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O direito fundamental à saúde e os pleitos individuais por fornecimento de medicamentos de alto custo

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21/12/2018 às 16:29
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A judicialização da saúde é, atualmente, um dos temas mais complexos enfrentados pelos profissionais do direito. Nesse sentido, o STF, em 2007, reconheceu a repercussão geral do julgamento do RE 566471 do Rio Grande do Norte, a fim de pacificar a matéria.

Sumário: 1 – Introdução; 2 – A positivação de direitos fundamentais e o Estado democrático de Direito; 3 – Direitos fundamentais na Constituição Federal brasileira de 1988; 4 – O julgamento do Recurso Extraordinário 566.471-RN; 4.1 – O Voto do Ministro Marco Aurélio 4.2 O Voto do Ministro Luís Roberto Barroso; 4.3 O Voto do Ministro Edson Fachin; 5 – Conclusão; 6 – Referências.


1 INTRODUÇÃO

A judicialização da saúde é, atualmente, um dos temas mais complexos enfrentados pelos profissionais do direito. Seja por advogados que pleiteiam em nome de clientes hipossuficientes, ou por juízes que precisam escolher entre uma vida e outra, o tema reflete consequências em todas as instâncias julgadoras do país.

O dever de garantir a saúde, direito fundamental previsto na Constituição Federal de 1988, é de toda a sociedade (família e Poder Público) e de aplicabilidade imediata. Assim, o pleito judicial por sua efetivação se torna uma das principais medidas utilizadas por aqueles que necessitam da assistência estatal. Em todo o país é possível encontrar decisões nos Tribunais estaduais que condenam o Estado e os municípios à concessão de fármacos – principalmente os de alto custo. Nos Tribunais superiores, a realidade não é outra.

Apesar de ser um direito fundamental e, portanto, basilar do próprio Estado Democrático de Direito (como discutiremos abaixo), não é possível fechar os olhos para os problemas gerados pela excessiva judicialização.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, no ano de 2007, reconheceu a repercussão geral do julgamento do RE 566.471 do Rio Grande do Norte, a fim de pacificar a matéria e estabelecer critérios que orientem e confrontem os problemas da judicialização da saúde.

No presente artigo, trataremos da importância da positivação de direitos fundamentais por meio da Constituição, demonstrando a sua profunda ligação com a construção do Estado Democrático de Direito. Posteriormente, demonstraremos os números ligados à judicialização da saúde, apontando o crescimento de mais de 500% nos gastos do Ministério da Saúde para o atendimento de demandas judiciais.

Focando o debate do julgamento do RE 566.471, apresentaremos os votos já proferidos por três ministros do STF, apontando as propostas e critérios sugeridos, os quais almejam pacificar a matéria concedendo segurança jurídica aos pacientes e ao Poder Público. Por fim, tentaremos apontar qual das propostas apresentadas é vista, na nossa concepção, como a mais adequada à realidade brasileira.


2 A POSITIVAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO           

Apesar de não ser uma relação costumeiramente feita no contexto jurídico, a ligação entre direitos fundamentais, Constituição e Estado de Direito é profunda[1]. Sarlet (2018) ensina que os núcleos das primeiras Constituições foram construídos a partir da ideia de limitação do poder estatal por meio da garantia de direitos fundamentais e da separação de poderes.  Como exemplo, o autor aponta o art. 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, o qual previa a impossibilidade de existência de uma Constituição em uma sociedade na qual direitos não fossem garantidos e os poderes não fossem devidamente separados.

A partir dessa concepção, um Estado que se pretenda intitular “constitucional” deve, essencialmente, integrar – ao lado do sistema de governo e da organização do poder – os direitos fundamentais à sua estrutura formal e material.  Ainda, segundo Sarlet (2018, p. 49) “o Estado constitucional determinado pelos direitos fundamentais assumiu feições de Estado ideal, cuja concretização passou a ser tarefa permanente”.

Além de se encontrar vinculados à limitação do poder do Estado, os direitos fundamentais constituem, também, os critérios para a própria legitimação do Estado. Nesse sentido, temos que

[...] todos os direitos fundamentais equivalem a vínculos substanciais que condicionam a validade substancial das normas produzidas no âmbito estatal, ao mesmo tempo em que expressam os fins últimos que norteiam o moderno Estado constitucional de Direito (SARLET, 2018, p. 60).

Portanto, através da garantia de direitos fundamentais, que significam os parâmetros e limites da atuação do Estado, pode-se construir um verdadeiro Estado de Direito, haja vista que,

Existe um estreito nexo de interdependência genético e funcional entre o Estado de Direito e os direitos fundamentais, uma vez que o Estado de Direito exige e implica, para sê-lo, a garantia dos direitos fundamentais, ao passo que estes exigem e implicam, para sua realização, o reconhecimento e a garantia do Estado de Direito (PÉREZ LUÑO, 1995, p. 19 apud SARLET, 2018, p. 61).

A positivação de direitos fundamentais permite, desta maneira, que os indivíduos se autodeterminem a partir dos ideais de igualdade e dignidade, o que provoca certa “homogeneidade social” e segurança, já que são garantias para a coletividade e não apenas para indivíduos isolados[2]. Por este feito, concluímos que a posição dos direitos fundamentais é de “condição de existência e medida de legitimidade de um autêntico Estado Democrático e Social de Direito” (SARLET, 2018, p.63).


