INTRODUÇÃO
A evolução tecnológica alçada nas últimas décadas, principalmente com o advento da internet 2.0, trouxe uma série de novos desafios a serem debatidos que englobam mudanças nas estruturas sociais e econômicas na sociedade da informação. O case Uber é paradigma no enfrentamento e discussão em torno de serviços disruptivos que por intermédio do desenvolvimento de aplicações de internet alteraram o cenário corporativo global e a vida em sociedade.
A empresa, fruto das chamadas tecnologias disruptivas - surgidas pós Google e Facebook - embaralhou o fechado mercado do transporte público individual de passageiros, exercido, até então, por poucos permissionários de táxis; inaugurando neste mercado uma convulsão em que opõe taxistas e motoristas profissionais credenciados pela empresa.
O objetivo principal do trabalho é refletir a implantação dos serviços disruptivos na sociedade da informação por meio da concatenação dos campos jurídico e sociais, na constitucionalização da ordem econômica e no basilar princípio da livre iniciativa e concorrência.
A metodologia utilizada foi a de análise indutiva das bases das novas tecnologias após o advento da internet 2.0 e lançar luzes que embasam o seu desenvolvimento rechaçando visões opositivas, leis e regulamentações defasadas. Para isso, foi realizado um levantamento bibliográfico e jurisprudencial pesquisando autores e decisões judiciais que reflitam sobre a regulamentação das tecnologias vindouras, pois é certo que o surgimento de novas arquiteturas tecnológicas rompe com o status quo de uma atividade econômica vigente e, irrefutável que surgirá, também, na disputa por aqueles que detinham o monopólio.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Não seria exagero denominar a atual fase da evolução da espécie humana como sendo a do homo sapiens tecnologicus. A designação que intitula a obra do filósofo francês Michel Puech (2015), bem denota este momento da história em que se dá uma revolução na forma da relação entre o humano e a técnica. Também, é nesse sentido que os professores Lemos e Di Felice (2014, p.7) destacam:
A criação de uma arquitetura informativa que não se limita a distribuir informação, mas que também é interativa, permitindo o diálogo fértil entre dispositivos de conexão, banco de dados, pessoas e tudo o que existe, é um marco na história da comunicação, porque, pela primeira vez, altera-se a forma de transmissão das informações.
Com efeito, não podemos olvidar que o imput nessa tomada evolutiva principia com o advento da internet 2.0[1], na medida em que a forma textual deixa de ser o foco e a conectividade tem se mostrado profícua por fotos, filmes e emojis[2]. Podemos, a priori, pelo que os autores nos dizem entender que:
Toda a sociedade – em qualquer setor: governo, economia, universidade, sociedade civil etc. – está sendo profundamente alterada e transformada pelo advento dessa nova arquitetura de informação, que ao modificar a geometria de suas dimensões interativas e torna-la plural e interativa, acaba inevitavelmente alterando a sua forma e a sua essência (LEMOS; DI FELICE, 2014, p.8)
Assim, identificamos na atualidade tecnologias fomentadas por startups[3] ávidas por desenvolver modelos de aplicativos para facilitar, integrar e entreter a vida contemporânea, dando início a novos modelos de negócios que, agora, reivindicam legitimidade, regulamentação legislativa e reconhecimento jurídico. Noutras palavras:
Existe hoje uma forma de empreender que se diferencia das empresas como eram conhecidas até a década de 90. Empresas agora chamadas especificamente de startups apresentam características particulares, tanto no que diz respeito aos seus objetivos, desde sua criação, quanto ao contexto no qual são criadas e se desenvolvem. Para Eric Ries, uma startup é uma instituição desenhada para criar um novo produto ou serviço sob condições de extrema incerteza e tem a inovação (seja tecnológica, de produto, de serviço, de processo ou de modelo de negócio) como o centro de suas operações. Julie Meyer ainda agrega a percepção de que as startups são empresas que normalmente começam pequenas, mas pensam grande e, devido ao seu grande potencial inovador, apresentam significativa probabilidade de crescimento exponencial em pouco tempo. (ARRUDA et al, 2012, p. 6).
O impacto social gerado por esses novos modelos de negócios, provocados pelos espíritos empreendedores, tornou-se tão valioso que, hoje, universidades fomentam o desenvolvimento de ideias criativas em ninhos tecnológicos[4], e organizações premiam iniciativas avaliando critérios como: inovação, modelo de negócio e potencialidade econômica. Em linhas gerais, também podemos compreender do que o professor Clayton Christensen (2012, p. 24) denominou de tecnologias de ruptura, nesse conceito:
As tecnologias de ruptura trazem a um mercado uma proposição de valor muito diferente daquela disponível até então. Em geral, essas tecnologias têm desempenho inferior aos produtos estabelecidos em mercados predominantes. Mas contém outras características com algumas vantagens adicionais (e geralmente novas) de valor para o cliente. Produtos baseados nessas tecnologias são geralmente mais baratos, mais simples, menores e frequentemente mais convenientes de usar.
