DOS COMPORTAMENTOS INDIGNOS. POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL SOBRE A MEAÇÃO
A jurisprudência do Rio Grande do Sul já discutiu em algumas oportunidades o direito de recebimento de meação, quando um cônjuge matou o outro. A questão é intrigante, sendo que em sede de homicídio entre cônjuges a indignidade estabelecida em lei atinge unicamente a herança, mas não a meação, assim afirmou a 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul22, em 22 de junho de 2017:
Considerando que a meação não decorre de direito sucessório, mas, isso sim, de direito próprio, pois ‘os bens que um cônjuge leva para o casamento se fundem com os trazidos pelo outro, constituindo uma única massa, e não voltando à propriedade originária quando do desfazimento do matrimônio’, sopesada a clareza do art. 1.814. do Código Civil Brasileiro no sentido de que a declaração de indignidade visa afastar a percepção do quinhão por herdeiro, com a devida vênia, não comporta reparos a sentença acoimada, que julgou improcedente o pedido inicial.
Referido processo tratava-se de questão de grave ofensa moral e física23 de um cônjuge a outro, ou seja, o homicídio. Na visão do presente artigo, sobre a configuração de relacionamento abusivo, o fato de os cônjuges serem casados, inclusive, pelo regime de comunhão universal de bens, não deve ser impeditivo à exclusão deste regime, excepcionando-se a regra da comunicabilidade absoluta dos bens e exigindo, por fatores legais, éticos e morais o demonstrativo do esforço comum (material) por parte do cônjuge abusador, no caso assassino, sob pena de perda da meação. Prevalecendo-se, evidentemente, a regra do regime para o cônjuge ou companheiro que não praticou o ato de abuso.
Importante analisar a decisão da Desembargadora Revisora, Maria Berenice Dias, no processo 70005798004 do Tribunal do Rio Grande do Sul24 em que uma ex-esposa buscava excluir da partilha de bens no divórcio o direito de seu ex-marido que havia matado o sogro. Ao caso aplicava-se o Código Civil de 1916, assim, o marido que não era herdeiro, não seria atingido pela exclusão de indignidade estabelecida no art. 1595, I do CC de 191625, favorecendo-se em processo divórcio cumulado com partilha de bens, em razão de ter celebrado o casamento sob o regime de comunhão universal de bens. Muito embora, atualmente estenda-se a indignidade ao cônjuge estabelecida no atual art. 1814. CC de 200226, pertinente a abordagem interpretativa da Desembargadora. Neste processo o relator e o Ministério Público foram contrários a tese firmada pela revisora, sustentando que a meação não era atingida pelo art. 1595, I, do CC de 1916. No voto vencedor que foi da revisora prevaleceu a tese de que o legislador, não pode cogitar de todas as hipóteses e, portanto, o decisor, na sua tomada de posição, deve considerar, naqueles casos omissos, os aspectos éticos, relevantes, morais, juntamente com os fundamentos legais:
Não se pode olvidar que não há plenitude do ordenamento jurídico, prova disso é que, modo expresso, tanto o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil quanto o art. 126. do Código de Processo Civil determinam que a Justiça aprecie todas as questões que lhe são postas. Em havendo omissão da lei, por evidente que a solução não é negar a pretensão, pois a própria lei dá o caminho: analogia, costumes e princípios gerais do direito. (...) Ainda que in casu não se possa aplicar o novo Código, cabível atentar que essa ampliação do dispositivo revela a aceitação da diretriz sinalizada pela doutrina. Confesso que tenho enorme dificuldade em fazer distinguir nos elencos legais se o rol é enumerativo, taxativo ou exemplificativo. No momento em que a lei prevê hipóteses - ainda que hipóteses de exclusão - nunca se pode ter o mesmo como exaustivo, porque, às vezes a imaginação - ou a crueldade do ser humano, como no caso - vai além da previsão do legislador. (...) Assim, se há omissão de norma legal, deve sempre que prevalecer o princípio consagrado pelo legislador que, indiscutivelmente, é o de não permitir a quem atenta contra a vida de outrem possa dele receber alguma coisa, seja como sucessor, seja como cônjuge ou companheiro do sucessor, Essa é a intenção do legislador e a função da Justiça é exatamente fazer incidir a orientação ditada pela lei. Aliás, para isso é que somos juízes, para fazer justiça segundo os princípios que regem o sistema jurídico. Não somos, como dizia Montesquieu: la bouche de la loi, juízes que simplesmente se limitam a repetir e aplicar a norma contida no elenco legal, permitindo que se conviva com a injustiça. Somos Juízes de Direito, integramos um Tribunal de Justiça. Confesso que fere meu senso de justiça fazer uma injustiça dessa ordem. No dia em que tomei posse como magistrada, jurei fazer justiça, não aplicar a lei de forma mecânica e casuísta.
(...) Se para isso, quem sabe, tiver que afrontar a lei, a dar ensejo talvez de ser acusada de ter me tornado adepto da nominada justiça alternativa, paciência. Se for esse a qualificativo que mereço, vou aceitar, mas não posso permitir é o locupletamento de alguém com a própria torpeza.
