Às vésperas do pleito eleitoral, repercutiu nas mídias sociais uma decisão da Justiça do Trabalho de Santa Catarina em que se proibiu o dono da empresa Havan, Luciano Hang, de pressionar seus empregados a votarem em Jair Bolsonaro, posteriormente eleito presidente do Brasil, porquanto lhes é garantido o direito fundamental de opinião e expressão, inclusive em face do dono do empreendimento[1].
Ao ser intimado da decisão judicial, veiculou imediatamente um vídeo nas redes sociais[2], no qual critica não só a Justiça do Trabalho, mas especialmente a atuação estatal com um todo, que estaria calando o empresariado de influenciar o voto dos seus empregados, o que seria uma aberração, já que, como dono do negócio, tem o direito de “conversar” com seus funcionários sobre a melhor opção política para o futuro.
Hegel disse que a coruja de Minerva, símbolo da filosofia, levantava vôo ao entardecer. Metaforicamente isso quer significar, sabiamente, que a interpretação dos fatos, a racionalização da história, somente é prudente ser feita após passados os acontecimentos. Por essa perspectiva, o real somente se desnuda à noite; encontrar o logos dos inúmeros fatos que compõem um momento político, social ou filosófico é uma atividade essencialmente de retorno ao pretérito, a posteriori.
É com esse espírito hegeliano que ora se retorna ao caso Havan. Desse episódio extraiu-se análises jurídica ligadas ao direito de voto e de consciência, afeita ao direito constitucional do trabalho[3]. Pouco se observou dos aspectos sociológicos e da “alma” do Brasil.
Após arrefecerem-se os ânimos, a maioria da população mostrou-se absolutamente refratária à eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
De certo modo, no Brasil, até pouco depois do início da crise política brasileira, de 2014, verificava-se uma crescente acedência e aceitação dos direitos fundamentais nas relações privadas, cujos primeiros defensores foram Leisner e Nipperdey.
Esclareça-se que, para essa vertente, a incidência dos direitos fundamentais nas relações entre entes privados deve ser direta, ao argumento de que, estando essas normas instituídas na Constituição, devem, pela força normativa da Constituição, ter aplicação em toda a ordem jurídica indistintamente.
O tema ganhou destaque doutrinário no início dos anos 60 na Alemanha, assim como nos Estados Unidos, sob o rótulo da 'state action', onde também se tem discutido intensamente a aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas[4].
Lembre-se que nessa época o Walfare State estava no seu auge, cujos ventos chegaram ao Brasil, de sorte que vivia-se uma atmosfera à esquerda, de boa vontade com o viés social, de rejeição ao individualismo irrefreável e ao liberalismo clássico.
O ambiente era favorável a uma ressignificação da liberdade, para deixar de ser somente o agir por mim e para mim, mas também pelo outro. Nesse contexto, impor a um particular o respeito a um direito fundamental de outrem, mesmo com a mediação estatal, tinha uma aquiescência mais espontânea, mormente porque o estado não era o leviatã, com os coloridos sombrios e espelhados no antipetismo, mas o Estado Social realizador do bem comum e da paz social.
A jurisprudência do STF, sob os influxos do Walfare State e da Carta Cidadã, vocalizou, mais de uma vez, que no Brasil tem aplicabilidade a teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais[5].
O próprio Código Civil, de forma inovadora no plano legal, impôs em seus artigos 57 e 1.085, parágrafo único, a submissão das associações civis às liberdades e garantias constitucionais, considerada a vinculação imediata dos indivíduos, em suas relações de ordem privada, aos direitos básicos assegurados pela Carta Política.
Isso demonstra que no seio da sociedade havia uma predisposição para os avanços dos direitos fundamentais, tanto que um Código Civil, tradicionalmente um ambiente patrimonialista e de espaço liberal da autonomia privada, foi formulado em moldes a limitar a liberdade e o direito de propriedade, em função dos direitos humanos. Se críticas existiam à intromissão estatal, eram praticamente inaudíveis e sem maiores repercussões na sociedade civil.
