RESUMO: O presente artigo analisa a questão inerente ao irrazoável rigor com o qual os Poderes Executivo e Legislativo tratam a questão dos medicamentos no Brasil, exigindo-se receita médica até mesmo para medicamentos simples, sobrecarregando o Sistema de Saúde Público, que se encontra em situação reconhecidamente caótica. Trata-se de mais um exemplo dos excessos de ingerência do Estado brasileiro em assuntos que muitas vezes podem ser identificados como de natureza privada, sem qualquer benefício para a população, o que se convencionou denominar por a arrogância do subdesenvolvimento.
Palavras-chave: Saúde. Medicamentos. Burocracia. Receita Médica. SUS. Arrogância. Subdesenvolvimento.
1 INTRODUÇÃO
Desde os tempos mais pretéritos, a história dos fármacos e medicamentos sempre esteve diretamente relacionada à atenção dos povos no que diz respeito à saúde. Textos antigos relatam o emprego de plantas e substâncias de origem animal para fins curativos, já no período Paleolítico.
A evolução da farmácia, como atividade dissociada da medicina (embora, por razões óbvias, conexa a esta), está diretamente ligada ao início do desenvolvimento da civilização, marcado por guerras, epidemias, envenenamentos, e toda a sorte de circunstâncias adversas que poderiam afligir o corpo humano.
Destarte, a cura sempre foi uma preocupação de extrema relevância para a humanidade, sendo o aperfeiçoamento da farmácia, outrossim, determinante para a evolução dos indivíduos, principalmente levando em conta a tendência natural ao agrupamento, seja urbano ou rural.
Por outro lado, é incontestável que as doenças podem transformar a grande vantagem da aglomeração humana em causa de morte, eis que é sabido que as moléstias se propagam mais facilmente em áreas densamente povoadas[1].
Igualmente é da natureza humana buscar (naturais) vantagens em quaisquer situações que se apresentem. Com mais razão ainda em se tratando de medicamentos, dada a sua irrefutável (e demonstrada) importância. Acrescida, todavia, à (verdadeiramente cruel) natureza burocrática inerente ao Brasil,- em que o Estado (e sua elite governamental) histórica e culturalmente foi concebido para se servir do cidadão, em lugar de servir ao cidadão -, tem-se uma grande problemática a se enfrentar.
2 DA (TENTATIVA DE) DEMOCRATIZAÇÃO DA SAÚDE ATRAVÉS DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)
Ainda que, pelo menos em tese, o Sistema Único de Saúde (SUS) tenha sido concebido para materializar a garantia à saúde, gratuita e universal, elevada a direito social e fundamental pela Constituição da República de 1988, consoante o disposto no art. 6º; verbis:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.[2]
E, em que pese ser considerado um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, não se pode olvidar o grande caos (real e artificial) pelo qual o SUS tem passado, desde a época do antigo INAMPS.
Infelizmente são corriqueiros os casos de desídia e abandono nas unidades públicas de saúde, conforme amplamente noticiado pela mídia, assim como as consequências advindas deste descaso: filas absurdas, mortes totalmente evitáveis, falta de medicamentos básicos, e assim por diante. Não raro, mesmo uma simples consulta médica a ser prestada no âmbito do SUS pode demorar mais de quatro meses para ser (apenas e tão somente) agendada, ainda que não, necessariamente, realizada.
Neste cenário, mostra-se inteiramente desarrazoada a exigência de (complexas) receitas médicas, de vários tipos e modelos (muitas vezes desconhecidas, tamanha a sofisticação burocrática, até mesmo por parte da classe médica) para compra de praticamente todo e qualquer medicamento no Brasil, mesmo em se tratando de remédios simples e banais.
Em virtude deste precioso tempo perdido entre a constatação da doença e a anamnese de um médico público, corre-se o risco do remédio cuja receita se desejava obter tornar-se desnecessário, seja porque a doença se curou por si mesma, seja porque se tornou crônica, ou pior, seja porque ao final o paciente tenha sido conduzido à própria morte.
É inadmissível que, em uma nação na qual o povo não tem acesso a médicos de forma (minimamente) satisfatória, tais exigências estejam listadas entre as mais rigorosas do mundo. Fatalmente isso pode descambar (e se constitui em odiosa hipocrisia não reconhecer tal fato como corriqueiro) para a falsificação e o oportunismo.
3 DAS REGRAS PARA AQUISIÇÃO DE MEDICAMENTOS EM OUTRAS NAÇÕES
Analisando esta situação sob o prisma internacional, percebe-se que na Argentina e no Paraguai, por exemplo, até mesmo ansiolíticos e antidepressivos são vendidos sem qualquer exigência de receita médica.