Nesse passo, a grande chave para o entendimento da fenomenologia social atuante, é compreender a tecnologia, refletindo:
Aqui, devemos pensar, portanto, na perspectiva do desenvolvimento do conhecimento, assim como na perspectiva da inovação e das modalidades de transformação, em uma sinergia com a tecnologia, numa relação simbiótica, e jamais opositiva nem hierárquica. (LEMOS; DI FELICE, 2014, p. 19). (grifo dos autores)
Nessa visão, evoluir – usar a sabedoria humana na resolução de necessidades – significa, neste particular, deixar de ter uma visão opositiva das inovações tecnológicas, que se desvela somente por meio de um estudo mais acurado das realidades sociais.
Desta feita, o surgimento do aplicativo Uber fundou no mercado um novo modelo de transporte motorizado privado remunerado de passageiros, que se defrontou com uma série de sistemas que até então atuavam no ramo, como o dos táxis e que buscam manter o status quo dominante no mercado.
O modelo de negócios da UBER ganhou notoriedade por dispor aos consumidores serviço de transporte de qualidade superior, reconhecido, inclusive, pelo Economista-Chefe do departamento de estudos econômicos do CADE (ESTEVES, 2015, p. 9):
Os benefícios ao interesse público seriam inegáveis, pois aumentariam o bem estar da sociedade por diversos mecanismos: (i) o novo mercado proveria um substituto superior aos carros particulares para um determinado grupo de consumidores; (ii) o novo mercado proveria um substituto superior aos táxis para um segundo grupo de consumidores; (iii) o novo mercado rivalizaria com os táxis e com os carros particulares, o que poderia trazer reduções de preços nas corridas de táxis, no aluguel de carros de passeio e até mesmo nos preços dos carros novos e usados. Nem mesmo os profissionais do mercado de táxis (não proprietários das licenças) seriam prejudicados, pois poderiam inclusive (ex post) utilizar os serviços do aplicativo, ou (ex ante) arbitrar entre entrar no mercado de táxis ou no mercado de caronas pagas. Portanto, o movimento refratário das autoridades seria justificado pela captura regulatória, motivada pela manipulação do ambiente político por grupos lobistas em busca de rendas econômicas, ou seja, por conta de rent-seeking.
Entretanto, com a exponencial implantação e implementação de seu modelo de negócio nas principais capitais brasileiras, uma enxurrada de ações judiciais de entidades representativas de taxistas[5] tomou conta do Judiciário questionando a legalidade da atividade desenvolvida pela empresa e visando ordem judicial para obter a proibição de sua operação.[6]
Atendendo a necessidade de regulamentação, foi promulgada a Lei Federal 13.640/2108 que regulamenta o transporte privado individual de passageiros. Conforme o art. 11-A desta Lei, a competência de regulamentar e fiscalizar o serviço de transporte remunerado individual de passageiros é exclusiva dos Municípios.
Na cidade de Porto Alegre, entrou em vigor da Lei Municipal n. 12.423/2018 que alterou dispositivos da Lei 8.133/1998 e Lei nº 12.162/2016, que não é imune às críticas. Ao argumento de uma regulação para que se atinja o fim do bem-estar, garantir a segurança dos usuários e a qualidade do serviço, a regulamentação gaúcha (RIO GRANDE DO SUL, 2016) institui em seu artigo 4º a infundada sujeição ao pagamento de Taxa de Gerenciamento Operacional (TGO), constituindo verdadeiro “pedágio público” fixando 0,025 Unidade Financeira Municipal (UFM) por viagem realizada por intermédio de aplicativos até o limite mensal equivalente a 20 UFM’s por veículo cadastrado, afetando princípios constitucionais da livre iniciativa e livre concorrência, vetores que devem ser observados no regramento legislativo de atividades econômicas no país.
No Brasil, a Constituição de 1988 concebe a ordem econômica sujeita aos ditames da justiça social, dando à justiça social conteúdo preciso e preordena alguns princípios da ordem econômica – defesa do consumidor, defesa do meio ambiente, redução das desigualdades regionais e pessoais e a busca do pleno emprego. Em verdadeira busca utópica de humanização do capitalismo.
Ainda, o principio da ordem econômica - a livre concorrência - revela contornos especiais, previsto no artigo 170, IV, e manifestação de liberdade de iniciativa, sendo garantido pelo que a Constituição institui em seu artigo 173, §4. Portanto, a lei reprimirá os abusos de poder econômico que tendem a dominação de mercados, eliminação da concorrência e aumento arbitrário dos lucros.
É, pois, como salienta Guilherme Canedo de Guimarães:
“[...] quando o poder econômico passa a ser usado com o proposito de impedir a iniciativa de outros, com a ação no campo econômico, ou quando o poder econômico passa a ser o fator concorrente para um aumento arbitrário de lucros do detentor do poder, o abuso fica manifesto.” (GUIMARÃES, 1975, p. 16).