3 DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988

Fundamentado na concepção de importância dos direitos fundamentais em um Estado Democrático de Direito, como exposto, é necessário apontar brevemente o papel da Constituição Federal de 1988 na expansão e construção de tais direitos no Brasil.

O contexto político e social do Brasil, no período que antecedeu a abertura da Assembleia Nacional Constituinte de 1987, foi marcado por 21 anos de ditadura militar. O autoritarismo, a ausência de direitos e a restrição de liberdades (seja de pensamento ou de expressão), além da extrema violência vivida nesse contexto, tornou o processo de redemocratização do país um período de revindicações de diversas naturezas (social, econômica e cultural).

[...] a relevância atribuída aos direitos fundamentais, o reforço do seu regime jurídico e até mesmo a configuração do seu conteúdo são frutos da reação do Constituinte e das forças sociais e políticas nele representadas, ao regime de restrição e até mesmo de aniquilação das liberdades fundamentais (SARLET, 2018, p. 67)

Diante da grande gama de revindicações e da ausência de um anteprojeto sistematizado que conflitasse com aquele apresentado, Sarlet (2018) afirma que certa desordem e insegurança se instauraram nos trabalhos da Constituinte. Ainda segundo o autor, esse contexto se refletiu, também, na positivação dos direitos fundamentais. Para ele, as três características atribuídas à Carta de 1988 podem ser extensivas ao título dos direitos fundamentais, sendo elas: o caráter analítico, o pluralismo e o forte cunho programático.

 O caráter analítico e regulamentador da Constituição se expressa diante da grande quantidade de artigos (246) e disposições transitórias (74) nela previstos. Apenas no Título II, que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais, temos 07 artigos, 06 parágrafos e 109 incisos. Para Sarlet (2018, p. 66) tal característica representa a “grande desconfiança em relação ao legislador infraconstitucional” e uma busca por fixar tais “reivindicações e conquistas contra uma eventual erosão ou supressão pelos Poderes constituídos”.

Quanto ao pluralismo, Sarlet (2018) aduz que o legislador Constituinte buscou conciliar e acolher as ideias e posicionamentos políticos conflitantes que se colocavam naquele contexto. Ademais, o pluralismo se encontra também no título II da Carta, já que se reconhecem, junto dos clássicos, outros direitos como os políticos, sociais, de liberdade, entre outros.

Por fim, o caráter programático da Constituição de 1988 estaria expresso nas diversas disposições que estabeleceram programas, objetivos, tarefas que deveriam ser observados pelos legisladores e implementados pelo Poder Público.

Sarlet (2018) afirma que, apesar de diversos pontos passíveis de críticas, a Constituição de 1988 permite que os direitos fundamentais experimentem,

[...] o seu melhor momento na história do constitucionalismo pátrio, ao menos no que diz com seu reconhecimento pela ordem jurídica positiva interna e pelo instrumentário que se colocou à disposição dos operadores do Direito, inclusive no que concerne às possibilidades de efetivação sem precedentes no ordenamento nacional (SARLET, 2018, p. 70).

Tratando-se do instrumentário que se coloca à disposição dos profissionais do Direito, podemos reconhecer que, atualmente, as ações judiciais para efetivação do direito fundamental à saúde tem sido um dos mais utilizados na seara legal. São diversas as razões que podemos apontar para explicar a crescente judicialização da saúde, sendo que uma das principais é a previsão desta como um direito fundamental. Ressaltaremos o debate nos tópicos seguintes.


4 O JULGAMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 566.471-RN

O direito à saúde é direito social fundamental, previsto no art. 6º, da Constituição Federal que integra o próprio direito à vida (art. 5º). Neste sentido, saúde e vida são direitos indissociáveis e indivisíveis, de modo que a ausência de um implica a não garantia do outro.

Os bens jurídicos envolvidos na relação entre saúde e vida são os mais valorosos e merecedores da tutela do Estado, já que indisponíveis.

A Constituição Federal traz, ainda, que,

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Da análise do art. 196 podemos inferir que a Constituição Federal aponta que o direito à saúde abrange, também, as ações que busquem reduzir os riscos e agravo de doenças.

Diante das previsões constitucionais relacionadas ao direito fundamental à saúde, temos que o Sistema Único de Saúde (SUS) implementa programas e dispõe de medicamentos gratuitos para fornecer, sem custos, o atendimento necessário ao controle de doenças, atendimentos preventivos, além dos de emergência ou de urgência.

Infelizmente, “nem tudo são flores”.

A teoria do funcionamento do SUS não harmoniza com a realidade experimentada por pacientes e profissionais que nele atuam. Seja por carência estrutural ou de recursos humanos, o SUS sobrevive com o básico para o seu funcionamento.

Apesar dos problemas apontados, as previsões constitucionais acerca da saúde obrigam o Ministério da Saúde a desenvolver políticas que atendam às demandas da população, sejam elas coletivas ou individuais. Nesse sentido, o SUS estabelece protocolos de tratamento preventivo de doenças crônicas e fornece os medicamentos necessários ao seu controle, como, por exemplo, os programas voltados a diabetes e a hipertensão.

