6 CONCLUSÕES
Esta exigência indiscriminada de receita para obtenção de remédios, feita a um povo que tem dificuldade no acesso a médicos, significa condená-lo à falsificação e, portanto, à corrupção ou eventualmente a perpetuação da doença ou mesmo a morte pela ausência de compra do próprio medicamento. Mais paradoxal, ainda, é a pouco conhecida (porém inexplicável e desmedida) restrição legal quanto à validade das receitas médicas à geografia de cada estado-federado, em função de o médico-emissor possuir um número (controlado) que é regional (CRM) e não nacional; resta dizer: uma receita médica emitida no Rio de Janeiro para a aquisição de determinados medicamentos não possui validade nas farmácias situadas nas cidades paulistas.
É bom ressaltar que não se está, na hipótese, em absoluto, fazendo apologia à automedicação, ou mesmo mitigando os possíveis danos que a má administração de remédios possa ocasionar.
O que se contesta e se condena veementemente, é justamente este excesso (cruel e muitas vezes desumano) de ingerência do Estado em todos os assuntos, criando uma situação absurda e demagógica, que nada mais é do que um dos inúmeros (e consagrados) instrumentos de "criar dificuldades para vender facilidades", inerente à cultura brasileira, alimentando, por conseguinte, a indústria (paralela e muito ativa) de venda de receitas médicas, inclusive através da internet, ou até mesmo diretamente pelas drogarias[IV].
Trata-se de mais uma das inúmeras incoerências do Estado Brasileiro que, conforme já afirmado, não serve ao cidadão, mas, ao contrário, se serve do cidadão[V], e de forma institucionalizada[VI],[VII], ao argumento (muitas vezes eivado de forte cinismo) que "tudo é feito em benefício da população". A realidade é que os órgãos de regulação se auto protegem para que cada vez mais a máquina administrativa fique inchada de servidores públicos, criando e fortalecendo o que se convencionou denominar por a arrogância do subdesenvolvimento.
Notas
[1] GONÇALVES, Joana Carla Soares; BODE, Klaus (Org.). Edifício Ambiental. São Paulo: Oficina de Textos, 2015. Disponível em: https://goo.gl/DBJCGs. Acesso em: 12 jun. 2017.
[2] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília-DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 04.2018.
[3] PANCERI, Rafaella. Fique por dentro das regras para transportar medicamentos em aeroportos. Correio Braziliense, 11 set. 2015. Disponível em: https://goo.gl/rHvAZo. Acesso em: 12 jun. 2017.
[4] AMARAL NETO, Roberto Franco do. Melatonina, mais do que um “hormônio do sono”! Blog do autor, 13 jun. 2013. Disponível em: https://goo.gl/Mpzfoa. Acesso em 12 jun. 2017
[5] LOPES, Hélio Vasconcellos. Antibióticos: com ou sem receita médica? Revista Panamericana de Infectologia, on-line. N.2 – 2010. Disponível em: https://goo.gl/8PDvTn. Acesso em: 29 mai. 2017.
[6] VENTURA, Manoel; CASEMIRO, Luciana. Loteamento de Cargos na ANS. O Globo, 02 jul. 2017, p. 33.
[7] PALÁCIOS, Marisa; REGO, Sergio; LINO, Maria Helena. Promoção e propaganda de medicamentos em ambientes de ensino: elementos para o debate. Revista Interface - Comunicação, Saúde, Educação, on-line, Botucatu, vol. 12, n. 27, Oct./Dec. 2008. Disponível em: https://goo.gl/i5BEZX. Acesso em 12 jun. 2017.
[8] ANVISA. AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. Resolução da Diretoria Colegiada – RDC 102 de 30 de novembro de 2000. Disponível em: http://www.cff.org.br/userfiles/file/resolucao_sanitaria/102.pdf. Acesso em: 04/2018.
[9] PEREIRA, Cleidi. Como médicos são assediados pela indústria farmacêutica para prescrever medicamentos. Portal de notícias GAUCHAZH, 07 mai. 2017. Disponível em: https://goo.gl/arizdd. Acesso em: 12 jun. 2017.
NOTAS COMPLEMENTARES:
[I] A Incompreensível Burocracia Brasileira
A burocracia se constitui num dos maiores entraves ao desenvolvimento do Brasil, em quaisquer de suas formas: "Depois de dois anos sem conseguir validar seu diploma no Ministério da Educação, o famoso médico uruguaio FERNANDO VINUELA foi derrotado pela burocracia. Criador de um dos mais avançados métodos de tratamento de AVC, ele vai chefiar o departamento de Neurorradiologia da Universidade da Califórnia." (O Globo, 02/07/2017 p.18).