O modo de produção capitalista é evidenciado por sua injustiça social, notadamente nos sistemas periféricos. Para que se que se alcance algum nível de justiça o sistema deve ser capaz de produzir os meios necessários de subsistência mínimos para que os cidadãos vivam dignamente atendendo tantos suas necessidades de natureza física, espiritual e política.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há, quem daqueles entre nós, como os autores distópicos Herbert George Wells, Evegueni Zamiatine, Aldous Huxley, George Orwell e Ray Bradbury, que em suas obras, anteviram profundas transformações políticas, sociais e econômicas potencializadas a partir de um marco de grandes descobertas científicas. Neste estudo, identificamos que o surgimento da internet 2.0, foi um marco transversal gerador de uma profusão de mudanças nas estruturas sociais de comunicação e econômicas, dignas das obras de ficção científica dos mencionados autores.
Nesse cenário, em que se dá o surgimento de startups que buscam soluções digitais em modelos de negócios relacionados aos anseios e problemas sociais, concluímos que não há espaço para a “marcha ré na evolução”, tampouco, se poderá tentar barrar a atividade econômica simplesmente para impor o status quo. A inteligência menos traumática será abandonar a visão opositiva das inovações vindouras, pois a livre concorrência é um dos princípios da ordem econômica e fonte sustentável de mudanças no modelo de produção capitalista.
De toda sorte, nenhuma atividade econômica pode permanecer no limbo e sendo constantemente questionada no Judiciário, portanto, para que se assegure segurança jurídica aos agentes econômicos são fundamentais soluções regulatórias discutidas para os novos serviços permitindo harmonia e coerência com a regulação dos serviços tradicionais, para que não sejam criadas sérias distorções regulatórias e concorrenciais.
Este estudo buscou analisar social e juridicamente mecanismos para resolução de conflitos causada por startups de serviços digitais que modificaram o cenário econômico vigente, utilizando o exemplo do caso mais notório - a Uber. Assim constatou-se que socialmente é imperativo abandonar o pré-conceito opositivo à tecnologia, no aspecto jurídico compreender o constitucionalismo contemporâneo em seu aspecto de constitucionalização da ordem econômica ancorada no principio da livre concorrência inserte no artigo 170, IV da Constituição Federal do Brasil de 1988.
Notas
[1] É a segunda geração de serviços online e caracteriza-se por potencializar as formas de publicação, compartilhamento e organização de informações, além de ampliar os espaços para a interação entre os participantes do processo. A Web 2.0 refere-se não apenas a uma combinação de técnicas informáticas (serviços Web, linguagem Ajax, Web syndication, etc.), mas também a um determinado período tecnológico, a um conjunto de novas estratégias mercadológicas e a processos de comunicação mediados pelo computador.
[2] São símbolos que substituem palavras na comunicação surgidos no Japão na década de 1990, tais como: JL
[3] Empresas que atual em modelos de negócios de extrema incerteza, buscando uma forma de torna-lo repetível e escalável.
[4] A exemplo do Parque Científico e Tecnológico – TECNOPUC – no Rio Grande do Sul.
[5] O CADE, no âmbito do direito concorrencial, tem investigado a pratica de litigância abusiva e anticompetitiva dessas entidades (sham litigation). Manifestação da Superintendência-Geral Do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – SG/CADE, na Nota Técnica nº 51/2015CGAA4/SGA1/SG/CADE, do procedimento preparatório nº 08700.006964/2015-71.
[6] Processos na 19º Vara Cível de São Paulo nº (1009999-39.2014.8.26.0011, 1084191-64.2014.8.26.0100, 1040391-49.2015.8.26.0100); Processos na 41º Vara Cível de São Paulo Processo nº (1054861-85.2015.8.26.0100); Processos na 9º Vara de Fazenda Pública de São Paulo Processo nº (1021126-08.2015.8.26.0053); Processo na 28º Vara Cível de São Paulo nº 1028378-81.2016.8.26.0100; Processo na 2º Vara de Fazenda Pública de Guarulhos nº 1034223-47.2015.8.26.0224; Processo na 2º Vara de Fazenda Pública de Campinas nº 1005778.24.2016.8.26.0114; Processo na 8º Vara Cível de Brasília nº (0014466-05.2015.8.07.0001 e 0036012-19.2015.8.07.0001); Processo na 11º Vara Cível de Belo Horizonte nº 5055098-14.2016.8.13.0024; Processo na 29º Vara Cível de Fortaleza nº 014060601-55.2016.8.06.0001.
REFERÊNCIAS
ARRUDA, Carlos et al. Causas da mortalidade de startups brasileiras: o que fazer para aumentar as chances de sobrevivência no mercado? Nova Lima: FDC, [S.l.], 2014. Disponível em: https://www.fdc.org.br/blogespacodialogo/Documents/2014/causas_mortalidade_startups_brasileiras.pdf.> Acesso em: 13 jun. 2016.
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