A lei maria da penha e os transgêneros

A jurisprudência abrangente do art.5º da Lei 11.340/06

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4. Conclusão

Uma vez que a lei não se manifesta expressamente para tomar uma posição nesse sentido, toda a discussão nesse aspecto se limita a estudos teleológicos e construções doutrinárias. Não é possível chegar a uma resposta definitiva quando se pergunta sobre a vontade do legislador na edição da lei, todavia, partindo-se das reflexões levantadas pelas várias convenções que inspiraram o texto legal é possível chegar a um objetivo de combate à violência de gênero. Adotada essa perspectiva combativa da violência de gênero, e concluindo-se que a violência contra transgêneros se enquadra nessa categoria, o resultado lógico é pela possibilidade de aplicação da lei a tais casos.

O debate da construção da identidade de gênero é importante principalmente se evidenciarmos que os casos de violência doméstica também ocorrem com os transgêneros e os mesmos não se encontram sob a égide do direito penal, pois este define que qualquer conduta violenta contra a mulher deva ser punida, ou seja, tipificação pura e simplesmente baseada no gênero. Resumindo, o Direito Penal como um instrumento garantidor (e por que não dizer disseminador de condutas) presente em nossa sociedade, corrobora ao binarismo homem-mulher difundido pelo nosso sistema patriarcal. Um texto que trata de maneira importante sobre o assunto, é o artigo “Violência Doméstica e as Uniões Homoafetivas”, da desembargadora Drª. Maria Berenice, do TJRS, cujo foco principal é o art. 5º da referida lei, em que a mesma faz uma interpretação extensiva.

 O nosso ordenamento jurídico, com base em pilares protecionistas garante a liberdade individual de cada pessoa, bem como o seu reconhecimento enquanto integrante do seio social somente reforça o entendimento de um Estado Democrático de Direito e de um Estado garantidor de Direitos, lógica explicada pela condição de vulnerabilidade a que esses grupos são submetidos. E por que não falar também em direitos prestacionais de cunho positivo? Afinal, para garantir a justiça social devem-se sopesar valores constitucionais (ALEXY, 2008) sob a forma de princípios e alargar sua abrangência. 

As transexuais são vitimizadas apenas por pertencerem a um gênero biológico, mas possuir identificação psicológica remetente ao sexo oposto. É preciso desmistificar esses conceitos. Esse artigo tem por objetivo debater a aplicabilidade dos artigos da Lei Maria da Penha às transexuais femininas que sejam vítimas de violência doméstica e familiar. Diante desse diagnóstico, faz-se necessária uma mudança do paradigma no direito: o deslocamento de um paradigma biológico para o paradigma de gênero, utilizando-se de um método que contenha ou forneça ferramentas de análise e interpretação focadas na mulher e no paradigma de gênero. Há uma necessidade de alteração de paradigma, e a inclusão do discurso feminista como nova ótica de se evidenciar o Direito e também “para o sucesso da luta emancipatória das mulheres no campo da ciência e da política do direito”. (BARATTA, 1999, p. 23, grifo nosso). E assim também, por analogia, para os transgêneros.

O Direito Penal foi construído a partir de um “saber masculino onipresente”, na ausência do feminino (ANDRADE, 2004, p. 4) No que tange à vitimização produzida, como aponta Andrade, o sistema penal duplica a violência exercida contra as mulheres, e elas se tornam vítimas da “violência institucional multifacetada” que reproduz a violência estrutural das relações sociais capitalistas (a desigualdade de classe) e patriarcais (a desigualdade de gêneros) ”. (ANDRADE, 2004, p. 90-91). 

O abandono completo de uma ideologia por esta não ser a dominante na sociedade não se constitui apenas uma exclusão per si, mas também como ausência de uma representação estatal, evidenciando direitos prestacionais a que o Estado se ateve a cumprir através da promulgação de nossa atual Constituição, principalmente na seara penalista (ZAFFARONI, 2001, p. 80). A solução, portanto, não é o abandono do Direito Penal, e sim uma construção a partir do próprio fundamento opressor. A idéia é desconstruir o gênero no sentido amplo e no específico, dentro do direito penal, a partir de uma criminologia feminista. Esse é o objeto da reflexão desse artigo, apresentando-se dentro dessa ótica, razões para essa aproximação teórica entre o Direito Penal, a Violência de Gênero e a Lei Maria da Penha aplicada em analogia aos transgêneros como forma de verdadeira inclusão social.


REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. 

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. 2004. Disponível em: <http://danielafeli.dominiotemporario.com/doc/A_soberania_patriarcal_artigo_Vera_Andrade.pdf> Acesso em: 16/05/2016. 

BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In: Campos, Carmen Hein de (Org.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999.

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BRASIL, Lei Maria da Penha. Lei N.°11.340, de 7 de agosto de 2006.

BUGLIONE, Samantha. O dividir da execução penal: olhando mulheres, olhando diferenças in Crítica à Execução Penal. São Paulo : Editora Lumes Juris. 2007.

CAMPOS, Carmen Hein. Razão e Sensibilidade: Teoria feminista do direito e Lei Maria da Penha in Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

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DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 3ª edição. São Paulo: RT, 2012;

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Sobre os autores
Giuliana Tereza Neves Bernardes

Graduada do curso de Direito da UNDB-2017

Luana Cutrim de Araújo Silva

Graduanda em Direito

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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