Para além dos programas “padrão”, o SUS também é acionado diariamente para cobrir o tratamento de doenças crônicas gravíssimas e raras, as quais, normalmente, possuem um custo altíssimo de tratamento. Outro ponto que gera conflito entre paciente e sistema de saúde é o caso específico de pacientes acometidos com doenças que possuem protocolo de tratamento, porém, não respondem a ele de forma satisfatória e necessária para a sua sobrevivência. 

Dentro desse contexto, surge o fenômeno da judicialização da saúde, no qual os pacientes acionam o poder público judicialmente a fim de obter o tratamento necessário à sua condição. As ações postulam, normalmente, por medicamentos de alto custo que não fazem parte das listas oficiais do SUS ou aqueles também de alto custo e que, além de não estarem nas listas, não possuem registros junto à ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Segundo levantamento elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada[3] em 2016,

[...] no período de 2009 a 2015, o gasto do Ministério da Saúde com medicamentos solicitados pela via judicial foi de R$ 3,4 bilhões em valores de 2015, atingindo no último ano o patamar de R$ 715 milhões (Vieira, 2016). De acordo com dados da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, o crescimento real do gasto com as ações judiciais de medicamentos foi de 547% entre 2010 e 2016, passando de R$ 199,6 milhões para R$ 1,3 bilhão em valores de 2016. No acumulado, o gasto foi de R$ 4,8 bilhões (Brasil, 2017b). No período de 2010 a 2015, os medicamentos mais solicitados pela via judicial destinaram-se ao tratamento de doenças raras e da diabetes, sendo que as cinco tecnologias mais judicializadas foram, nesta ordem, tira reagente, insulina glargina, insulina lispro, insulina asparte e eculizumabe. Em 2015, metade das vinte tecnologias mais caras demandadas ao Ministério da Saúde por meio do Judiciário não tinha registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, destacando-se nas solicitações os medicamentos biológicos. Como se pode constatar, as demandas judiciais explicam em parte o aumento do gasto com os componentes estratégico e especializado da assistência farmacêutica, particularmente com este último.

Em síntese, vemos que os dados apontam um crescimento de 547% no gasto público com medicamentos solicitados via judicial entre 2010 e 2016. Soma-se ao crescimento dos gastos, a preocupação dos pesquisadores quanto à seletividade do alcance de determinados medicamentos por aqueles que tenham condições de postular via judicial. Nesse sentido,

a judicialização da saúde tem preocupado gestores públicos e pesquisadores da área pelo seu potencial de produzir iniquidades no SUS, ainda que o fenômeno demonstre maior consciência dos cidadãos sobre seus direitos e a via judicial seja um dos meios de efetivá-los. Um dos problemas é que o acesso aos serviços de saúde, aos exames e ao sistema de justiça é desigual no Brasil, o que pode contribuir para que os grupos socioeconomicamente mais favorecidos acionem mais o Poder Judiciário que os menos favorecidos (FERRAZ e VIEIRA, 2009)[4]

A preocupação dos órgãos públicos quanto à seletividade possui fundamento, principalmente quando consideramos a possibilidade de um grande número de pessoas não ter sua necessidade atendida, devido aos recursos terem sido dispensados ao tratamento de um indivíduo.

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Todavia, em contraposição, temos o fato de que algumas doenças, como a diabetes, se devidamente tratadas, permite uma economia em longo prazo aos cofres públicos. No caso da diabetes, o Sistema Único de Saúde exaure 84% do seu orçamento para pacientes acometidos com essa moléstia apenas no tratamento com complicações crônicas da doença. Esse fato já fundamentou decisão da Sexta Turma do Tribunal Regional Federal do TRF-1; leiamos:

EMENTA. ADMINISTRATIVO, CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. SAÚDE. TRATAMENTO MÉDICO (DIABETES MELLITUS TIPO I). INSULINA E BOMBA DE INFUSÃO. PROVA DOCUMENTAL. PERÍCIA MÉDICA. COMPROVAÇÃO. PRINCÍPIOS DA ISONOMIA, DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E DA RESERVA DO POSSÍVEL. NÃO VIOLAÇÃO. TRATAMENTO. EFICÁCIA E NECESSIDADE. EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DO SUS. SENTENÇA MANTIDA.

