1. INTRODUÇÃO
Neste artigo analisaremos um inédito tema, cujo estudo se mostra necessário não só em razão de sua relevância estratégica, mas de igual forma nos aspectos jurídico e social, ao abordar a problemática do desvirtuado emprego da Polícia Militar durante o pleito eleitoral, haja vista que em alguns Estados, não obstante a sua missão institucional de realizar a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública (art. 144, §5º, CF), a Corporação não é empregada na segurança da população e nem em ações preventivas para coibir a prática de crimes eleitorais, mas na vigilância de urnas eleitorais.
Assim, ao longo deste estudo, examinaremos o tema em seus vários aspectos, desde as atribuições da Polícia Militar e da Justiça Eleitoral, passando pela análise da legislação que autoriza a requisição da Polícia Militar no auxílio da Justiça Eleitoral e as consequências do emprego desvirtuado da Corporação durante o pleito eleitoral e, por fim, apresentaremos algumas sugestões sobre como se garantir a segurança das urnas e das instalações dos locais de votação sem retirar a Polícia Militar da sua missão constitucional e nem fragilizar a segurança da população e as ações preventivas contra a prática de crimes eleitorais.
2. POLÍCIA MILITAR
No Brasil, a Polícia Militar é a Polícia Preventiva de Segurança Pública que atua, lastreada no seu poder discricionário de polícia, realizando ações que visam prevenir a prática de delitos e as condutas ofensivas à ordem pública.
A Constituição Federal em seu art. 144, § 5º determina que às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública. Nesse aspecto, cumpre notar que, embora seja a polícia preventiva por excelência, a Polícia Militar também atua repressivamente quando se depara com a ocorrência de ilícito penal que não conseguiu evitar, na chamada “repressão imediata[2]”, visando ao restabelecimento da ordem pública violada. Em relação às polícias militares cumpre ainda destacar que, por mandamento constitucional, as instituições militares estaduais são forças auxiliares e reserva do Exército Brasileiro (art. 144, §6º, CF)[3].
3. O PAPEL DA JUSTIÇA ELEITORAL
A previsão constitucional da Justiça Eleitoral encontra-se nos artigos 118 a 121 da Carta Magna. O art. 118, I a IV, CF, assevera que a Justiça Eleitoral é composta pelo Tribunal Superior Eleitoral, pelos Tribunais Regionais Eleitorais, pelos juízes eleitorais e pelas juntas eleitorais. Em apertada síntese, poderíamos dizer que a Justiça Eleitoral tem o objetivo de organizar e fiscalizar as eleições.
Doutrinariamente, a Justiça Eleitoral desempenha quatro funções: jurisdicional, administrativa, normativa e consultiva[4]. Dentre essas, a função administrativa é a que tem maior relevância em nosso estudo, pois está relacionada diretamente à preparação, organização e administração do processo eleitoral, ocasiões em que a Justiça Eleitoral necessita do auxílio de outras instituições, entre elas a Polícia Militar.
4. FUNDAMENTO LEGAL PARA O EMPREGO OPERACIONAL DA POLÍCIA MILITAR NO AUXÍLIO À JUSTIÇA ELEITORAL
O Código Eleitoral (lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965) prevê expressamente que a Justiça Eleitoral tem competência para requisitar auxílio de força pública. Em seu art. 23, XIV, a lei utiliza a expressão “força federal”, já no art. 30, XII, emprega apenas a expressão “força”.
Destarte, a expressão “força federal” diz respeito à força pública federal, compreendendo as instituições de segurança pública federal (Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Ferroviária Federal) e as Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica). Nessa linha de raciocínio, entendemos que a Força Nacional de Segurança Pública também se encontra no âmbito de força federal.
Por sua vez, o termo “força” (art. 30, XII, CE) refere-se à força pública estadual ou municipal, ou seja, as instituições de segurança do Estado (Polícia Militar, Polícia Civil e Corpo de Bombeiro Militar) ou do Município (Guarda Municipal).
Também se faz necessário apontar que por determinação do art. 23, XIV do Código Eleitoral, apenas o Tribunal Superior Eleitoral poderá requisitar diretamente o auxílio de força federal:
Art. 23 - Compete, ainda, privativamente, ao Tribunal Superior:
(...)
