3. ECONOMIA COMPARTILHADA E COOPERATIVISMO DE PLATAFORMA
Por meio de processos colaborativos denominados “peer-to-peer”, utilizados, exemplificadamente, por plataformas como o “Uber”, “Airbnb”, “Netflix”, “Upwork”, “CrowdFlower”, “Homejoy” e “TaskRabbit”, surgiu uma nova forma de se fazer a economia. Um novo conceito de “economia compartilhada” no qual negócios virtuais conectam consumidores a plataformas virtuais para prestação de serviços no mundo físico/real.
TREBOR SCHOLZ[49] a define como “construtores de pontes digitais” que imbricam “processos extrativos em interações sociais”, ao passo que TOM SLEE[50] a conceitua como uma rede de cooperação humana anônima, impessoal e massificada, de pessoas que nem mesmo se conhecem ou possuem alguma relação, engendrando o surgimento das empresas-plataforma.
Há a adaptação das empresas tradicionais e o surgimento de novas, ou, em outras palavras mais diretas, a adequação do capitalismo “corpo a corpo” ou mesmo daquele de compras virtuais para os novos tempos, para um mundo de relações virtuais, globalizadas e colaborativas, que, conforme a doutrina sleeiana[51], supera o capitalismo contemporâneo no sentido de transformar-se num hipercapitalismo, hiperconsumista, preocupado com as massas e com a revolucionária característica do capitalista não necessitar ser o dono dos meios de produção: a empresa da economia compartilhada não possui patrimônio, propriedades, estoques, almoxarifado ou mesmo empregados. Passou a atuar por plataformas de softwares, páginas na internet e aplicativos de celular para, por meio de parceiros autônomos, vender seu produto/serviço.
Em todas, portanto, no contexto das relações de trabalho, há o elemento comum da contratação de trabalhadores “freelancers” ou autônomos, os quais, unilateralmente, definem sua disponibilidade para o labor, utilizam ferramentas/meios de produção próprios, subordinam-se - recebendo ordens, instruções e avaliações – aos aplicativos e, ao fim, pagam uma porcentagem à essa plataforma, realidade que TREBOR SCHOLZ[52] denomina de “pós-trabalho”. Numa evidente precarização das relações de trabalho e reação do mercado contra o “vínculo de emprego”, o empregado foi transformado em autônomo que, atomizado e distante dos demais trabalhadores de sua categoria, assume, ele próprio, os ônus e os riscos dos negócios, repassando valores às plataformas que, com mínimas estruturas, auferem lucros livres.
Essa condição, por mais perversa que seja ao trabalhador, vem sendo constantemente reconhecida como válida pelos tribunais trabalhistas brasileiros, entendendo-se que a relação havida entre as partes é, de fato, de trabalho autônomo[53].
Através da transformação do empregador típico à figura do “aplicativo” o patrão se despersonalizou no mundo virtual, massificado e globalizado, situação sintetizada por JOSÉ CARLOS DE CARVALHO BABOIN[54] ao qualificar a empresa moderna como “centros de gerenciamento e controle de mão-de-obra” ou “centro de controle e concentração dos lucros” que “sustenta não precisar de trabalhadores, apesar de depender deles para o desenvolvimento de sua atividade comercial”.
Diante desta situação de modificação das relações de trabalho e evidentes prejuízos individuais e coletivos à massa trabalhadora, assumindo-se, na esteira da jurisprudência brasileira que não há vínculo de emprego entre os trabalhadores e as empresas da economia compartilhada, neste artigo se propõe, de acordo com a teoria sleeiana, a cooperativização destes trabalhadores da área da economia compartilhada ou, utilizando a moderna expressão, o avanço do chamado “cooperativismo de plataforma”.
3.1. COOPERATIVISMO DE PLATAFORMA COMO INSTRUMENTO DE CONSECUÇÃO DO BEM VIVER
Considerando que as condições de trabalho estão sendo flexibilizadas e precarizadas, considerando que o trabalhador tem sido visto como um empreendedor de si mesmo e considerando que o movimento cooperativista é uma forma de superação da subordinação do trabalho ao capital por meio da associação livre e igual, a solução lógica e evidente é que esta massa de profissionais liberais, através de cooperativas, se una e preste serviços por plataformas de softwares, páginas na internet e aplicativos de celular próprios.
O que se propõe, portanto, é uma necessária reação às mudanças tecnológicas e globalizantes e aos problemas da economia compartilhada relacionados às condições de trabalho - como reconhece a Organização Internacional do Trabalho[55] – por meio de uma única solução pragmática: ao invés de se discutir a existência ou não de vínculo de emprego e proteções celetistas entre as partes envolvidas, ao invés de se criticar a economia de plataforma, evolui-se na discussão para promover a substituição dos tomadores de serviços (como o “Uber” – verdadeiros intermediadores) por uma relação direta dos próprios prestadores com os consumidores, organizada através de uma cooperativa.
Justificando esta mudança, acrescenta-se que a atual sociedade de massa apresenta evoluções e mudanças de paradigmas tão rápidas no tempo, que o Direito necessita – urgentemente - renovar seus conceitos e a forma de entender a relação de trabalho. Mudança que poderá ser possível a partir do momento em que forem entendidas, pelos juristas, as principais características da contemporaneidade.