[II] Os Tímidos Avanços de uma Legislação Liberalizante
Cabe ressaltar que, em reportagem publicada no Jornal O Globo, em 24/06/2017 (p.24), foi dado destaque à aprovação do Projeto de Lei nº 2.431/2011 (convertido na Lei Ordinária nº 13.454/2017) pela Câmara dos Deputados, autorizando a produção, comercialização e o consumo, sob prescrição médica, da sibutramina, anfepramona, femproporex e mazindol, chamados de medicamentos anorexígenos, pois contêm substâncias que inibem o apetite e geralmente são utilizados em tratamentos contra a obesidade mórbida.
Entrevistado, o psiquiatra EMMANUEL FORTES, terceiro vice-presidente do CFM, destaca que a resolução da ANVISA proibindo as substâncias, prejudicava o bem-estar da população e tolhia a liberdade de prescrição dos médicos. Em documento enviado ao Presidente interino RODRIGO MAIA, alguns dias antes da aprovação da norma, a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM); a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso) e a Associação Brasileira de Nutrologia (Abran) reforçaram o pedido para a sanção: "Não é concebível assistir, de mãos atadas, ao ganho de peso progressivo dos pacientes, muitos deles se tornando obesos mórbidos com várias doenças associadas, piora da qualidade de vida e de sua capacidade produtiva, entrando na longa fila para cirurgia de obesidade, que se trata de procedimento invasivo, que envolve riscos e altos custos de curto, médio e longo prazo".
[III] Resolução CFM nº 1.595/00
Segundo a Resolução CFM nº 1.595/00, verbis:
Art. 1º - Proibir a vinculação da prescrição médica ao recebimento de vantagens materiais oferecidas por agentes econômicos interessados na produção ou comercialização de produtos farmacêuticos ou equipamentos de uso na área médica.
Art. 2º - Determinar que os médicos, ao proferir palestras ou escrever artigos divulgando ou promovendo produtos farmacêuticos ou equipamentos para uso na medicina, declarem os agentes financeiros que patrocinam suas pesquisas e/ou apresentações, cabendo-lhes ainda indicar a metodologia empregada em suas pesquisas – quando for o caso – ou referir a literatura e bibliografia que serviram de base à apresentação, quando essa tiver por natureza a transmissão de conhecimento proveniente de fontes alheias.
[IV] A Hipocrisia de um Estado Covarde
Resta oportuno assinalar que, enquanto traficantes e bandidos dominam aproximadamente 850 pontos da cidade do Rio de Janeiro, criando um verdadeiro Estado Paralelo (em flagrante desafio à autoridade estatal), comercializando armas de guerra e os mais variados tipos de drogas mortais, o Poder Público se vangloria de lograr prender, em flagrante delito, três balconistas de uma farmácia na Barra da Tijuca que venderam, sem a devida receita médica, um medicamento, relativamente comum, destinado a insônia, chamado stilnox, que em muitos países é comercializado (simplesmente) sem qualquer exigência desta natureza.
Mais grave é que, segundo notícias veiculadas pela imprensa (RJTV, 2017), os mesmos serão processados por tráfico de entorpecentes, em situação semelhante àqueles que (impunemente) vendem cocaína e heroína que se destinam unicamente à destruição da vida de nossos cidadãos.
Caso venham a ser condenados, serão (presumivelmente) encarcerados juntamente com os perigosíssimos bandidos que torturam e matam diariamente e que, inclusive, dominam, através de suas facções criminosas, as degradantes prisões brasileiras.
Podemos ilustrar essa (inusitada) dicotomia numa situação ocorrida recentemente, na qual a Defensoria Pública da União, que é paga pelos contribuintes da sociedade (presumivelmente para a defesa da mesma), ao arrepio do bom senso, solicitou, - ainda que, imediata e muito corretamente, indeferida pelo Ministro ALEXANDRE DE MORAES no Supremo Tribunal Federal -, a transferência dos bandidos (cariocas) mais perigosos que estão (atualmente) em penitenciárias federais, para as prisões estaduais do Rio de Janeiro, onde eles atuam com plena liberdade e total controle. Em contraponto, a Defensoria do Estado do Rio de Janeiro (ainda que, sob o ponto de vista organizacional, não seja, vinculada à DPU), ignorando a efetiva injustiça da prisão em flagrante daqueles balconistas que vendiam medicamento sem o correspondente receituário, nada fizeram, de forma coletiva e por iniciativa própria (habeas corpus), em prol dos mesmos.