XIV - requisitar a força federal necessária ao cumprimento da lei, de suas próprias decisões ou das decisões dos Tribunais Regionais que o solicitarem, e para garantir a votação e a apuração; (BRASIL, 1965)
No que concerne à força pública estadual ou municipal, cabe ao Tribunal Regional Eleitoral a requisição do seu auxílio. Em sendo necessário o apoio de força federal, o Tribunal Regional fará solicitação ao TSE, conforme determina o art. 30, XII, do Código Eleitoral:
Art. 30. Compete, ainda, privativamente, aos Tribunais Regionais:
(...)
XII – requisitar a força necessária ao cumprimento de suas decisões e solicitar ao Tribunal Superior a requisição de força federal; (BRASIL, 1965)
Dessa forma, a Polícia Militar, na condição de força pública estadual, será requisitada através de solicitação escrita do presidente do Tribunal Regional Eleitoral.
Nota-se que art. 23, XIV e o art. 30, XII do Código Eleitoral trazem expressões muito genéricas, além de não especificarem a forma de emprego operacional da força pública quando requisitada pela Justiça Eleitoral.
Diante dessa lacuna, buscaram-se normas que estabelecessem delimitações mais precisas acerca da forma de emprego da força pública em auxílio à Justiça Eleitoral. Porém, sobre essa questão, encontramos apenas a Resolução nº 21.843, de 22 de junho de 2004 do Tribunal Superior Eleitoral que dispõe sobre a requisição de força federal.
Tomando por base a Resolução supramencionada, podemos afirmar que, embora essa norma refira-se apenas ao emprego da força federal, ela também serve como parâmetro acerca do emprego da força pública estadual ou municipal. A Resolução nº 21.843, de 22 de junho de 2004 em seu art. 1º, parágrafo único, estabelece, de forma genérica, que “o contingente da força federal, quando à disposição da Justiça Eleitoral, observará as instruções da autoridade judiciária eleitoral competente”.
Destarte, observa-se também que a expressão “observará instruções da autoridade judiciária eleitoral competente” ainda não define contornos precisos sobre a atuação da força federal quando à disposição da Justiça Eleitoral. Apenas no art. 3º da Resolução nº 21.843, de 22 de junho de 2004, encontramos, finalmente, um balizamento claro sobre o emprego operacional da força pública à disposição da Justiça Eleitoral, ainda assim, referindo-se apenas à atuação da Polícia Federal ao determinar que esta instituição “exercerá as funções que lhe são próprias”:
Art. 3º A Polícia Federal, à disposição da Justiça Eleitoral, nos termos do art. 2º do Decreto-Lei nº 1.064/69, exercerá as funções que lhe são próprias, especialmente as de polícia judiciária em matéria eleitoral, e observará as instruções da autoridade judiciária eleitoral competente. (BRASIL, 2004, grifo nosso)
Assim, partindo do princípio elencado no art. 3º da Resolução nº 21.843, de 22 de junho de 2004, podemos estabelecer o entendimento de que a força pública (federal, estadual ou municipal) à disposição da Justiça Eleitoral deverá, obrigatoriamente, “exercer as funções que lhe são próprias”, ou seja, irá atuar dentro do limite de suas funções institucionais.
Desse modo, quando à disposição da Justiça Eleitoral, a Polícia Militar deverá realizar a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; a Polícia Federal e a Polícia Civil atuarão como polícia judiciária; a Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Ferroviária Federal realizarão o patrulhamento ostensivo; a Guarda Municipal fará a proteção de seus bens, serviços e instalações cedidos à Justiça Eleitoral; e as Forças Armadas realizarão operações de garantia da lei e da ordem.
Por conseguinte, entendemos que não cabe à Polícia Militar a vigilância de urnas ou a guarda dos locais de votação, tanto por não ser sua função institucional bem como pelo fato de que esse desvirtuado emprego da Corporação tem causado enorme prejuízo à população e à lisura do processo eleitoral, como demonstraremos adiante.
