferida em 13.01.2017 nos processos 0501024-41.2017.4.02.5101 e 0501027-93.2017.4.02.5101 pelo Juiz Federal Marcelo da Costa Bretas. O empresário foi acusado de pagar proprina no valor de R$ 16,5 (dezesseis milhões e quinhentos mil doláres) ao ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral:
(…). Este representado compareceu ao MPF/RJ e, perante os Procuradores da República da Força Tarefa da Lava Jato neste Estado. (…) aparentemente, de acordo com esclarecimentos e conclusões apresentados pelo MPF, o investigado Eike Batista não disse a verdade em seu depoimento perante o MPF, o que, confirmando as suspeitas iniciais, reforça a tese de seu maior envolvimento com a Organização Criminosa (ORCRIM), (…). Aliás, ainda do âmbito da investigação conduzida pelos Procuradores da Força Tarefa da Lava Jato no Estado do Paraná, o representado Eike Batista também já havia se apresentado a pretexto de esclarecer o suposto repasse irregular da quantia de 5 (cinco) milhões de reais (relacionado a pessoas ali acusadas - Mônica Moura, João Santana e Guido Mantega). (grifo nosso).
Veja-se que o juiz ao fundamentar estar decisão, trouxe fato estranho ao processo. O elemento estranho consiste no momento em que o juiz primevo destaca que o aludido empresário declarou o seu envolvimento com Mônica Moura, João Santana e Guido Mantega, sendo que tal fato não tem relação com o processo que decretou a prisão preventiva de Eike Batista. Nessa seada, note-se que além do que foi posto, houve ausência de requisitos legais para o decreto da prisão preventiva, posto que, não restou demonstrado que Eike Batista, empresário reconhecido, apresentaria risco à ordem pública e a instrução criminal ao ser posto em liberdade, senão vejamos:
(…) no entendimento do órgão ministerial, com o qual, concordo, aparentemente se constata uma iniciativa dos envolvidos para enganar as autoridades que investigavam a operação da ORCRIM, com o nítido interesse de obstrução de justiça, a justificar a necessidade de sua custódia cautelar para gantia da instrução criminal. (…) também são desfavoráveis a este investigado, Eike Batista, as circunstâncias fáticas relatadas pelos colaboradores Renato Chebar e Marcelo Chebar, as quais surgem, e confirmam suspeitas iniciais, uma atividade por parte do representado Eike Batista, dentre outros, para obstruir o curso das investigações, como antes esclarecido. (…). Diante de tais constatações, bem como pela representatividade de Eike Batista no cenário empresarial do Brasil, parece sensato supor que este investigado ocupe papel de grande relevo na ORCRIM descrita, e que se encontra envolvido em ilícitos criminais de expressivo volume monetário, sendo de rigor, pois, o deferimento da medida cautelar extrema requerida (prisão preventiva – artigo 311 e ss. CPP). (grifo nosso).
Percebe-se que, o magistrado sequer demonstrou o periculum libertatis ao decretar a prisão preventiva de Eike Batista, simplesmente limitou-se a reproduzir dispositivos legais, sem uma criteriosa análise do caso concreto, trazendo a ideia de que a motivação é aparente, servindo para qualquer situação posta em julgamento. Veja-se que essa falta de análise do caso concreto pelo magistrado desrespeita o art. 93, inciso IX da Constituição Federal, o qual exige que todas as decisões dos órgãos do poder judiciário deverão ser fundamentadas sob pena de nulidade.
Nesse trilho, o Procurador da República, Leandro Bastos Nunes (2017), elucidou que a decisão do magistrado que decretou a prisão preventiva de Eike Batista tem relevância, justamente para se evitar a continuidade dos atos lesivos ao patrimônio público. Afirma que a organização criminosa tem causado efeitos deletérios aos direitos fundamentais, o que enseja a prevalência do garantismo penal integral. Esse garantismo, consoante demonstra o autor, deve tutelar não apenas o direito do acusado, mas a segurança da sociedade consoante ordena o artigo 6º da Constituição Federal.