Muito além de uma onda neoliberal que acomete o mundo em geral, e o Brasil em particular, os escândalos envolvendo os partidos políticos, a descrença nas utopias, a desconfiança na atuação estatal e, principalmente, a associação do Estado Social com um projeto de implantação do socialismo foram decisivos para por em xeque a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, a qual depende, em larga escala, de bons olhos para o Estado Social, em outro modo dizer, de simpatia para com o agir do Estado na vida privada.
Notadamente tem-se associado, como forma ideológica desconstitutiva, a arquitetura social da Carta Magna a um grande projeto de poder dos partidos de esquerda, em especial do PT.
Esse sentimento de repulsa, amealhado pela insatisfação com a postura do partido do trabalhadores, deu muita força a discursos que não só tisnam o Estado, como colaboram para a ineficácia da inserção dos direitos fundamentais nas relações privadas, na medida em que o imaginário coletivo introjetou a imagem, ardilosamente construída, de que a intervenção estatal determinando a conduta e as relações interpessoais, especialmente as de cunho econômico, vai piorar a vida da população, como ocorreu na Venezuela, onde, a pretexto de implantar a justiça social, criou-se o caos.
Cabe então deixar ao mercado e aos particulares por si sós determinarem os rumos, tal qual nos Estados Unidos, tem-se dito. Pensamento típico do liberalismo clássico.
Quem antes era voz isolada, ganha estrondosamente peso, influenciando uma nova geração de pessoas, a exemplo de Roberto Campos, notável defensor do neoliberalismo no Brasil e crítico ferrenho da Carta de 88. São suas as seguintes palavras, as quais representam, acredita-se, o pensamento da maioria no atual momento:
“Que contribuição trará a nova Constituição para inserir o Brasil nessa onda modernizante? Rigorosamente, nenhuma. O Brasil está desembarcando do mundo. Em vez da ‘ desregulamentação‘, o Estado fará planos globais e normatizará a atividade econômica. Em vez de encorajar o Poder Executivo a intensificar a privatização, amplia-se o monopólio da Petrobrás, nacionaliza-se a mineração, a União passa a ser proprietária e não apenas administradora do subsolo, os governos estaduais falidos terão o monopólio do gás canalizado. Enquanto a Inglaterra, o Japão e a Espanha, entre outros, privatizam suas grandes empresas telefônicas, o Brasil transforma em monopólio estatal todas as telecomunicações, inclusive a transmissão de dados. Na sociedade de informação isso representa enorme concentração de poder nas mãos da ‘nomenklatura’ estatal, sujeita a frequentes perversões ideológicas”[6].
“Segundo o primeiro-ministro do trabalhismo inglês, James Calaghan, nada mais perigoso do que a feitura dos textos constitucionais. Isso desperta o instinto utópico adormecido em cada um de nós. E todos somos tentados a inscrever na Constituição nossa utopia particular. Foi o que aconteceu. É utopia, por exemplo, decretar que prevaleça no Nordeste um salário mínimo igual ao de São de Paulo. É utopia dar garantia de vida, ou seja, a imortalidade, aos idosos. É utopia imaginar que num país que precisa exportar competitivamente se possa ao mesmo tempo encurtar o horário de trabalho e expandir os benefícios sociais”[7].
“A Constituição brasileira de 1988, triste imitação da Constituição portuguesa de 1976, oriunda da Revolução dos Cravos, levou ao paroxismo a mania das Constituições ‘dirigentes’ ou ‘intervencionistas’. Esse tipo de constituição, que se popularizou na Europa após a Carta Alemã de Weimar, de 1919, tem pouca durabilidade. Ao contrário da mãe das Cartas Magnas democráticas- a Constituição de Filadélfia- que é , como diz o professor James Buchanan, a ‘política sem romance’, as constituições recentes fizeram o ‘romance da política’. Baseiam-se em dois erros. Primeiro, a ‘arrogância fatal’, de que nos fala Hayek, de pensar que o processo político é mais eficaz que o mercado na promoção do desenvolvimento. Segundo, a ideia romântica de que o Estado (...) é uma entidade benevolente e capaz. Essa idiotice foi mundialmente demolida com o colapso do socialismo na inesperada Revolução de 1989/91, no Leste Europeu”[8].