Nessa senda, é preciso, pois, e antes de mais nada, destacar que não existe nenhuma previsão em lei ou Resolução do TSE estabelecendo que a vigilância de urnas e do local de votação é atribuição da Polícia Militar. Não sendo demasiado lembrar que, mesmo se existisse uma Resolução do TSE nesse sentido, ela estaria extrapolando o poder normativo da Justiça Eleitoral. A esse respeito, valem aqui as palavras abalizadas de Manuel Carlos de Almeida Neto[5]:
“o poder regulamentar e normativo da Justiça Eleitoral deve ser desenvolvido dentro de certos limites formais e materiais. Os regulamentos eleitorais só podem ser expedidos segundo a lei (secundum legem) ou para suprimir alguma lacuna normativa (praeter legem). Fora dessas balizas, quando a Justiça Eleitoral inova em matéria legislativa ou contraria dispositivo legal (contra legem), por meio de resolução, ela desborda da competência regulamentar, estando, por conseguinte, sujeita ao controle de legalidade ou constitucionalidade do ato”
Estabelecidas essas considerações acerca do tema em exame, necessário se faz registrar que em alguns Estados verifica-se o emprego desvirtuado da Polícia Militar na vigilância de urnas e dos locais de votação, como ocorre, por exemplo, no Piauí, Maranhão, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Alagoas, Paraíba, Goiás e Amazonas.
Por outro lado, em outras Unidades Federativas é cediço que a missão institucional da Polícia Militar é o policiamento ostensivo e não a vigilância de urnas ou a guarda dos locais de votação. Nesse aspecto, merece registro o Parecer do Tribunal de Contas da União - TCU[6] em que se destaca a incompatibilidade entre a missão institucional da Polícia Militar (policiamento ostensivo) e o serviço de vigilância de urnas desejado pelo TRE:
Para a Coordenadoria de Controle Interno, a contribuição da Polícia Militar não se adequaria à figura do convênio, uma vez que a Justiça Eleitoral pretenderia a prestação dos serviços de segurança para a guarda das urnas e dos locais de votação e a Polícia teria a missão institucional do policiamento ostensivo.
Nessa linha de raciocínio, cabe apontar que sequer através de convênio se poderá empregar a Polícia Militar no serviço de vigilância de urnas ou guarda dos locais de votação. Essa atividade só poderá ser realizada pela Corporação em situações excepcionais, quando houver perigo real ou iminente de atentado contra as instalações do local de votação, hipótese em que a Polícia Militar estaria atuando dentro da sua missão institucional.
Não se pode olvidar que vigora no Estado Democrático de Direito o princípio da legalidade, o qual, no âmbito da Administração Pública, é princípio reitor (art. 37, caput, CF), de forma que o emprego desvirtuado de integrantes da Polícia Militar para vigiar urnas está fora do âmbito de sua missão institucional caracterizando verdadeiro desvio de finalidade. Daí a lembrança da inafastável lição de Caio Tácito[7]: “não é competente quem quer, mas quem pode, segundo a norma de direito”.
5. A DESVIRTUAÇÃO DO EMPREGO DA POLÍCIA MILITAR DURANTE O PLEITO ELEITORAL E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA A POPULAÇÃO E PARA A LISURA DO PLEITO ELEITORAL
A Polícia Militar, como enfatizamos ao longo deste artigo, tem a missão constitucional de realizar a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública. Com efeito, em razão do quantitativo do seu efetivo e da especialidade de sua atuação (polícia ostensiva), a Corporação constitui-se num poderoso instrumento para garantir a ordem e a segurança da população durante o pleito eleitoral, bem como para coibir a prática de crimes ou ilícitos eleitorais. Acerca da distinção entre crime e ilícito eleitoral, aponta com clareza Cícero Robson Coimbra Neves[8]:
Ilícitos eleitorais são aqueles que, embora contrariem as leis eleitorais, não são configuradores de delitos. Ilícitos penais eleitorais, por sua vez, são aqueles que não só contrariam a lei eleitoral, mas, por razões de política criminal, quis o legislador cominar a eles uma pena, caracterizando-os como crimes eleitorais
Além de atuar na segurança da população e, por iniciativa própria, realizar ações preventivas para coibir a prática de crimes ou ilícitos eleitorais, a Polícia Militar também auxilia a Justiça Eleitoral realizando diligências, dentro das suas funções institucionais, quando determinadas pelos juízes eleitorais.