A questão trazida, especificamente, de homicídio, apresenta-se de fácil assimilação, no que se refere ao inequívoco conflito com o sentido de justiça. Apesar de que, como demonstrado, a interpretação jurisprudencial encontre espaço, majoritariamente, para preservar o direito da meação do agressor. Contudo, ao operador do direito é possível utilizar da analogia para afastar eventual direito de agressor que atenta gravemente contra a vida, também, não somente em se tratando de homicídio, mas aos casos de grave ofensa a vida e à dignidade, ou seja, nos casos de relações conjugais abusivas.
DO ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL PELA EXCEPCIONALIDADE DA REGRA DA PRESUNÇÃO ABSOLUTA NO REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS
A 11ª Câmara do Tribunal de Justiça do Paraná27, em julho de 2016, entendeu pela possibilidade de excepcionar a regra da presunção absoluta de bens no regime de comunhão parcial de bens, alicerçando em sua fundamentação elementos de que um dos cônjuges sofreu ameaças através de boletim de ocorrência e medidas protetivas, também, que não contribuiu financeiramente, em razão do desemprego:
Certo é que a contribuição pode se dar também de outras formas que não somente financeira, cada qual de acordo com suas possibilidades e disponibilidades, importando a finalidade comum, que no caso restou cristalina, qual seja, de adquirirem a residência conjugal.
Contudo, in casu há indícios de contribuição unilateral, que retira a presunção legal decorrente do regime de comunhão parcial.
(...)
Por sua vez, o Apelante, que incontroversamente passou mais de um ano desempregado, não demonstrou que cooperou de qualquer forma (ainda que moralmente ou na administração dos demais interesses do casal) para a aquisição do bem.
Ao contrário. Em mov. 38.12. e 30.13 inclusive houve a juntada de Boletim de Ocorrência pela Apelada noticiando ameaças por ela sofridas e determinação do Juízo Criminal de medida protetiva a ampará-la. A participação exclusiva de companheira virago não lhe pode cercear de manter em seu patrimônio exclusivo o fruto de seu trabalho. É preciso, no caso excepcional da lide, que o varão demonstre a sua participação e este nada produziu.
Evidencia-se da decisão que o vetor interpretativo foi de que a existência de provas a retirar o suporte de apoio moral (boletim de ocorrência e medida protetiva), relação conjugal abusiva, acarretavam na necessidade de provas do suporte material, da efetiva contribuição no patrimônio em comum. Inexistindo o suporte imaterial e material, excepcionalmente, não aplicou a presunção absoluta do esforço em comum.
DO MOMENTO PROCESSUAL ADEQUADO PARA EXCEPCIONAR A REGRA
Observado que a presunção absoluta de bens no regime de comunhão parcial de bens repercute no campo probatório, deflui de tal compreensão que despicienda a produção de provas, de modo que a simples alegação de que o bem foi adquirido onerosamente durante o período conjugal e não oriundo de sub-rogação, doação ou herança, a divisão deve ser realizada, não se aferindo a contribuição e a efetiva colaboração de cada cônjuge, não se admitindo prova em contrário. Este é o entendimento esposado pelo Superior Tribunal de Justiça e de várias decisões dos Tribunais Pátrios, a exemplo:
TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE TERCEIRO. BEM INDIVISÍVEL. CÔNJUGE. MEAÇÃO. AUSÊNCIA DE ESFORÇO COMUM. PRESUNÇÃO ABSOLUTA. PROVA EM SENTIDO CONTRÁRIO. IMPOSSIBILIDADE. 1. Os bens adquiridos e as obrigações contraídas anteriormente ao matrimônio não se comunicam. Por sua vez, incluem-se na comunhão o patrimônio que sobrevier aos cônjuges na constância do casamento. 2. A interpretação que vem sendo conferida pelo STJ é de que não é possível, no regime de comunhão de bens, provar a ausência de esforço comum, por se tratar de presunção absoluta.
(TRF-4 - AC: 50003748720174047209 SC 5000374-87.2017.4.04.7209, Relator: ANDREI PITTEN VELLOSO, Data de Julgamento: 08/05/2018, SEGUNDA TURMA) grifo nosso
A respeito da presunção absoluta, Washington de Barros Monteiro e Regina Beatriz Tavares da Silva em “Curso de Direito Civil 2 – Direito de Família” (42ª edição, Saraiva, págs. 267. e 268):
É preciso destacar que a comunhão concernente aos bens adquiridos onerosamente na constância do casamento não depende de contribuição financeira direta ou indireta do outro cônjuge. Basta que ocorra a aquisição onerosa do bem durante a comunhão de vidas, independentemente de quem aferiu os recursos para tanto, para que o bem constitua patrimônio comum, ressalvados apenas os valores cuja causa de percepção seja anterior ao casamento ou sub-rogação de bem particular.