As palavras de Luciano Hang canalizaram uma antipatia aos direitos fundamentais no meio privado e ecoam aquilo que Roberto Campos esgrimiu em suas críticas.
O caso Havan, muito mais do que mais um processo judicial, retrata um pensamento difuso erguido sobre a ojeriza à esquerda brasileira, catapultada pelas estripulias do PT.
Vale dizer, ele expõe um pensamento adormecido que veio à tona: o Estado Social não é o amigo do povo, antes seu inimigo; é utilizado para favorecer alguns em detrimento da maioria, até mesmo daqueles que disse proteger (os mais desfavorecidos); é um mecanismo de implantar uma ideologia desastrosa, que em nenhum lugar deu certo (o socialismo); a economia funciona melhor sem intromissões; uma máquina de ultrajar os bons costumes e incapaz de alterar a realidade para melhor.
Se ganha acolhida a ideia de mais sociedade e menos Estado justamente porque desconfia-se e rejeita-se projetos de poder que tornam o Governo o grande agente social, político e econômico, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais terá muita resistência, a ponto, no limite, de colapsar sua eficácia, em razão do desajuste entre o que deseja a Constituição e a vontade da sociedade, uma vez que esta passa a exigir autodeterminação, já que o ente estatal não tem a moralidade mínima para dizer o que se deve ou não fazer.
Cumpre não olvidar a clássica lição de Konrad Hesse[9], segundo o qual a eficácia da Constituição depende, em linhas gerais, da “situação espiritual da época”. Assim, embora a Constituição seja condicionante da realidade, sua força modificadora está subordinada a condições naturais, históricas, econômicas e sociais que identificam um determinado povo.
Desde que uma nação se torna hostil ao projeto constitucional, não encontra sentido em orientar a própria conduta de acordo com as disposições estabelecidas na Constituição, não é exagerado dizer que, neste momento, a construção da eficácia horizontal dos direitos fundamentais está em perigo. É isso que se tem avistado no Brasil, além de uma extensa bibliografia de combate à Constituição Cidadã ganhando corpo no mundo dos fatos.
Portanto, urge reorientar a população no sentido dos direitos fundamentais e humanos, que estão acima e além de qualquer partido político. São conquistas históricas fruto de longa maturação e nada têm a ver com superado socialismo ou projetos de poder. Eles existem para suavizar, civilizar as pulsões destrutivas inerentes aos seres humanos. É, enfim, momento de reforçar a vontade popular de alinhar-se à Constituição, sob pena de as forças conservadoras e liberais-individuais ruírem sua força normativa.
NOTAS
[1] Reportagem completa sobre o caso em: https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2018/10/03/justica-proibe-empresario-e-rede-de-lojas-havan-de-pressionarem-funcionarios-a-votar-em-candidato-a-presidencia.ghtml. Acesso em 18/11/2018.
[2] O vídeo pode ser visto em https://www.youtube.com/watch?v=oBgthBsP7Rw.
[3] Como amostragem da produção científica em direito constitucional do trabalho, no período eleitoral de 2018, veja-se o artigo de Jorge Luis Souto Maior em https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/05/voto-um-direito-fundamental-tambem-do-trabalhador-e-da-trabalhadora/. Acesso em 18/11/2018.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade - Estudos de Direito Constitucional", sob o título "Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas", desenvolvido com base em conferências proferidas no curso de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, em 20/10/1994, e no 5º Encontro Nacional de Direito Constitucional (Instituto Pimenta Bueno) - Tema: "Direitos Humanos Fundamentais", em 20/09/1996, USP/SP.
[5] Cf. STF, RE 158.215/RS, rel. min. Marco Aurélio, DJ 7/6/1996 e RE 161.243/DF, rel. min. Carlos Velloso, DJ 19/12/1997.
[6] CAMPOS, Roberto. O Século Esquisito, pág. 197.
[7] CAMPOS, Roberto. op.cit, p. 209.
[8] CAMPOS, Roberto. Antologia do Bom Senso, p. 302.
[9] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000.