Esse é (lamentavelmente) o retrato do Estado brasileiro, onde impera a hipocrisia e mesmo uma relativa covardia, e que, além de tudo, perdeu (completamente) o senso da realidade, reproduzindo a parábola segundo a qual agentes da Anvisa, a bordo do transatlântico Titanic (BRASIL) -, durante o caos de seu iminente naufrágio (com vários passageiros tentando desesperadamente conseguir ingressar em botes salva-vidas) e ignorando a simplória e evidente realidade dos fatos -, insiste em autuar o restaurante do navio por estar comercializando alimentos com validade vencida.
Ainda assim, - e, sobretudo, para que não haja críticas desmerecidas -, é importante registrar que o que ora se defende não é (propriamente) a impunidade daquele que cometem pequenos delitos, mas uma necessária reflexão sobre a prevalência de um senso mínimo de prioridade em situações de verdadeira falência da atuação repressiva do Poder Público, assim como uma genuína e necessária proporcionalidade entre a sanção (que na maioria dos casos é, ou no mínimo deveria ser, meramente administrativa) e o suposto mal causado para a sociedade.
[V] A Necessária Multiplicidade de Receitas Médicas
Vale também destacar que, especialmente no caso das doenças crônicas, - como o médico encontra-se proibido de prescrever a compra de mais do que três caixas do mesmo medicamento (e muitos desses fármacos, especialmente analgésicos poderosos, possuem uma quantidade limitada de apenas dez comprimidos por embalagem) -, corre-se o risco do paciente ter que agendar visitas mensais (ou mesmo quinzenais) ao referido profissional de saúde, sobrecarregando o serviço público e aumentando (indiretamente) o preço dos planos de saúde para o atendimento nos casos particulares.
Muito embora seja cediço reconhecer que tais visitas (frequentes) ao médico sejam sempre (pelo menos, em tese) recomendáveis (ainda que no serviço público brasileiro, grande parte dos profissionais, - por absoluta ausência de tempo -, em face de inúmeras emergências com que se acumulam, sequer reexaminam o paciente, limitando-se a apenas copiar a receita anterior), estas não atinam a triste realidade da saúde no Brasil, piorando o quadro já caótico do SUS.
Por outro lado, mesmo quando prevista a expressa autorização para a compra de três unidades de medicamentos, é sabido que muitas vezes há uma enorme dificuldade em encontrá-los nas redes de farmácias, particularmente em cidades do interior, obrigando, muitas vezes, o paciente a entregar (na prática) uma receita com pedido de três caixas, e apenas ser possível comprar uma, compelindo-o a um novo agendamento de consulta para obtenção de novas receitas para complementação (por absurdo) do que já havia sido autorizado.
[VI] O Sistema de Saúde Idealizado no Brasil
Estima-se que para que o atual modelo de Sistema de Saúde Pública brasileiro funcione plena e corretamente (conforme idealizado), seria necessário que as verbas destinadas à Saúde, - da ordem de R$ 115 bilhões de reais em 2017, valor equivalente a 15% da receita corrente líquida (RCL), ou 3,8% do PIB (Fonte: https://goo.gl/jveKbk. Acesso em 09 jan. 2018) -, fossem ampliadas para algo próximo a 30% do PIB, o que, a toda evidência, seria algo, simplesmente, singular e absolutamente impossível de ser implementado.
Portanto, a dúvida fundamental se resume em saber se o Brasil possui um Sistema de Saúde Pública realmente adequado a sua realidade ou, ao reverso, trata-se de mais uma das tentativas de transformar um plano ideal (concebido por burocratas que, debruçados sobre suas escrivaninhas em repartições públicas refrigeradas, simplesmente desconhecem o Brasil) em um plano abstrato, reduzindo-o a uma discussão nitidamente teórica e, portanto, completamente distorcida da prática e, portanto, fadada ao insucesso que sempre a coroou.
[VII] A Hipocrisia Da Legislação
No início do ano de 2018 (03/01/2018), foi sancionada, pelo governador LUIZ FERNANDO PEZÃO, a Lei nº 7.829/18, oriunda do PL 1.030/2011, de autoria da Deputada Estadual e enfermeira REJANE (PC do B), que obriga hospitais, postos de saúde, clínicas públicas e privadas a comunicar casos de embriaguez e consumo de drogas por crianças e adolescentes aos respectivos responsáveis e também ao Conselho Tutelar.