Embora todos os remédios que contenham hormônios (incluindo anticoncepcionais), exijam receita médica na Alemanha e na Inglaterra, mais uma vez, a diferença de realidade (simplesmente) salta aos olhos, uma vez que basta ir a um ginecologista, cujo preço da consulta é totalmente acessível à população, para conseguir (de imediato e sem nenhuma dificuldade) a prescrição devida. Por outro lado, para qualquer outra moléstia, nem mesmo é preciso saber qual é o nome do remédio, bastando informar nas farmácias a necessidade de algo contra tosse, contra gripe, contra dor de cabeça, dependendo do caso, o que no Brasil, ao reverso, é simplesmente vedado ao balconista, mesmo quando diplomado em farmacologia.
E mais: a principal razão pela qual as pessoas procuram os médicos nesses países quando precisam de um remédio, está diretamente ligada ao preço que pagarão pelo mesmo, eis que o fármaco com a receita médica é (simplesmente) mais barato. Ademais, o sistema de fornecimento gratuito de medicamentos funciona corretamente nestas nações mais desenvolvidas, ao contrário do que vemos aqui. Na verdade, é mais complicado (por mais esdrúxulo que possa parecer) levar determinados remédios para outros países do que comprá-los lá diretamente[3].
Esta discrepância se repete identicamente quando se necessita fazer um exame de sangue, uma vez que o interessado deve igualmente ter a respectiva requisição, ainda que pague pelo exame, ou seja, ainda que não haja ônus para as operadoras privadas ou para a rede pública de saúde.
Repetidamente percebemos, constrangidos, a diferença de nossa nação para os países desenvolvidos. A título de exemplo, nos Estados Unidos muitos exames de sangue são feitos em simples farmácias, que sempre possuem um profissional habilitado para tanto.
Seria salutar que o Brasil flexibilizasse tanto sua conduta relativa à compra de fármacos, quanto no que diz respeito à realização livre de exames médicos, ao considerarmos, outrossim, casos de doenças contagiosas como a AIDS, cujo interesse social impõe que sejam descobertas o mais cedo possível. Sua carga de evidente estigma e preconceito, muitas vezes inibe muitas pessoas de se submeterem ao exame respectivo, por vergonha em ter que se identificar, mesmo que seja apenas para o médico.
4 DOS DESPROPORCIONAIS E DESARRAZOADOS ENTENDIMENTOS DA ANVISA QUANTO À POLÍTICA DE MEDICAMENTOS NO BRASIL
Voltando a questão medicamentosa, a ANVISA inclusive (e por um completo absurdo que beira a uma arrogância nitidamente infantil) é muito mais rigorosa que o Food And Drugs Administration (FDA) nos Estados Unidos, que já é reconhecidamente competente e, sobretudo, austero.
Podemos ilustrar esta situação com o exemplo da Melatonina: trata-se de uma molécula antiga e onipresente na natureza, apresentando múltiplos mecanismos de ação e funções em praticamente todo organismo vivo.
Não só regula o sono como também se trata de um antioxidante potente, sendo eficaz da mesma forma no controle da enxaqueca. Há ainda evidências que a mesma ajuda no combate à obesidade, redução de tumores (especialmente câncer de mama), do diabetes tipo 2 e da dermatite atópica[4].
Mesmo sendo de uso relativamente seguro, com poucos efeitos colaterais e contraindicações, podendo, inclusive, em alguns casos, substituir medicamentos mais perigosos, de uso controlado, a substância continua inexplicavelmente proibida no Brasil, não obstante seus reconhecidos efeitos benéficos, enquanto que nos Estados Unidos é vendida livremente em qualquer farmácia, ou mesmo em supermercados, como o Walmart.
Outro exemplo que podemos listar é o caso do Palexia Tapentadol, um analgésico de última geração para tratamento de dores crônicas, que vem substituindo, com inúmeras vantagens em termos de eficácia e efeitos colaterais, o Tramadol (Tramal).
Muito embora amplamente testado e aprovado pelos mais rigorosos procedimentos do FDA, o referido analgésico ainda não foi liberado, quer para a produção, quer para comercialização, por mera arrogância e capricho dos técnicos da ANVISA. São frequentes os absurdos meandros burocráticos da ANVISA para autorizar, no Brasil, a comercialização e a produção de novos medicamentos já amplamente utilizados em países que são referência na área[I].
E nem se diga quanto às inúmeras dificuldades de importação do medicamento, o que na prática pode representar mais de ano para sua total concretização. Cabe pontuar que apenas uma minoria modesta possui condições de viajar constantemente aos Estados Unidos, Alemanha, ou mesmo para Argentina para adquirir o mencionado medicamento, e ainda assim, arriscando a retenção do mesmo na volta ao Brasil, considerando as barreiras alfandegárias (supostamente) protetivas da própria ANVISA e, eventualmente (e pelo mais completo absurdo), a própria tipificação criminal com o correspondente processo e pena de prisão.