Neste sentido, inicia-se com a doutrina de MILTON SANTOS[56] sobre a globalização, para o qual esta propôs uma nova técnica, particular de comportamento e regulamentações, trazendo novas formas de relacionamento, inclusive na estrutura do emprego.
Ato contínuo, menciona-se ALAIN SUPIOT[57] no campo das relações de trabalho para o qual o momento é de “crise do emprego” e de “transformações da gestão” que faz surgir novas categorias de trabalhadores, sem vínculo de emprego ou com o chamado “trabalho independente” que ANDRÉ ARAÚJO MOLINA[58], ao seu turno, entende como reflexo da “pós-modernidade”, engendrando novas relações de trabalho flexíveis, abertas, adaptáveis, plurais, complexas e instantâneas.
Existem, inclusive, diversos exemplos destes tipos de trabalhadores na sociedade atual, tal qual na, Alemanha, com 3 (três) categorias de trabalhadores independente e expressa referência ao “trabalho em regime de subcontratação” pela Organização Internacional do Trabalho em Conferência em junho de 1997.
A atual vida em rede, assim, se inteligentemente utilizada, pode promover a atuação conjunta dos trabalhadores em benefício do seu todo, unindo-os através de plataformas as quais, se gerenciadas aplicando-se os princípios e valores do Bem Viver, possuem enorme condição de se tornar instrumento – prático – de emancipação destes na pirâmide social.
Através da economia compartilhada amolda-se o antigo cooperativismo às novas tecnologias, globalização e virtualização do mundo o qual, adaptado à nova realidade e acrescentando em sua organização os princípios e valores do Bem Viver de relacionalidade, complementariedade, reciprocidade, solidariedade, coletividade, passa reinterpretá-la em seu benefício.
A cultura do compartilhamento, retornando à teoria sleeiana[60], na esteira do que propõe o Bem Viver, permitiu a criação de novos negócios comunitários e solidários, trazendo novos paradigmas para a produção e, especialmente, para a prestação de serviços por profissionais liberais, remodelando o próprio capitalismo nesta esfera, mutação, inclusive, já prevista por JEAN-LOUIS LAVILLE[61]:
Não há um modo único de organização da economia que seja a expressão de uma ordem natural, mas um conjunto de formas de produção e de repartição que coexistem. As representações individuais induzem ações e práticas sociais que as instituições normalizam pela política, delineando o quadro no qual as práticas podem se desenvolver e influindo sobre as representações. As instituições são mutáveis, porque são convenções sociais que experimentam e ao mesmo tempo delimitam o campo das possibilidades; seu estudo permite adquirir a consciência precisa dos fatos e a apreensão, senão a certeza, de suas leis e ajuda também a se distanciar desta “metafísica” de que são impregnadas as palavras em “ismo”, como capitalismo. Afirmar a existência de uma sociedade capitalista equivale a admitir uma homogeneidade no interior do sistema econômico, ao passo que esse se compõe, na realidade, de mecanismos institucionais contraditórios, irredutíveis uns aos outros.
A vida em rede se apresenta, por conseguinte, como um instrumento ótimo para modificar o contexto de prestação de serviços contemporâneo, promovendo, por meio do cooperativismo de plataforma, a negação ao individualismo em voga e atomização dos trabalhadores, além de incentivar uma atuação conjunta destes em benefício de sua categoria, sendo válida a contribuição de JUSSARA BORGES E HELENA PEREIRA DA SILVA[62] a respeito da “competência informacional”, não-linearidade, auto-organização e autopoiese dos sistemas em rede, plenamente compatíveis com os conceitos ora estudados.
Destarte, verifica-se a possibilidade da transição das tradicionais cooperativas em cooperativas de plataforma, as quais traduzem um efetivo instrumento de mudança e de estímulo permanente para emancipação dos trabalhadores para, através desta, modificar a formatação do atual sistema político-econômico-social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da proeminente função do Bem Viver de ser uma nova forma de orientação político-econômico-social que defende uma atuação coletiva e democrática, de integração e solidariedade entre os seres humanos e destes com o meio-ambiente, verifica-se que a economia solidária, representada pelas cooperativas de trabalho, em razão de seus trabalho e da renda, novas estruturas de produção, distribuição, consumo, financiamento e acumulação (de bens ou capital), ao mesmo tempo em que promove a inclusão social combate as novas precárias e perversas formas exploração dos trabalhadores, expropriação dos consumidores, dominação cultural, degradação ambiental, se mostra como um dos principais instrumentos de consecução do Bem Viver no mundo contemporâneo.
Através da adaptação das cooperativas ao contexto atual, transformando-as em cooperativas de plataforma, possibilita-se a organização de novas redes colaborativas e solidárias que, por sua vez, possuem a finalidade de propiciar uma complementariedade entre consumo, comércio, produção, serviços e finanças, em clara resistência e alternativa ao atual sistema pós-capitalista.
O Bem Viver, pois, unido com o cooperativismo de plataforma, configura uma alternativa pragmática e possível para efetiva emancipação da América Latina e de seus trabalhadores, os quais, através do exemplo, podem influenciar positivamente para que a prática seja difundida aos demais continentes e para que o mundo (em todas suas facetas de relações dos seres humanos entre si e destes com o meio ambiente), como conhecemos hoje, possa ser mantido e sobreviver para as gerações futuras.
O tempo é de mudança.