A nova lei, no entanto, é vista com cautela por especialistas, pelos mais variados motivos. Em primeiro lugar, porque seria importante garantir que o Estado contasse (previamente) com uma estrutura para que ações efetivas pudessem ser tomadas após essas notificações, como o acompanhamento da família do jovem e o encaminhamento a programas específicos e, ainda assim, com o resguardo do necessário sigilo.
Em segundo lugar, porque embora tal medida possa parecer salutar à primeira vista, é preciso cuidados especiais ao implementá-la na prática. De fato, esta determinação pode fazer (e, muito provavelmente, fará) com que muitas pessoas, com receio de serem identificadas, simplesmente deixem de buscar auxílio médico, com evidente risco para suas próprias vidas.
Corroborando esta opinião, a pesquisadora do Instituto Igarapé, ANA PAULA PELLEGRINO, que realiza pesquisas sobre política de drogas, adverte, em tom sublime, que é importante ter bem definido o caráter da lei para que ela não gere efeitos negativos: "A pergunta que fica é: quais são as intenções dessa medida e o investimento para apoiar esses adolescentes e famílias preservando os direitos deles? Não adianta reportar os casos sem que haja capacidade de intervenção e apoio de fato. É necessário que a lei seja feita em uma perspectiva de saúde e não de punição, porque existe o risco de gerar uma resistência na busca por ajuda" (FERREIRA, 2018).
Ao arrepio dos termos da Lei, o ideal seria, - se o objetivo do novel regramento é, de fato, apenas e tão somente estatístico (para efeitos de prevenção e de construção de novas políticas públicas e de específicos programas de governo), que não houvesse nenhuma forma de identificação dos atendidos. Como tal não é previsto em Lei, verifica-se que a normatividade epigrafada constitui-se em mais uma arrogância de um Estado que busca, - distante de qualquer compromisso social e de uma necessária compreensão humana e respeito ao indivíduo (bem como aos núcleos familiares), - servir à si próprio e não (como presumivelmente deveria, na qualidade de suposto Estado Democrático de Direito), ao cidadão.
REFERÊNCIAS
AMARAL NETO, Roberto Franco do. Melatonina, mais do que um “hormônio do sono”! Blog do autor, 13 jun. 2013. Disponível em: https://goo.gl/Mpzfoa. Acesso em 12 jun. 2017
ANVISA. AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. Resolução da Diretoria Colegiada – RDC 102 de 30 de novembro de 2000. Disponível em: http://www.cff.org.br/userfiles/file/resolucao_sanitaria/102.pdf. Acesso em: 04/2018.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília-DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 04.2018.
FERREIRA, Paula. Lei sobre uso de álcool e drogas por menores é vista com cautela por especialistas. O Globo, Rio de Janeiro, 04 jan. 2018. Disponível em: https://goo.gl/nbxEww. Acesso em: 08 de jan. 2018.
GONÇALVES, Joana Carla Soares; BODE, Klaus (Org.). Edifício Ambiental. São Paulo: Oficina de Textos, 2015. Disponível em: https://goo.gl/DBJCGs. Acesso em: 12 jun. 2017.
LOPES, Hélio Vasconcellos. Antibióticos: com ou sem receita médica? Revista Panamericana de Infectologia, on-line. N.2 – 2010. Disponível em: https://goo.gl/8PDvTn. Acesso em: 29 mai. 2017.
PALÁCIOS, Marisa; REGO, Sergio; LINO, Maria Helena. Promoção e propaganda de medicamentos em ambientes de ensino: elementos para o debate. Revista Interface - Comunicação, Saúde, Educação, on-line, Botucatu, vol. 12, n. 27, Oct./Dec. 2008. Disponível em: https://goo.gl/i5BEZX. Acesso em 12 jun. 2017.
PANCERI, Rafaella. Fique por dentro das regras para transportar medicamentos em aeroportos. Correio Braziliense, 11 set. 2015. Disponível em: https://goo.gl/rHvAZo. Acesso em: 12 jun. 2017.
PEREIRA, Cleidi. Como médicos são assediados pela indústria farmacêutica para prescrever medicamentos. Portal de notícias GAUCHAZH, 07 mai. 2017. Disponível em: https://goo.gl/arizdd. Acesso em: 12 jun. 2017.
RJTV. Funcionários de farmácia na Barra da Tijuca são presos por vender remédios controlados sem receita. Portal de Notícias G1, 30 set. 2017. Disponível em: https://goo.gl/8mEX5T. Acesso em: 12 de jan. 2018.
VENTURA, Manoel; CASEMIRO, Luciana. Loteamento de Cargos na ANS. O Globo, 02 jul. 2017, p. 33.