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O protesto do recebedor e jurisdição.

A limitação do art. 754 do CC à jurisdição brasileira

07/08/2019 às 19:00
Leia nesta página:

Comenta-se a aplicação do art. 754 do Código Civil aos sinistros de transportes de cargas apurados no exterior, assim como a inexistência de decadência.

Carta exclusiva ao mercado segurador

Somos constantemente indagados sobre questões que envolvem a figura legal do protesto do recebedor.

Uma delas diz respeito à jurisdição ou extraterritorialidade.

Nosso objetivo é tratar do assunto de forma objetiva neste texto, que é uma espécie de carta aberta ao mercado segurador.

Vejamos:

Desde 2002, o protesto do recebedor é disciplinado pelo art. 754 do Código Civil:

Art. 754. As mercadorias devem ser entregues ao destinatário, ou a quem apresentar o conhecimento endossado, devendo aquele que as receber conferi-las e apresentar as reclamações que tiver, sob pena de decadência dos direitos.

Parágrafo único. No caso de perda parcial ou de avaria não perceptível à primeira vista, o destinatário conserva a sua ação contra o transportador, desde que denuncie o dano em dez dias a contar da entrega.

O artigo de lei só pode ser exigido e aplicado no Brasil.

Significa dizer que ele é válido e eficaz para todos os transportes nacionais e transportes internacionais concluídos no Brasil.

Não se submete ao seu conteúdo o transporte iniciado no Brasil mas concluído no exterior, onde o dano (falta ou avaria) foi constatado.

Em outras palavras, o art. 754 do Código de Processo Civil não pode ser exigido em outro país.

Dito de forma mais explícita ainda: o protesto do recebedor do art. 754 do Código Civil cabe em transporte que envolva importação, mas não em caso de exportação.

Assim como a regra legal estrangeira não pode ser aplicada no Brasil, a regra brasileira não pode ser exigida no exterior.

Tudo isso serve para endossar a seguinte afirmação: se não for apresentado o protesto do recebedor, previsto no art. 754 do Código Civil, impossível se falar em decadência do Direito de regresso do segurador sub-rogado contra o transportador internacional de carga.

A pretensão de ressarcimento continuará plenamente em vigor, bastando ao segurador sub-rogado encontrar algum meio de prova que ateste o nexo de causalidade e o dano (prejuízo).

Não se trata apenas de uma mera interpretação subjetiva do Direito, mas da correta inteligência dos sistemas legais, o brasileiro e os estrangeiros.

 Trata-se, pois, de uma objetiva hermenêutica jurídica.

 Uma questão derivada desta merece especial atenção, e ela nasce a partir da seguinte indagação: sendo a ação regressiva de ressarcimento ajuizada no Brasil, não é exigível o art. 754 do Código Civil?

 A resposta segura é: não.

 As regras de jurisdição e competência, meramente instrumentais, não se confundem com as de direito material.

O fato de uma disputa judicial ocorrer no Brasil não vincula à parte a utilização de todas as regras do ordenamento jurídico brasileiro.

Dado que sempre será competente a jurisdição nacional para ações judiciais fundadas no contrato de transporte internacional de cargas, seja marítimo ou aéreo, porque normalmente presentes as condições estabelecidas nos três incisos do art. 21 do Código de Processo Civil.

Art. 21. Compete à autoridade judiciária brasileira processar e julgar as ações em que:

I - o réu, qualquer que seja a sua nacionalidade, estiver domiciliado no Brasil;

II - no Brasil tiver de ser cumprida a obrigação;

III - o fundamento seja fato ocorrido ou ato praticado no Brasil.

Parágrafo único. Para o fim do disposto no inciso I, considera-se domiciliada no Brasil a pessoa jurídica estrangeira que nele tiver agência, filial ou sucursal.

 O segurador sub-rogado enfrentará um réu, transportador, com sede no Brasil (inciso I), lembrando-se que para o conceito de sede, no caso de pessoa jurídica estrangeira, entende-se também “agência, filial ou sucursal” (Parágrafo único).