Diante da explanação do Procurador, Leandro Bastos Nunes, é necessário compreender que, nos tempos hodiernos, o processo penal é visto como teoria dos jogos, conforme elucida Alexandre Morais da Rosa (2015, p.28). Esse exercício do jogo demonstra que as decisões são tomadas para além da razão, ou seja, os resultados processuais dependem da interação das estratégias e não somente da postura dos jogadores. O processo penal transformou-se em verdadeiro processo penal inquisitivo, no qual permitiu-se jogadas ilícitas, ferindo de tal forma os princípios processuais penais. Alexandre, (2015, p.40) leciona, ainda, que essa guerra processual busca simplesmente o confronto e também a vitória, sem ao menos leva em conta os custos. Com base nisso, é importante lembrar que essa crença dos aplicadores da lei em querer buscar as punições e trazer a sensação de segurança colide com as garantias processuais.
Nessa linha lógica, cumpre destacar a lição de Lênio Luiz Streck (2006. p.56) no qual pontua que o magistrado deve especificar os fatos que norteiam a sua decisão, sendo incabível dizer qualquer coisa sobre o texto legal. Streck (2013. p. 117) aduz que a justiça não depende da opinião pessoal dos juízes, até porque o sentido da lei advém de uma interssubjetividade e não do sentimento do indíviduo isolado. Assim, mostra-se inadmissível que o magistrado ao decretar a prisão preventiva repita termos legais, devendo analisar o caso em concreto.
Carlos Maxilimiano (2011, p.103) aduz que o magistrado ao buscar o sentido de uma norma deve ater-se aos métodos interpretativos: gramatical, lógico, histórico, sistemático e teleológico. Esses métodos levam o aplicador da lei a justificar a sua decisão judicial, de tal forma, que deverão ser evitadas, meras impressões ou avaliações de cunho pessoal. Convém deixar assente que, a fundamentação judicial deve apresentar os seguintes requisitos: a integridade, dialeticidade, correção e racionalidade. Em relação ao requisito da integridade, entende-se que o direito deve ser estuturado por um conjunto coerente de princípios sobre justiça, equidade e por fim, o processo legal adjetivo. Já a dialeticidade significa que o procedimento deve ser realizado através do contraditório para que influencie o convencimento judicial.
No que tange ao requisito correção, este significa que deve haver uma relação entre os dados presentes no processo e os elementos considerados na decisão. Para Robert Alexy (2005, p.311): “o conceito de correção não pressupõe que exista uma resposta correta para cada pergunta prática. A resposta correta única tem muito mais o caráter de um objetivo a ser perseguido’’. Por fim, a racionalidade, significa que toda a decisão judicial não pode ter contradições, de tal forma que haja relação entre fundamentação e decisão. Caso esses requisitos não sejam observados, a decisão judicial será anulada, posto que, a Constituição Federal ordena que não haja fundamentações vagas sem uma criteriosa análise do caso concreto.
Assim, o magistrado ao fundamentar a sua decisão deve decidir de forma justa e adequada. Nesse sentido, há uma necessidade de engajamento em valores éticos e nas exigências de interpretações, que possuem consonância com os princípios do direito, com ênfase na integridade. Para Ronald Dworkin (1999, p.217), as proposições jurídicas quando são verdadeiras oferecem uma melhor interpretação construtiva em prol da comunidade. O autor ensina que o direito da integridade pede para que o magistrado que tenha interpretado um material com sucesso, continue interpretando.
Para Gademer (2011, p.79), “O juiz não apenas aplica a lei em concreto, mas colabora ele mesmo, através de sua sentença, para a evolução do direito”. Nesse sentido, o autor traz a ideia de que o intérprete-juiz não deve reproduzir, mas saber compreender e aplicar a norma no caso concreto. Assim, frise-se que na medida que o intérprete da lei adeque as suas decisões aos postulados constitucionais acaba resultando no respeito a democracia, afastando assim da arbitrariedade. (STRECK, 2011.p.13)
Levando-se em conta o que foi observado, compreende-se que as decretações das prisões preventivas no curso da Operação Lava jato partiram de um ato de vontade do magistrado, situação que legitima o arbítrio e o ativismo judicial. É notório que toda decisão judicial deve estar limitada às fontes e aos princípios interpretativos para que respeite o devido processo legal, não podendo estar restrito a subjetividade do julgador.