A Ação Civil Pública e a formação do litisconsórcio passivo multitudinário facultativo
A doutrina define litisconsórcio como uma pluralidade de partes, ou seja, há mais de um autor ou mais de um réu[22].
Essa definição que nos mostra de maneira simples, a sua análise, não pode ser realizada somente nessa perspectiva de pluralidade de réus, autores ou de ambos[23].
É preciso distinguir o litisconsórcio da cumulação subjetiva.
Haverá, claramente como denota do próprio nome, a cumulação subjetiva sempre que houver mais de um réu ou autor.
Para que exista o litisconsórcio é preciso que tal multiplicidade de sujeitos venha vincular os sujeitos componentes do polo de alguma forma através de certa afinidade entre eles. Assim, não seria possível considerar como litisconsórcio a ação de consignação em pagamento proposta face uma bitributação, por exemplo.
Neste caso, dois entes políticos estariam cobrando dois tributos iguais sobre um mesmo contribuinte. Assim, o contribuinte poderá se valer da consignação em pagamento para discutir a quem deve pagar, contudo, ao chamar aos autos os dois entes políticos, estes não possuem afinidades entre si, pois possuindo pretensões antagônicas relativamente ao crédito visando cada qual a exclusão da pretensão do outro[24].
A justificativa pelo sistema processual brasileiro para se adotar o litisconsórcio, repousa no princípio da economia processual, em razão do qual, com o litisconsórcio, evita-se o desperdício de recursos e o segundo princípio seria da segurança jurídica, pois o litisconsórcio, ao proporcionar que se aplique o direito uniformemente, àqueles que do processo sejam partes, evita a prolação de decisões conflitantes[25].
Não obstante a essas considerações, observa-se que o litisconsórcio representa a verdadeira garantia ao acesso à justiça[26] ao possibilitar que em único processo se depare com uma pluralidade de partes e outorgando-lhes a maior participação de causas possíveis trazendo consigo o princípio da economia processual.
No atual CPC, tem-se as considerações sobre o litisconsórcio no art. 113 ao art. 118, porém para objeto de análise e estudo, trataremos exclusivamente do alcance do art. 113, § 1º, do CPC, quando justamente existir o litisconsórcio passivo multitudinário.
É inegável que na ação civil pública, tal como exposto nas linhas anteriores, a formação de sua tutela poderá levar a um verdadeiro litisconsórcio passivo facultativo e que isso, em algumas ocasiões, poderá influenciar na tutela de direitos coletivos, tal como p.e., no caso de improbidade administrativa de dano ao erário.
Essa formação não passou despercebida dos tribunais, e o que se tem é justamente que a causa em si (p.e. dano ao erário), embora venha a reunir uma gama de litisconsortes passivos, não se retira a possibilidade de se desmembrar a ação civil pública em nome da duração razoável do processo, vide STJ - REsp: 1370709 RJ 2013/0018662-9, Relator: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Publicação: DJ 03/06/2015.
Daí que, diante dessa assertiva é possível ponderar pelo desmembramento da ação civil pública justamente quando se tem a primazia da Constituição Federal sobre os aspectos procedimentais na tutela coletiva.
Desmembramento da ação civil pública como fator da aplicação do princípio da duração razoável do processo
O tempo não pode ser o mecanismo da injustiça e da falta de efetividade ao processo em si, inclusive não se olvida a balizada lição do mestre Rui Barbosa (in Oração Aos Moços, Russel: 2004, p. 47): “Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”.
O Estado-juiz deve-se ater ao clamor daqueles que necessitam da Justiça e que apresentam a sua manifesta provocação, quando conveniente e adequada às questões que se discutem nos autos em comparação aos efeitos que os danos marginais do processo poderá provocar para a empresa peticionante.
Os danos marginais, assim, bem explicado nas palavras do ilustre jurista italiano Ítalo Andolina in “Cognizione ed escuzione forzata nel sistema dela tutela giurisdizionale”. p. 28:
“O dano marginal é aquele produzido durante o desenvolvimento regular do processo e representa, em certo sentido, uma consequência da lentidão dele próprio.”
Desta forma, verifica-se claramente que o tempo é o inimigo que se procura afastar do processo judicial, principalmente quando o(s) envolvido(s) não teve qualquer participação na situação ou quando se tratar de pessoa jurídica, cuja vida empresarial poderá macular pelo tempo que o Estado demora para se resolver a responsabilidade dos envolvidos na ação civil pública de improbidade administrativa.