1. Consoante se extrai da Constituição Federal de 1988, à Saúde foi dispensado o status de direito social fundamental (art. 6º), atrelado ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana, consubstanciando-se em "direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação" (art. 196). 2. É responsabilidade do Poder Público, independentemente de qual seja o ente público em questão, garantir a saúde ao cidadão. No caso em análise, a obrigação de fazer consistiu em assegurar a aquisição e fornecimento de medicamentos (insulinas glargina e aspart) e de bomba de infusão, ambos destinados ao tratamento da Diabetes Mellitus Tipo I, conforme constou da perícia médica realizada, na qual foi expressamente consignada a necessidade e eficácia do tratamento. 3. É fato incontroverso na hipótese o alto custo dos medicamentos/equipamentos pleiteados (insulinas e bomba de infusão), evidenciada, portanto, a impossibilidade dos respectivos custeios através de recursos próprios dos pacientes. 4. Extrai-se da perícia técnica também que a utilização de medicamentos ou equipamentos mais modernos no controle dos níveis insulínicos não constitui mera comodidade aos pacientes, pelos menos não apenas isso. Um rigoroso controle da glicemia, para além de proporcionar uma melhor qualidade de vida ao enfermo e uma redução nos riscos de progressão da doença, traz também, a médio prazo, inobstante os seus altos custos iniciais, uma significativa economia nos gastos públicos. É que, segundo o referido exame, das despesas realizadas com os pacientes diabéticos, apenas 16% (dezesseis por cento) se referem aos cuidados básicos e ao controle da glicemia (prevenção), o restante, cerca de 84% (oitenta e quatro por cento), destina-se (I) às complicações crônicas da doença (acidentes vasculares encefálicos, cegueira, amputação de membros, doenças renais), (II) aos cuidados médicos (internações) e (III) a outras morbidades decorrentes exatamente do descontrole dos níveis glicêmicos. 5. Cabe ressalvar que, caso a hipótese estivesse em uma fase inicial, em que houvesse ainda a necessidade de prévia perícia, não seria possível falar em acolhimento da pretensão autoral, notadamente pela imperatividade de se comprovar a necessidade, a efetividade e a eficácia do tratamento. No entanto, não é o caso dos autos. Na atual conjuntura procedimental, em que se verificam a realização do exame técnico, a prolação de sentença de mérito, a inicialização do tratamento com os novos medicamentos/aparelho, bem como a sua efetividade e eficácia, forçoso adotar, por tais circunstâncias, a manutenção e continuidade desse tratamento. 6. Além disso, levando em consideração que, a médio prazo, um rigoroso controle dos níveis glicêmicos pode trazer uma considerável economia ao erário, posicionar-se de forma contrária a isso acaba por militar contra os direitos fundamentais à vida, à saúde e à dignidade de pessoa humana, além do equilíbrio econômico-financeiro do Sistema Único de Saúde - SUS. 7. Por fim, quanto à alegação da reserva do possível, em caso tais "O Estado não pode, a pretexto do descumprimento de seus deveres institucionais, esconder-se sob o manto da"reserva do possível", pois essa não se presta como justificativa para que o Poder Público se exonere do cumprimento de obrigações constitucionais, principalmente aquelas que se referem aos direitos fundamentais da pessoa humana.".[5] (grifos nossos).

Se por um lado temos a preocupação com o aumento dos gastos públicos e da seletividade, por outro temos as vidas dos pacientes que buscam sobrevivência e/ou qualidade de vida. O conflito legal e ético que permeia a complexidade da situação provocou o Supremo Tribunal Federal a reconhecer, em 07 de dezembro de 2007, a repercussão geral do julgamento do Recurso Extraordinário 566.471 do Rio Grande do Norte. Tal fato provocou o sobrestamento de milhares de ações em que o mesmo conflito de interesses está colocado.

Referido recurso teve origem na ação de obrigação de fazer proposta por Carmelita Anunciada de Souza, a qual é acometida de Miocardite Isquêmica e Hipertensão Pulmonar Arterial, não possuindo condições financeiras suficientes para comprar os medicamentos necessários o seu tratamento.

 Na época da proposição da ação o único medicamento capaz de controlar a doença da requerente era Sildenafil 50mg®, medicamento que custava cerca de 20 mil reais uma caixa. Referido medicamento não constava na lista de medicamentos fornecidos gratuitamente pelo SUS até 2009, quando foi incorporado ao Componente Especializado de Assistência Farmacêutica – CEAF pela Portaria nº 2.981/2009 do Ministério da Saúde.

Em primeira instância a ação foi julgada procedente, porém o Estado do Rio Grande do Norte recorreu em apelação, não obtendo sucesso. O acórdão do Tribunal de Justiça estadual é objeto do recurso extraordinário em discussão. Segundo relatório constante no voto do Ministro Luís Roberto Barroso,

[...] O Estado sustenta ser aplicável à hipótese o princípio da reserva do possível, já que, diante da escassez de recursos, o Estado deveria privilegiar a destinação de recursos a políticas de saúde capazes de atender a centenas de cidadãos, ao invés de empregar a mesma quantia para atender a um único cidadão. Afirma que apenas de janeiro a abril de 2007 mais de 76% dos recursos do Estado destinados à saúde foram gastos para o cumprimento de decisões judiciais que determinam o fornecimento de medicamentos. E, destes, quase R$ 2 milhões foram dispendidos com fármacos de alto custo que estavam fora da lista de medicamentos do Ministério da Saúde. Por fim, o Estado argumenta que o deferimento do pedido fere o princípio constitucional da legalidade orçamentária, uma vez que a verba prevista destina-se à compra de medicamentos previstos no programa do Ministério da Saúde.[6]

 A Procuradoria-Geral da República manifestou-se nos autos pelo desprovimento do recurso, considerando que a obrigatoriedade do Estado ao fornecimento de medicamentos à pessoa hipossuficiente é assunto pacificado na jurisprudência do STF. Além disso, a PGR reforçou que a Constituição Federal não impõe condições ou restrições ao direito fundamental à saúde, sendo que a garantia àquele direito é prioridade na disposição de recursos públicos.

O julgamento do RE 566.471 foi suspenso em 28 de setembro de 2016 depois de pedido de vistas do Ministro Teori Zavascki. Antes da suspensão do julgamento, os Ministros Marco Aurélio (relator), Luís Roberto Barroso e Edson Fachin já haviam proferido os seus votos.