 Além disso, tem-se que o contrato de transporte internacional de carga normalmente é celebrado no Brasil, ajustando-se bem ao quanto disposto no inciso II, ou seja, de que “o fundamento seja fato ocorrido ou ato praticado no Brasil”.

 O inciso II (“no Brasil tiver que ser cumprida a obrigação”) não se cogita neste momento, porque o alvo do estudo é a não exigência do protesto do recebedor (art. 754 do Código Civil) no exterior, sendo, porém, evidente que ele se aplica a todos os casos de processo de importação.

 Diante do teor do art. 21, impossível o não reconhecimento da jurisdição brasileira em favor do segurador sub-rogando, sendo conveniente lembrar que o presente artigo se conecta ao conteúdo normativo e cogente da garantia constitucional fundamental do acesso ao Poder Judiciário no Brasil.

 Aliás, vale a pena lembrar que a jurisdição nacional não poderá ser afastada para o segurador sub-rogado, nem mesmo por ato voluntário do segurado em favor do foro estrangeiro, haja vista o quanto disposto no § 2º, do art. 786, do Código Civil, que diz expressamente: “É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo”.

 Ora, a jurisdição nacional não motiva a aplicação do Direito brasileiro no exterior.

 Se a regra do art. 754 do Código Civil só é válida e eficaz para sinistros de transportes constatados no Brasil, é certo que ela não poderá ser exigida em litígio em trâmite no Brasil, mas com ato-fato jurídico apurado no exterior.

 Dentro dessa cadeia lógica, é certo afirmar que eventual regra equivalente à do protesto do recebedor no Direito estrangeiro não poderá ser igualmente exigida em um litígio no país.

Por isso, irrelevante o conhecimento do Direito de outro país a respeito de figura análoga ao do protesto do recebedor brasileiro.

O litígio judicial no Brasil fundado em inadimplemento de obrigação contratual de transporte no exterior não obriga a observância da figura do protesto do recebedor, seja segundo o Direito brasileiro, seja conforme o Direito de qualquer outro país.

Para que o litígio seja forte, bastará ao interessado provar o nexo de causalidade e o dano (prejuízo), sendo certo que qualquer meio de prova é hábil para tanto.

Outra questão a ser enfrentada, independentemente da não incidência da regra do art. 754 do Código Civil em sinistros de transportes internacionais de cargas apurados no exterior é a seguinte: a não apresentação do protesto pelo segurado em nada prejudica o direito de regresso do segurador. Ora, essa inteligência do Direito emerge da interpretação teleológica e sistêmica do §2º do art. 786, também do Código Civil.

O legislador usou a palavra “ato” para designar a conduta ineficaz do segurado que diminua ou extinga o amplo direito de regresso do segurador. O ato pode ser comissivo ou omissivo. O Direito pune com rigor as duas espécies e trabalha muito bem com o conceito de responsabilidade civil por omissão. A omissão, quando juridicamente relevante, gera efeitos jurídicos diferentes, sendo um delas a impossibilidade de o segurador sub-rogado se ver prejudicado na busca do ressarcimento por conta da conduta do segurado.

Nunca é demais lembrar que a lei de modo taxativo, ao arrepio de qualquer interpretação subjetiva, transfere, pela sub-rogação, apenas direitos e ações, não ônus de qualquer natureza, especialmente um nascido de omissão.

 Assim, repita-se, independentemente de a regra do protesto do recebedor não ser exigível no exterior, tem-se que, se o segurado não o apresentar contra o transportador, ainda assim subsistirá o direito de regresso do segurador, uma vez que seu ato omissivo se ajusta perfeitamente ao conteúdo do § 2º, do art. 756, do Código Civil.