Pois bem.
O princípio da celeridade processual, decorrente do chamado direito fundamental à razoável duração do processo, encontra-se expressamente previsto no artigo 5°, inciso LXXVIII, da Constituição da República Federativa do Brasil, preconizando que: "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação".
Inicialmente, incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro com a recepção do Pacto de São José da Costa Rica e levantado à categoria de direito fundamental pela Emenda Constitucional 45/2004, o conteúdo deste princípio delimita que o processo deve ser concluído dentro de um prazo razoável, suficiente para garantir o fim pretendido e rápido o bastante para se tornar eficaz, trazendo consigo a paz sobre o conflito e dos interesses em jogo.
O direito fundamental à razoável duração do processo possui caráter bidimensional, não significando apenas aceleração processual ou dilação de prazos, mas o inverso, consistente em um tempo de tramitação otimizado, em compasso com o tempo da justiça, alinhando-se àquilo que se conhece pelas normas fundamentais, em particular, o art. 4º, do código de processo civil:
“Art. 4º. As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa”.
Exige sob esse prisma que de um lado o processo se desenvolva de maneira célere e, de outro, que haja tempo suficiente para que as partes exercitem seu direito de defesa, e que haja, ainda, um tempo para maturação da decisão judicial. Assim, haveria violação ao direito fundamental tanto com o transcurso moroso de um feito quanto pelo transcurso apressado do procedimento, negando às partes exercitar suas prerrogativas de defesa, a completa produção probatória ou mesmo o período de reflexão inerente à tarefa de julgar.
O direito à tutela jurisdicional em tempo razoável possui forte ligação com a efetividade do processo, de tal sorte que a morosidade processual é uma das principais causas da descrença no Poder Judiciário.
Tanto é verdade, que a perda da confiança e respeitabilidade nos órgãos jurisdicionais configura verdadeira afronta ao Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, assevera Humberto Theodoro Junior, um dos integrantes da comissão de juristas encarregado de elaborar o anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, para o qual: "A primeira grande conquista do Estado Democrático é justamente a de oferecer a todos uma justiça confiável, independente, imparcial e dotada de meios que a faça respeitada e acatada pela sociedade"[27].
A morosidade somente é benéfica para quem lucra com a demora do processo judicial, para a sociedade em si é demasiadamente prejudicial, pois além de violar o princípio da celeridade, restringe o acesso à justiça, tornando o processo judicial excessivamente caro e inviável aos economicamente fracos, num prisma da injustiça, privilegia as partes favorecidas que utilizam o tempo como sua estratégia processual, utilizando-se de manobras como p.e. “esquivar-se” da citação.
Logo, denota-se que a efetiva aplicação do princípio constitucional da duração razoável do processo é de salutar importância para o combate ao tempo que pode lesar interesses daqueles que litigam com a boa-fé.
Assim, não se afasta que o teor do art. 113, § 1º, do CPC, seja aplicado com vistas a esses apontamentos constitucionais, enaltecendo-se a possibilidade de “cisão” de uma ação coletiva para tutelar os mesmos interesses e direitos, porém numa duração razoável do processo pelo Estado, vide:
“Art. 113.
§ 1º. O juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quando ao número de litigantes na fase de conhecimento, na liquidação da sentença ou na execução, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa ou o cumprimento da sentença”.
Observando-se essa questão, passa-se então a aferir o procedimento adotado na ação civil pública por improbidade administrativa, para isso, não se afasta do que traz previsão do art. 17, § 7º, da Lei n. 8.437/1992:
“Art. 17.
§ 7º. Estando a inicial em devida forma, o juiz mandará autua-la e ordenará a notificação do requerido, para oferecer manifestação por escrito e que poderá ser instruída com documentos e justificados, dentro do prazo de 15 (quinze) dias”.
Essa circunstância demonstra que na ação civil pública por improbidade administrativa por dano ao erário, tem-se duas fases processuais a saber: a primeira (fase preliminar) em que o magistrado aferirá as manifestações dos notificados do polo passivo e assim, determinar que a petição inicial prossiga com oferta de contestação pelos incluídos no polo passivo da demanda; e a segunda fase em que o magistrado receberá as defesas e prosseguirá pelo procedimento comum (Art. 17, § 8º, da lei de improbidade administrativa).