Como se pressupõe, os votos dos Ministros do STF aprofundaram o tema em diversos aspectos. Seja tratando de disposições legais orçamentárias, ou do conflito ético da situação, os Ministros convergiram e divergiram em diversos pontos. A fim de expor os principais argumentos e enriquecer a discussão, traremos os principais delineamentos de cada voto nos tópicos que se seguem.

4.1 O VOTO DO MINISTRO MARCO AURÉLIO

O Ministro Marco Aurélio figura como relator do RE 566.471 e, sendo assim, foi o primeiro a se manifestar quanto à matéria. Logo no início de sua prolação, Marco Aurélio cita o autor Norberto Bobbio para afirmar que o mais gravoso problema relacionado aos direitos humanos está na dificuldade de protegê-los, não fundamentá-los. Com isso, o Ministro aduz que o RE discorre exatamente da preocupação de Bobbio, já que versa sobre o “dever estatal de efetivamente proteger e promover direitos fundamentais”.

Nesse sentido, Marco Aurélio sintetiza as questões éticas e legais levantadas com o RE.

Os fundamentos do acórdão recorrido e as razões do extraordinário revelam as perplexidades decorrentes de decisões dessa natureza: teria o Tribunal usurpado as competências do Executivo e do Legislativo? Ou a relevância constitucional do direito envolvido e as circunstâncias concretas legitimam a atuação judicial interventiva? Quais os limites e a possibilidades da interferência judicial sobre os deveres positivos do Estado quanto aos ditos direitos fundamentais de segunda geração – os direitos socioeconômicos? A circunstância de a universalização do direito à saúde depender da formulação e execução de políticas públicas exclui a competência do Poder Judiciário em casos como o da espécie? É possível a fixação de critérios objetivos capazes de racionalizar os milhares de litígios sobre a matéria espalhados por todo o país?[7]

 Isto posto, o Ministro inicia a defesa do seu voto expondo o entendimento que defendeu em outros casos semelhantes. Para ele, “O Estado deve assumir as funções que lhe são próprias, sendo certo, ainda, que problemas orçamentários não podem obstaculizar o implemento do que previsto constitucionalmente”[8].

De início o Ministro Marco Aurélio traz que não possuía motivos para alterar o seu entendimento, já que sustenta a máxima efetividade dos direitos sociais fundamentais, principalmente quando se discute a dimensão do mínimo existencial.

Tratando a positivação dos direitos fundamentais através das constituições, tema que abordamos sinteticamente no início de nosso trabalho, o Ministro ensina que “a afirmação constitucional mostra-se a etapa das mais relevantes dessa caminhada dos direitos[9]” e representa a evolução do papel do Estado (do Liberal ao Social e, posteriormente, o democrático). Nesse contexto, para Marco Aurélio, atualmente aspira-se por um modelo de organização político-constitucional que equilibre o controle da atuação do poder público, a fim de proteger o indivíduo de arbitrariedades, e, ao mesmo tempo, garanta a atuação daquele para garantir direitos sociais.

Quando se faz referência a “gerações de direitos”, não se está a afirmar que o surgimento de uma nova representou o fim da anterior. O processo é cumulativo e ruma sempre a partir de bases fundamentais: dignidade humana, liberdade, igualdade e solidariedade. Daí não ter ocorrido ruptura do Estado Liberal. Este precisou acomodar-se também como Estado Social [...].

Nesse contexto de reafirmação de liberdades atrelada à busca por igualdade material e justiça social, vieram à balha os direitos socioeconômicos, classificados como direitos de segunda geração, impondo ao Estado realizar prestações positivas na área da saúde, assistência social, educação, trabalho, alimentação, moradia[10].

Tratando-se das prestações ligadas à saúde o Ministro afirma que, ainda que a organização objetiva de tal direito seja vinculada às políticas públicas, as características de “fundamentalidade, inalienabilidade, essencialidade e plena judicialização desses direitos” integram o mínimo existencial. Portanto, “o direito à saúde como direito ao mínimo existencial é direito fundamental[11]”.

Citando Ricardo Lobo Torres, Marco Aurélio aduz que uma vez configurada a ameaça a tal direito, em casos particulares, a judicialização é possível e merecedora de “amplas garantias institucionais, independentemente de reservas orçamentárias”. Quanto ao âmbito geral, o Ministro não deixa dúvidas quanto à necessidade de regulamentação e fixação de diretrizes através de políticas públicas, as quais seriam resultado de escolhas políticas e orçamentárias.

Sabe-se que há, no País, a Política Nacional de Medicamentos, com a elaboração de listas daqueles a serem distribuídos aos que necessitem [...]. Espera-se que essas políticas cheguem, progressivamente, à distribuição universal e ao uso racional dos medicamentos. Entretanto, não se discute o controle jurisdicional do mérito amplo dessas políticas, e sim a tutela judicial de situações especiais, quando não alcançadas por essas políticas. Não cabe ao Poder Judiciário formular políticas públicas, mas pode e deve corrigir injustiças concretas. Em casos do tipo, não se admite a alegação alusiva ao caráter puramente programático das normas constitucionais versando o direito à saúde[12].

Contestando diretamente a argumentação principiológica realizada pelo Estado do Rio Grande do Norte, Marco Aurélio é objetivo ao concluir que as “objeções de cunho administrativo [...] não podem subsistir ante violações ao mínimo existencial[13]”.