O presente trabalho alicerça-se na tese da manutenção da presunção absoluta de esforço comum, quando as partes não trouxerem causa justificadora forte e grave, sendo sua relativização aos casos em que tenha sido alegada sua excepcionalidade na fase de saneamento processual, o que não acarretará surpresas processuais sobre a repercussão probatória e no deslinde do processo.
Não pretende este trabalho cair em erro interpretativo, por isto, a despeito de repetir o argumento, traz-se em outras palavras, para a devida compreensão, de modo que se explica que a presunção absoluta de esforço comum deve ser mantida como regra, se não definido em saneamento do processo sua relativização.
Visto que é descomedida a aplicação de excepcionalidade à regra jurisprudencial de esforço comum em momento outro que não o saneamento do processo, haja vista que a matéria é processual, de instrução probatória28, não se permitindo surpreender a contraparte com a alteração interpretativa.
Frise-se que a presunção absoluta do esforço comum posiciona uma das partes em situação muito cômoda no aspecto probatório, assim, deve ser assegurado a ela, em caso de alteração do desdobramento probatório, a ciência em momento adequado, o que acarretará na necessidade de postura ativa na instrução processual. Mas, caso não haja a prévia definição em saneamento processual, da presunção absoluta ou relativa do esforço comum, deve prevalecer a primeira. Ao julgador é prudente que defina em saneamento processual, sob pena de cerceamento de defesa. Visto que a presunção relativa que admite a prova em contrário e permite a construção da sentença ao livre arbítrio do juiz, repercute no ônus processual dos fatos extintivos, modificativos e impeditivos.
CONCLUSÃO
A presunção do esforço comum na partilha de bens, como demonstrado no presente artigo, tem relevância no Direito de Família e Direito Processual Familiar. O campo probatório da aquisição patrimonial deve ser interpretado em coerência com a modificação da sociedade quanto à dignificação humana, analisando-se o caso concreto, os conceitos de família, de união estável e de casamento, atentando-se quanto à viabilidade de excepcionar a regra da presunção absoluta de bens quando demonstrado um contexto de relação conjugal abusiva em que inclusive não há suporte financeiro pelo cônjuge ou companheiro.
Também, em paralelo, o artigo trouxe a suscitação teórica sobre viabilidade de extensão interpretativa para outros regimes de bens, inclusive, para o caso de comunhão universal de bens, afastando-se, consequentemente, a configuração de vida e esforço em comum, ante o consorte que não contribuiu financeiramente e que pratica ato de elevada repulsa social como o homicídio contra o cônjuge. A despeito de decisões judiciais ampararem a meação do agressor, deve-se aplicar a analogia e interpretação de acordo com princípios constitucionais e do direito de família, para evitar estes casos de flagrante injustiça.
Deste modo, o presente artigo, alicerçado em base jurisprudencial, analogia e em princípios do Direito de Família, trouxe a fundamentação da viabilidade de excepcionar a presunção absoluta do esforço comum no regime de comunhão parcial de bens, quando demonstrada a inexistência de contribuição indireta, a qual exsurge de comportamentos abusivos e também ante a ausência de contribuição financeira.
Consequentemente, suscita que o Direito de Família não pode ser campo para abusadores, aproveitadores e espoliadores, devendo o agredido ser protegido pelo Juiz, não somente em sede de proteção de medidas protetivas, mas também, reinterpretando o esforço em comum, possibilitando que o ofendido ou seus sucessores apresentem provas que impeçam a conclusão da presunção de contribuição indireta ou direta.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato: de acordo com o atual Código Civil, Lei nº 10.406, de 10-01-2002, 3ª edição. Atlas, ano 2011.
CALDERON, Ricardo. Princípio da Afetividade no Direito de Família, Rio de Janeiro, Editora Forense, ano 2017.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 8ª Edição, RT, ano 2011.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, v. 6. – Direito de família, 14ª edição., 14th edição. Editora Saraiva, ano 2017.
FARIAS, Christiano Chaves de, ROSENVALD, Nelson, Curso de Direito Civil, Família, 10ª Edição, Editora JusPodivm, ano 2018.
MADALENO, Rolf. Manual de Direito de Família. Forense, ano 2017.
MONTEIRO, Washington de Barros, e Da Silva, Regina Beatriz Tavares, em “Curso de Direito Civil 2 – Direito de Família”, 42ª edição, Saraiva, ano 2012.
MALUF, Carlos Dabus, MALUF, Adriana Caldas do Rego Dabus. Curso de Direito de Família, 1ªedição.. Saraiva, ano 2015.
NADER, Paulo. Curso de Direito Civil - Vol. 5. - Direito de Família, 7ª edição. Forense, ano 2015.
PEREIRA, Caio Mário Silva. Instituições de Direito Civil - Vol. V - Direito de Família, 25ª edição. Forense, ano 2017.
JASTER, Winderson. www.advogadofamiliacuritiba.com.br
TARTUCE, Flávio. Direito Civil - Vol. 5. - Direito de Família, 12ª edição. Forense, 12/2016.