Porém, em alguns Estados, durante o pleito eleitoral, a Corporação é empregada na vigilância de urnas, situação que vem trazendo grande prejuízo à segurança da população, à ordem pública e à lisura da eleição, haja vista que grande parte do efetivo disponível da Instituição é retirado do policiamento e empregado nessa atividade de vigilância.
Para termos a dimensão real dessa problemática, merece registro o caso do Estado do Piauí no que tange à quantidade de policiais militares que será empregada na vigilância de urnas no pleito eleitoral de 2018. Assim, de um efetivo de 5.919 policiais militares, 3.608 (aproximadamente 61% do efetivo da PM/PI) serão utilizados na vigilância de urnas eleitorais nos 3.608 locais de votação existentes no Estado[9].
Nesse aspecto, é importante lembrar que situação semelhante a que ocorre no Piauí também se visualiza em outros Estados da Federação, como se observa a partir de dados colhidos na internet. Assim, na Paraíba para as eleições de 2018, “mais de 2,5 mil policiais militares farão segurança para eleições no agreste da PB[10]”. Em Sergipe, no pleito eleitoral de 2016, “mais de 3 mil policiais garantirão segurança na eleição[11]”. No Rio de Janeiro nas eleições de 2016, onde “esquema de segurança das urnas tem quase 10 mil policiais no 2º turno, os militares vão trabalhar exclusivamente na escolta e guarda das urnas eletrônicas[12]”. No Amazonas, onde “PM emprega efetivo de 6 mil homens na capital e no interior nas eleições 2016[13]”. No Rio Grande do Norte, também em 2016, onde “mais de 5 mil policiais militares irão trabalhar nas eleições no RN[14]”.
Nesta conjuntura, dentre as consequências desse emprego desvirtuado da Polícia Militar, podemos destacar:
- A prática de crimes eleitorais e outras condutas proibidas durante o pleito eleitoral, especialmente o crime de compra de voto na noite anterior à votação;
- Não efetivação de eventuais diligências determinadas pelos juízes eleitorais, por falta de policiais militares disponíveis para realização dessas diligências;
-Prática de crimes comuns (especialmente contra a pessoa e o patrimônio), posto que praticamente inexistirá efetivo da Polícia Militar realizando a segurança da população.
Outro ponto não menos importante a ser enfocado diz respeito às condições de trabalho a que são submetidos os policiais militares empregados nas vigilâncias das urnas e dos locais de votação. Dessa forma, em regra, 24 horas antes do início do pleito eleitoral, o policial militar deverá estar no local de votação aguardando a instalação da urna. Após o recebimento da urna, o policial militar fará a guarda do equipamento até o início da votação, momento em que o policial militar permanecerá nas proximidades do local de votação a 100 metros da seção eleitoral e não poderá aproximar-se do lugar da votação, ou dele penetrar, sem ordem do presidente da mesa, em observância ao art. 141, do Código Eleitoral.
Destacando-se ainda que o policial militar só poderá se ausentar do local da votação após o encerramento do pleito e retirada das urnas pelos técnicos da Justiça Eleitoral. Assim, desde a chegada no local da votação aguardando a instalação das urnas eleitorais e até a retirada destas, o policial militar trabalha em média 36 horas ininterruptas, isso sem levar em conta o tempo de viagem daqueles policias militares que se deslocam em ônibus institucionais da Capital do Estado para as longínquas cidades do interior.
Após as considerações apresentadas ao longo deste artigo e diante dos prejuízos causados à população e ao interesse público, fica patente que a retirada de parte considerável do efetivo da Polícia Militar para empregá-lo na vigilância de urnas eleitorais é inaceitável sob todos os aspectos.
Em razão desse cenário, entendemos que a situação enseja que o Ministério Público, diante de sua essencial e nobre função de zelar pelo cumprimento do ordenamento jurídico, como custos legis, e incumbido da “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, caput, da CF), esteja atento para impedir, de pronto, o uso desvirtuado de integrantes da Polícia Militar em situação que refoge às suas atribuições, na guarda de urnas e dos locais de votação durante o pleito eleitoral, sob pena de prejuízo evidente à preservação da ordem pública e ao policiamento de que carece a população, atividade esta que, indiscutivelmente, configura a garantia de um direito fundamental ao cidadão, que é a sua segurança pública.