Após expor a jurisprudência relacionada ao tema, o Ministro ressalta que a principal consequência (benéfica) do julgamento da matéria em repercussão geral é a definição de “critérios de configuração do dever estatal de tutela do mínimo existencial[14]”.  Assim, Marco Aurélio expõe a sua tese de repercussão geral fixando três parâmetros: a imprescindibilidade (que abarca adequação e necessidade) do medicamento, a impossibilidade de substituição do fármaco postulado e, por fim, a incapacidade financeira do paciente e da família solidária.

A tese do Ministro é inovadora ao discutir o dever de solidariedade da família do necessitado, quanto à impossibilidade financeira adquirir o medicamento. Para Marco Aurélio, a concepção de família expressa na Constituição Federal coloca a solidariedade entre os seus membros como traço fundamental. Nesse sentido, afirma que,

[...] na família contemporânea, não “há direitos sem responsabilidades”, a igualdade e a autonomia dos integrantes pressupõem a reciprocidade, a solidariedade entre si. Essa concepção fica muito clara no artigo 229 da Carta, segundo o qual “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”. O dispositivo abrange os deveres de cuidado com a saúde como manifestação cogente de solidariedade familiar. A dignidade humana, considerado o direito à saúde, é comprometimento não só do Estado, mas também da família[15].

Relacionando o dever de solidariedade da sociedade no custeamento dos direitos sociais (por meio dos impostos e contribuições) à solidariedade entre a família quanto à prestação de assistência, o Ministro conclui que o dever familiar precede o estatal. Portanto, a responsabilidade do Estado no fornecimento da assistência requisitada é subsidiária (seja ela exclusiva ou complementar), devendo-se considerar o nível da capacidade financeira da família solidária.

Através de tal concepção, o Ministro estabelece como critério objetivo na judicialização da questão, a instrução da inicial com a declaração de hipossuficiência financeira não só do requerente, mas também dos seguintes familiares em ordem de prioridade: 1º) cônjuge ou companheiro; 2º) ascendentes; 3º) descendentes; e 4º) irmãos.

Por fim, Marco Aurélio propõe a seguinte tese em caráter de repercussão geral:

[...] o reconhecimento do direito individual ao fornecimento, pelo Estado, de medicamento de alto custo, não incluído em Política Nacional de Medicamentos ou em Programa de Medicamentos de Dispensação em Caráter Excepcional, depende da comprovação da imprescindibilidade – adequação e necessidade –, da impossibilidade de substituição do fármaco e da incapacidade financeira do enfermo e dos membros da família solidária, respeitadas as disposições sobre alimentos dos artigos 1.694 a 1.710 do Código Civil[16]. 

Portanto, o Ministro entendeu que, no caso em apreço, a recorrida fazia jus à tutela estatal já que buscava o mínimo existencial, desprovendo, assim, o recurso do Rio Grande do Norte.

4.2 O VOTO DO MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO

O segundo ministro que proferiu o seu voto foi Luís Roberto Barroso. Diferentemente de Marco Aurélio, Barroso defendeu uma interpretação mais restritiva quanto à obrigação do Estado ao fornecimento de medicamentos de alto custo. No início de sua abordagem, o Ministro destaca premissas filosóficas sobre a matéria discutida, expondo-as em três pontos.

No primeiro, Barroso afirma que não se podem ter ilusões ao tratar de tal matéria, haja vista que “cada cidadão brasileiro faz jus, sem discriminação ou privilégio, ao máximo de justiça em matéria de saúde que o país possa pagar[17]”. Ou seja, deve-se reconhecer limites à capacidade econômica do Estado. Nesse sentido, o Ministro defende que é necessário a realização de “escolhas trágicas, mas inexoráveis”, sendo que o “populismo não é a solução, mas parte do problema[18]”.

No segundo ponto, o Ministro aduz que o debate sobre saúde deve ser desjudicializado e transferido para outros fóruns, quais sejam: orçamento e instâncias técnicas do Ministério da Saúde. Para ele, o judiciário não seria a instância adequada para definir políticas públicas de saúde.

A terceira e última premissa filosófica apontada por Barroso, destaca que o conflito existente na matéria discutida não é entre o direito à saúde e à vida, em um polo, e a separação de Poderes e políticas orçamentárias, em outro. Afirma o ministro que, se o conflito fosse este, a solução não seria difícil,

Como os recursos são limitados e precisam ser distribuídos entre fins alternativos, a ponderação termina sendo entre vida e saúde de uns versus vida e saúde de outros. A vida e a saúde de quem tem condições de ir a juízo não têm valor maior do que a dos muitos que são invisíveis para o sistema de justiça[19]. 

O Ministro aponta a existência de diversos excessos e inconsistências na maneira como se trata atualmente a questão. Para ele, a ausência de critérios, o voluntarismo e o excesso de ambição mobilizam um grande aparato jurídico-institucional que representa gastos e disfuncionalidade da prestação jurisdicional.

Cabe insistir: a interferência judicial desordenada traz consequências graves. Como bem identificou Eduardo Mendonça, elas incluem: (i) a desorganização administrativa, porque os recursos precisam ser desviados do seu orçamento e de sua execução natural para o cumprimento das ordens judiciais; (ii) a ineficiência alocativa, porque as compras para cumprir decisões judiciais se dão em pequena escala, sem o benefício das compras de atacado; e (iii) a seletividade, porque as soluções providas em decisões judiciais beneficiam apenas as partes na ação, sem que sejam universalizadas[20].