Para se aferir a possibilidade do desmembramento da ação civil pública que tenha por objeto da improbidade administrativa por dano ao erário, cita-se, p.e., o caso em que há um rol de litisconsorte passivo facultativo multitudinário formando e que alguns já foram notificados enquanto que outros sequer foram notificados da ação na fase preliminar dessa ação.
A questão então seria analisar se realmente há uma verdadeira “defesa” nessa fase preliminar para se aguardar a notificação dos demais envolvidos. Para essa situação, por não se tratar de contestação, a manifestação prévia apresentada em primeira fase da ação civil pública por improbidade administrativa, acredita-se que não há o dever de se aguardar a notificação de todos os envolvidos no polo passivo da ação para apresentação da peça, muito menos haveria a necessidade de se aguardar qualquer apresentação de todas as manifestações para que o Ministério Público responda a cada uma delas no processo, muito menos haveria contagem de prazo em dobro[28].
Portanto, dadas essas considerações procedimentais, caso o Ministério Público venha a proclamar pela necessidade de análise conjunta das manifestações prévias na ação de improbidade administrativa, essa inclinação, além de desarrazoada não contribui com a efetividade do processo àqueles que litigam de boa-fé e que tem o risco de ver o nome da sua empresa ou o próprio “manchado” por anos até a decisão do Estado.
Nessa circunstância, conveniente que o desmembramento da ação civil pública por improbidade administrativa seja viável e nesse sentido, o TJSP tem se inclinado pela possibilidade de desmembramento da ação civil pública, vide:
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA – LITISCONSÓRCIO MULTITUDINÁRIO – DEMANDA AJUIZADA CONTRA 15 (QUINZE) RÉUS – LIMITAÇÃO DO NÚMERO DE LITIGANTES – POSSIBILIDADE – APLICAÇÃO DO ART. 113, § 1º, DO CPC - PROCESSO QUE DEVERÁ SER DESMEMBRADO EM 5 (CINCO), CADA QUAL COM 3 RÉUS – DIVISÃO QUE ACOMODA RAZOAVELMENTE TODOS OS DEMANDANTES E PRESTIGIA A CELERIDADE E O DIREITO DE DEFESA – DECISÃO REFORMADA EM PARTE. - Recurso parcialmente provido”. (TJ-SP - AI: 21064203920168260000 SP 2106420-39.2016.8.26.0000, Relator: Edgard Rosa, Data de Julgamento: 18/08/2016, 25ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 24/08/2016).
E ainda, o STJ também corrobora do mesmo entendimento sobre o desmembramento da Ação Civil Pública por improbidade administrativa, vide:
“PROCESSO - AÇAO CIVIL PÚBLICA - LITISCONSÓRCIO PASSIVO MULTITUDINÁRIO - APELO DO AUTOR PARCIALMENTE PROVIDO, REFORMANDO-SE A R. SENTENÇA PARA LIMITAR-SE O LITISCONSÓRCIO FACULTATIVO QUANTO AO NÚMERO DE LITIGANTES, NOS TERMOS DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 46 DO CPC" (STJ - REsp: 535957 MG 2003/0016615-2, Relator: Ministro CASTRO MEIRA, Data de Julgamento: 04/09/2007, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJ 18/09/2007 p. 281).
Portanto, o que se tem é pela plena possibilidade de se desmembrar a ação civil pública para não comprometer a rápida solução do litígio, nos termos do art. 113, § 1º, do CPC, principalmente quando a questão versar sobre a formação de um litisconsórcio multitudinário passivo em que, alguns foram notificados, outros sequer localizados, e aqueles que já ofertaram a manifestação prévia têm todo o direito de se ver sanado o conflito em relação a ele de modo célere com a contribuição do Estado atuante (art. 2º, do CPC), seja pela proclamação da sua ilegitimidade; ou falta de interesse do autor; ou porque as provas não conduzem a essa responsabilidade.
Essa possibilidade decorre do próprio clamor que o processo civil fez ao tratar dos assuntos: celeridade e economia processual. Justamente, aquilo que se preza diante do palco processual que se apresenta atualmente.
A demora na tramitação de uma ação civil pública não pode refletir de forma negativa para os envolvidos no litisconsórcio passivo, muito menos para a sociedade em si, pois é papel do Estado- juiz repensar os mecanismos processuais para a entrega de uma prestação jurisdicional mais efetiva, justa e em menor tempo. Do contrário, não se olvida a forma de responsabilizar o próprio Estado pela lesão causada pela demora na tramitação do processo judicial.