Existem precedentes judiciais a respeito e a lógica jurídica é pilar desse entendimento, edificado no solo firme da boa-fé objetiva e que tem por núcleo as legítimas preservações de direitos do segurado (recebimento da indenização de seguro) e do segurador sub-rogado (busca do ressarcimento), sem efetivo prejuízo ao transportador marítimo, causador do dano, porque continuará com sua garantia de defesa preservada, acrescida, aliás, de substancial vantagem, o deslocamento do ônus da prova para a autor da ação, uma vez que a presunção legal de responsabilidade será deslocada para a necessidade da caracterização da sua culpa.

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Trata-se de um argumento jurídico muito sólido, diretamente enfronhado na lei, e que se tem por certo, firme e valioso nos sinistros apurados no Brasil (nos quais a regra do protesto do recebedor sempre incide) e, subsidiário, nos sinistros apurados no exterior, porquanto inaplicável a regra brasileira. Neste caso, o dos sinistros no exterior, o presente argumento se faz interessante para combater qualquer erro de interpretação e aplicação do Direito quanto à não extraterritorialidade das regras brasileiras, reforçando-se a invulgar importância do ressarcimento em regresso.

Por fim, ainda sobre o protesto do recebedor, nunca é demais lembrar, em linhas muito sumárias que:

1. A jurisprudência admite que alguns instrumentos formais e legais, presumidamente idôneos, façam-lhe as vezes, destacando-se: o Termo de Faltas e Avarias dos depositários, o Siscomex-Mantra da Infraero e os Boletins de Ocorrências das Polícias Federal, Estaduais, Rodoviárias (Federal ou Estaduais).

2. Recebedor não é necessariamente o consignatário da carga, o segurado, mas qualquer pessoa natural ou jurídica que com ela tenha tido algum contato. Isso sempre foi uma sólida construção doutrinária, abraçada pela jurisprudência, e agora prestes a se tornar regra legal em sentido estrito, conforme o art. 74, V, do PLS nº 75/2018 (Lei do transporte rodoviário de cargas), que determina: “recebedor: aquele que recebe a carga do transportador, podendo ou não ser o destinatário”.

3. O protesto pode ser efetuado pelo despachante aduaneiro do dono da carga (segurado), pelo comissário de avarias, pelo regulador do sinistro e pelo próprio segurador. Qualquer pessoa, natural ou jurídica, com legítimo interesse no transporte de uma carga tem capacidade para apresentar o protesto.

4. Não se exige contra atos do depositário o protesto do recebedor, uma vez que o art. 754 se encontra no rol de regras do Código Civil que tratam do contrato de transporte, e não da obrigação de depósito.

5. Em caso de operação logística de transporte de carga, recomendam a cautela e a prudência que o protesto seja lançado contra todos os seus atores, mas, não sendo isso possível, é juridicamente defensável a ideia de que seja aproveitável a todos o protesto formalizado contra somente um dos participantes.

Interessante observar que a sub-rogação redesenha a situação jurídica de qualquer lide, de tal modo que o respeito ao seu conceito, às regras legais que a informam e ao Enunciado de Súmula nº188 do Supremo Tribunal Federal [O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro] se sobrepõem à qualquer outra questão, contratual e até mesmo legal, levando-se em elevada conta que o segurador sub-rogado, ao defender seus legítimos direitos e interesses em Juízo, o faz também em favor do colégio de segurador (princípio do mutualismo) e, de forma reflexa, de toda a sociedade, por conta da dimensão econômico-social do negócio de seguro (função social da obrigação). 

Posto tudo isso, lembrados os itens acima, existe da parceria MCLG-SMERA-BSI plena segurança em afirmar que a regra do art. 754 do Código Civil não é exigível no exterior, assim como um litígio, no Brasil, referente a sinistro no exterior, não induz sua aplicação nem a de figura análoga de outro país. Basta apenas algum meio de prova idôneo e razoavelmente robusto acerca da responsabilidade do transportador internacional de cargas.

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Sobre o autor
Paulo Henrique Cremoneze

Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CREMONEZE, Paulo Henrique. O protesto do recebedor e jurisdição.: A limitação do art. 754 do CC à jurisdição brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5880, 7 ago. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68651. Acesso em: 2 nov. 2024.

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