Barroso ressalta que o tema em discussão é coberto de complexidades e sutilezas, não sendo possível esgotá-lo no julgamento do RE 566.471. Com isso, afirma que o seu voto pretende expor, brevemente: a) as injustiças causadas pela distribuição de medicamentos na via judicial; b) uma síntese do modelo brasileiro de assistência pública de saúde; e c) estabelecer critérios e parâmetros que permitem a racionalização da judicialização. Através da ementa construída pelo Ministro Barroso, é possível sintetizar os pontos por ele discutidos.

Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL. MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO. IMPOSSIBILIDADE DE DISPENSAÇÃO DE MEDICAMENTO NÃO INCORPORADO NO SUS POR DECISÃO JUDICIAL, SALVO SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS.

1. No caso de demanda judicial por medicamento incorporado pelo SUS (i.e., incluído na política pública de saúde, devendo ser objeto de dispensação gratuita), não há dúvida acerca da obrigação do Estado de fornecê-lo ao requerente. Em tais circunstâncias, a atuação do Judiciário volta-se apenas a efetivar as políticas públicas já formuladas no âmbito do sistema de saúde. Nessa hipótese, deve-se exigir apenas que o requerente comprove (i) a necessidade do fármaco e (ii) a prévia tentativa de sua obtenção na via administrativa[21]. [...]

No ponto um da ementa, o Ministro reforça que o papel do Judiciário na questão é o de efetivar políticas públicas já formuladas pelos órgãos competentes, não o de criá-las ou alterá-las por meio da judicialização. Referido entendimento já é o que prevalece atualmente na jurisprudência de grande parte dos Estados da federação e nos tribunais superiores.

2. Já no caso de demanda judicial por medicamento não incorporado pelo SUS, inclusive quando de alto custo, o Estado não pode ser, como regra geral, obrigado a fornecê-lo. Não há sistema de saúde que possa resistir a um modelo em que todos os remédios, independentemente de seu custo e impacto financeiro, devam ser oferecidos pelo Estado a todas as pessoas. É preciso, tanto quanto possível, reduzir e racionalizar a judicialização da saúde, bem como prestigiar as decisões dos órgãos técnicos, conferindo caráter excepcional à dispensação de medicamentos não incluídos na política pública.

3. Para tanto, proponho 5 (cinco) requisitos cumulativos que devem ser observados pelo Poder Judiciário para o deferimento de determinada prestação de saúde. São eles: (i) a incapacidade financeira de arcar com o custo correspondente; (ii) a demonstração de que a não incorporação do medicamento não resultou de decisão expressa dos órgãos competentes; (iii) a inexistência de substituto terapêutico incorporado pelo SUS; (iv) a comprovação de eficácia do medicamento pleiteado à luz da medicina baseada em evidências; e (v) a propositura da demanda necessariamente em face da União, já que a responsabilidade pela decisão final sobre a incorporação ou não de medicamentos no âmbito do SUS é, em regra, desse ente federativo.

4. Ademais, proponho a observância de 1 (um) parâmetro procedimental: a necessária realização de diálogo interinstitucional entre o Poder Judiciário e entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde (e.g., câmaras e núcleos de apoio técnico em saúde no âmbito dos tribunais, profissionais do SUS e CONITEC). Tal diálogo deverá ser exigido, em um primeiro momento, para aferir a presença dos requisitos de dispensação do medicamento. E, em um segundo momento, no caso de deferimento judicial do fármaco, para determinar que os órgãos competentes (CONITEC e Ministério da Saúde) avaliem a possibilidade de sua incorporação no âmbito do SUS, mediante manifestação fundamentada a esse respeito[22]. [...]

Nos pontos seguintes (dois, três e quatro), Barroso reforça a insustentabilidade da judicialização da saúde como feita atualmente, defendendo a imposição de caráter excepcional à dispensação de remédios que não fazem parte de listas oficiais. Os requisitos cumulativos e o parâmetro procedimental sugeridos pelo Ministro concedem à sua proposta um caráter restritivo, já que apenas em situações extremamente específicas o Ministério da Saúde seria compelido à fornecer os fármacos pleiteados via judicial.

5. Desprovimento do recurso extraordinário em razão da incorporação, no curso do processo, do medicamento em questão pelo Sistema Único de Saúde. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “O Estado não pode ser obrigado por decisão judicial a fornecer medicamento não incorporado pelo SUS, independentemente de custo, salvo hipóteses excepcionais, em que preenchidos cinco requisitos: (i) a incapacidade financeira do requerente para arcar com o custo correspondente; (ii) a demonstração de que a não incorporação do medicamento não resultou de decisão expressa dos órgãos competentes; (iii) a inexistência de substituto terapêutico incorporado pelo SUS; (iv) a comprovação de eficácia do medicamento pleiteado à luz da medicina baseada em evidências; e (v) a propositura da demanda necessariamente em face da União, que é a entidade estatal competente para a incorporação de novos medicamentos ao sistema. Ademais, deve-se observar um parâmetro procedimental: a realização de diálogo interinstitucional entre o Poder Judiciário e entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde tanto para aferir a presença dos requisitos de dispensação do medicamento, quanto, no caso de deferimento judicial do fármaco, para determinar que os órgãos competentes avaliem a possibilidade de sua incorporação no âmbito do SUS[23].

