Introdução
A judicialização do direito à saúde, diretamente interligado ao direito à vida, ganha destaque nos Tribunais brasileiros, direcionando-se a serviços públicos e privados, tais como fornecimento de medicamentos, a disponibilização de exames e leitos de UTI e a cobertura de tratamentos para doenças. Desse modo, vivencia-se um destaque do papel do Judiciário na efetivação da saúde, com interferência no cotidiano da gestão política da saúde.
Cabe destacar esse processo de judicialização da saúde teve início tímido, com demandas eventuais e decisões específicas e “solitárias”. A formação de paradigmas veio a ocorrer a partir do reconhecimento do dever do Estado de concessão de antirretrovirais para portadores de HIV/Aids, momento em que o Judiciário passou a se posicionar de forma mais sistemática sobre essas demandas e a ocupar um certo protagonismo no contexto da gestão de saúde.
A criação do Fórum Nacional do Judiciário para a saúde, Comitês Estaduais de Saúde e recomendações sobre como os juízes podem decidir as causas que lhes são apresentadas são reflexo do esforço do Judiciário em oferecer parâmetros e diretrizes para sua atuação em demandas de saúde e, assim, suprir lacuna da Administração Pública na gestão dos serviços de saúde.
Ocorre que a situação por hora explanada traz consigo conseqüências de ordem prática e constitucional nos três Poderes e na sociedade, necessitando de uma análise ponderada da atuação do Judiciário, sua legitimidade para tal e seu impacto em termos de justiça distributiva e eficiência no Sistema Público de Saúde.
Efetividade do direito à saúde no Direito Pátrio
A Constituição/1988 foi um ícone quanto aos direitos sociais, seu art. 5º, §1º fez com que todos os direitos fundamentais passassem a ter aplicabilidade imediata, ficando a cargo do Poder estatal assegurar sua efetividade nas relações públicas e privadas. Assim, trata-se de prestação positiva do Estado, a fim de implementar utilidade concreta.
O direito a saúde, intrínseco ao direito à vida, recebe tratamento específico na “Constituição Cidadã”, compreendendo-a como direito universal e fundamental do indivíduo, expressamente, nos arts. 6º e 196. Trata-se de “Constituição dirigente” que vai além da previsão do direito fundamental, estipulando metas a serem concretizadas pelo Estado, visando o cumprimento destas imposições, com aplicabilidade e eficácia.
Nota-se que há uma deficiência da prestação de serviços de saúde por parte da Administração Pública, acentuada por uma má gestão do Executivo e uma lacuna do Legislativo, o que leva os cidadãos a buscar o Judiciário e sua força coercitiva a fim de ter seus direitos assegurados e a dignidade humana garantida.
Nesse sentido, destaca-se do texto constitucional o emaranhado principiológico que deve reger as políticas públicas na área da saúde, são eles: Universalidade da cobertura e do atendimento; Caráter democrático e descentralizado da administração; Regionalização e hierarquização; e Atendimento integral, priorizando as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais. Ocorrem, ainda, que as normas definidoras desses direitos estão vinculadas às modificações econômicas, sociais e administrativas, tornando-se necessária, portanto, uma adequação das carências sociais às capacidades materiais do Estado.
Nota-se, portanto que a gestão da saúde é questão que necessita ser redimensionada, envolvendo não apenas o Poder Judiciário como também os gestores públicos, os profissionais do Direito e da saúde e a sociedade civil como um todo. Em que se as críticas das demais esferas de poder, a jurisprudência já é pacífica quanto à possibilidade de ingerência do Judiciário na gestão política de saúde.
Com a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 45, mesmo havendo a perda do objeto da ação, iniciou-se o processo de inversão paradigmática das questões de prestações de saúde. O STF reconheceu não ser função do Judiciário a implementação de políticas públicas para efetivação do direito à saúde, entretanto, havendo comportamento abusivo do Legislativo e do Executivo, o Judiciário deveria intervir, a fim de garantir “o núcleo intangível à sobrevivência e à existência digna do indivíduo”.
É recorrente em demandas de saúde, a defesa estatal se pautar na Teoria da “Reserva do Possível”. Convém entender a origem da referida teoria, qual seja a partir de uma decisão da Corte Alemã, nos anos 70, na demanda de estudantes que questionavam a limitação do número de vagas em universidades públicas e o Estado atentou para a razoabilidade dessa prestação.
A Corte entendeu que o cidadão só pode exigir do Estado o que razoavelmente se puder esperar, frente às necessidades da sociedade, ainda que haja recursos e poder de disposição. Nota-se que a teoria da “Reserva do Possível”, na sua origem, não está restrita à existência de recursos suficientes para a efetivação dos direitos sociais, deve-se atentar para a razoabilidade da pretensão proposta frente à sua concretização.
Já no Brasil, citada teoria relaciona-se diretamente a uma teoria da reserva do financeiramente possível, sendo considerada como limite à efetivação dos direitos fundamentais prestacionais. Erroneamente, a reserva do financeiramente possível é usada como um obstáculo à aplicabilidade do direito à saúde, quando deveria ser um direcionador da forma como deverão ser alocados os recursos públicos.
Assim, o Supremo afirma em suas decisões que tal reserva não pode ser utilizada como excludente ou atenuante da responsabilidade extracontratual do Estado, a escusa da Administração com base em alegação, ainda que comprovada, de insuficiência financeira para a não efetivação do direito à saúde não pode passar despercebida pelos órgãos jurisdicionais competentes.
Conclusão
O Judiciário está preparado e tem o poder-dever de realizar a justiça no caso concreto, do ponto de vista individual ou abarcando um grupo específico de pessoas (micro justiça). O direito à saúde é direito subjetivo e fundamental, e, no Brasil, é direito de todos e dever do Estado, de modo que nenhuma teoria da reserva financeira é suficiente para eximir o Governo dessa prestação.
No entanto, quando o Judiciário determina uma dotação para atender uma pessoa específica no campo da saúde, há interferência na macrojustiça, nas decisões administrativas, em segmentos econômicos, em políticas públicas. Aqui, se a decisão não for tomada com parcimônia, o custo dessa demanda, somado ao de centenas de outras, terminará por prejudicar a coletividade.
Tendo por concluso que a Judicialização da Saúde é um caminho sem volta e que há legitimação na apreciação judicial dessas demandas, nota-se que a conscientização de todos os que atuam no ramo da saúde sobre os conflitos existentes em sua judicialização, assim como a atuação dos órgãos de fiscalização sobre todas as questões relacionadas á saúde pública são medidas de extrema urgência.
Referências
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