O quinto e último ponto da ementa traz a tese de repercussão geral proposta por Barroso, na qual o Ministro busca coibir a seletividade da judicialização da saúde, estabelecendo critérios rígidos que dificultam a propositura de novas ações e, consequentemente, reduzir o impacto orçamentário por esta causada, quando praticada nos atuais moldes.

4.3 O VOTO DO MINISTRO EDSON FACHIN

O Ministro Edson Fachin proferiu voto pelo provimento parcial ao RE 566.471 apenas no que se refere à inclusão da União no polo passivo. Quanto à alegação de que o Poder Judiciário não poderia determinar o fornecimento de medicamento não incorporado por política de saúde, já que desrespeitaria a separação dos poderes, usurpando a competência daqueles, Fachin votou pelo não acolhimento da tese.

Edson Fachin destoa de Barroso quanto à abrangência do direito à saúde e da atuação do Judiciário para garanti-lo a todos. Enquanto o último militou por uma interpretação restritiva do caso, Fachin resume sua tese da seguinte forma: o direito à saúde é assegurado a todos pela Constituição, assim, é dever do Estado prover a saúde de todos e do STF assegurar que o Estado proveja saúde para todos.

Segundo o Ministro, a atuação do Estado deve ser voltada a promover tratamentos e disponibilizar medicamentos que atendam a grande demanda, ou seja, “tratamentos que possam do ponto de vista prático e financeiro ser estendidos a todos aqueles que se encontrarem na particular situação do litigante que bate à porta do Poder Judiciário[24]”. Porém, o Ministro Fachin não defende que, para isso, as ações individuais que postulam por medicamentos devessem ser extintas. Pelo contrário, afirma que “é próprio do Judiciário o reconhecimento e a atuação em eventuais falhas na implementação de políticas públicas, a partir de casos concretos[25]”.

Nesse contexto, o Ministro aduz que o Judiciário, na busca por efetivação de políticas públicas, deve agir com responsabilidade ao realocar recursos públicos. Portanto, é essencial que o próprio Judiciário estabeleça critérios a serem utilizados em tais ações, a fim de conferir segurança jurídica às decisões.

Ao contrário de negar direitos em situações peculiares, estará o  Judiciário conferindo efetividade ao direito à saúde e a seus princípios, na justa medida da particularidade aferida por meio desses filtros ou parâmetros critérios probatórios[26].

Após discorrer sobre as diferenças na classificação dos medicamentos disponibilizados pelo SUS, em componentes Básico, Estratégico e Especializado, o Ministro Fachin estabelece critérios para o tema e fixa a seguinte sugestão para tese de repercussão geral:

Há direito subjetivo às políticas públicas de assistência à saúde, configurando-se violação a direito individual líquido e certo a sua omissão ou falha na prestação, quando injustificada a demora em sua implementação.

As tutelas de implementação (condenatórias) de dispensa de medicamento ou tratamento ainda não incorporado à rede pública devem ser – preferencialmente – pleiteadas em ações coletivas ou coletivizáveis, de forma a se conferir máxima eficácia ao comando de universalidade que rege o direito à saúde.

A tutela prestacional individual não coletivizável deve ser excepcional; para a respectiva implementação devem concorrer ampla produção probatória, em que se demonstre que a opção diversa (à disponibilizada pela rede pública) destinada ao paciente decorre de comprovada ineficácia ou impropriedade da política de saúde existente para o seu caso e que, de outro lado, haja medicamento ou tratamento eficaz e seguro, com base nos critérios da MBE (Medicina Baseada em Evidências).

Para aferir tais circunstâncias na via judicial são propostos os seguintes parâmetros:

 1. Prévio requerimento administrativo, que pode ser suprido pela oitiva de ofício do agente público por parte do julgador;

2. Subscrição realizada por médico da rede pública ou a justificada impossibilidade;

3. Indicação do medicamento por meio da Denominação Comum Brasileira ou DCI – Internacional;

4. Justificativa da inadequação ou da inexistência de medicamento ou tratamento dispensado na rede pública;

5. E ainda laudo ou formulário ou documento subscrito pelo médico responsável pela prescrição, em que indique a necessidade do tratamento, seus efeitos, e os estudos da Medicina Baseada em Evidências, além das vantagens para o paciente, comparando-o, se houver, com eventuais fármacos ou tratamentos fornecidos pelo SUS para a mesma moléstia[27].

Um dos destaques a ser feito quanto ao voto do Ministro Fachin é a preferência às ações coletivas ou coletivizáveis na postulação por fármacos. Com essa orientação, Fachin busca maximizar a eficácia dos julgamentos de tais questões, haja vista que poderiam atingir não só a parte envolvida, mas a coletividade que também é acometida pela condição do/dos requerente/requerentes.

Ao final de sua tese, o Ministro Fachin, com o intuito de conferir segurança jurídica às ações sobrestadas, propõe que, “se preservem os efeitos das decisões judiciais que, versando sobre a questão constitucional submetida à repercussão geral, tenham esgotadas as instâncias ordinárias, inclusive as que se encontram sobrestadas até a data deste julgamento[28]”.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIDELES, Sirlene Moreira. O direito fundamental à saúde e os pleitos individuais por fornecimento de medicamentos de alto custo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5651, 21 dez. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70330. Acesso em: 25 abr. 2024.

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