Muito embora seja possível vislumbrar, timidamente, um ou outro avanço[II], esse é lamentavelmente o retrato de um povo doente, carente de seus direitos mais básicos de bem-estar, por conta de um Estado que não está verdadeiramente preocupado com a sua saúde, mas tão somente com normas e formas de proceder desnecessárias e demagógicas, com objetivos, ao que parece, completamente estranhos ao interesse da sociedade, além de arrecadação tributária.
O professor HÉLIO VASCONCELLOS LOPES, titular da Faculdade de Medicina da Fundação do ABC e membro do Comitê de Resistência a Antibacterianos da Associação Pan-Americana de Infectologia e do Comitê de Antibióticos da Sociedade Brasileira de Infectologia, alertou para estas questões em seu artigo "Antibióticos: com ou sem receita médica?":
Países latino-americanos, cujo PIB situa-se de médio para baixo, a maioria deles convivendo com uma terrível desigualdade social, têm milhões e milhões de pessoas sem acesso a serviços de saúde no momento em que eles são necessários. Então, pode-se perguntar: a exigência da receita não irá – na relação custo/benefício, tender para o pior lado? Dentro deste contexto, CARLOS AMÁBILE CUEVAS, colega mexicano, afirma: 'a autoprescrição muito provavelmente salva mais vidas do que o custo da resistência que gera'. Outro colega, mexicano, VICTOR FORTUNO, comenta: “A resistência bacteriana é muito importante, mas será mais do que a possibilidade de que muitos pacientes indigentes, que não têm direito a serviços médicos, possam enfrentar maiores problemas como a morte?” Os obstáculos relacionados ao uso adequado de antibióticos são tantos e certamente maiores do que o imaginado benefício que o controle da venda de antibiótico, na farmácia, trará. A utilização de um antibiótico está na dependência de uma tríade, constituída pelo médico prescritor, pelo farmacêutico e pelo paciente. Quanto ao primeiro, inúmeros trabalhos têm mostrado que cerca de cinquenta por cento das receitas contendo antibióticos são impróprias, os maiores exemplos sendo dados pela sua prescrição em infecções respiratórias virais e nos quadros febris em pediatria. Quanto ao farmacêutico, com todo o respeito pela profissão, dificilmente é encontrado na maioria das farmácias de meu país, onde, habitualmente, a venda do medicamento fica por conta de um atendente-balconista[5].
5 DOS INTERESSES DA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA
Além disso, é ingênuo ignorar que as empresas farmacêuticas também têm seus próprios interesses. Isso pode ser um grande problema para os pacientes, uma vez que pode afetar a isenção profissional do médico, criando um incentivo para que ele receite mais medicamentos da empresa com a qual mantém relações (e que não necessariamente serão mais baratos ou eficazes que seus correspondentes).
Responsável por regular o setor de planos de saúde, a ANS passa por uma situação parecida assemelhada aos ministérios, agências reguladoras e empresas estatais: tem diretorias loteadas por indicações políticas de partidos da base aliada ao governo federal, em troca de apoio no Congresso. Reconduzida à direção da agência, SIMONE FREIRE, por exemplo, é apontada como indicação do PMDB. Em delação premiada, o ex-senador DELCÍDIO DO AMARAL chegou a dizer que há 'verdadeira queda de braços para indicações de nomes para as agências reguladoras relacionadas à área da saúde' e acrescentou que a tarefa está 'a cargo do PMDB do Senado'. Ele atribuiu essa disputa acirrada à 'visibilidade negativa' que a Operação Lava-Jato impôs aos setores de energia, engenharia e petróleo. No depoimento, DELCÍDIO contou também que os 'senadores EUNÍCIO DE OLIVEIRA, ROMERO JUCÁ e RENAN CALHEIROS possuem papel e força incontestável quanto a essas indicações'. O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) cita, ainda, uma 'proximidade dos planos de saúde com parlamentares'. Segundo dados tabulados pelo Idec, os planos de saúde investiram oficialmente, conforme registro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), R$ 54,9 milhões nas eleições de 2014, o que contribuiu para eleger 29 deputados federais e três senadores."[6].
Sabe-se que trinta por cento de todo orçamento da indústria farmacêutica, ou mais, é investido em marketing e publicidade[7]. Por meio do oferecimento de vantagens, como viagens, brindes, amostras grátis, inscrição em congressos e eventos, entre outras, este mercado cria um vínculo com o profissional de saúde, muitas vezes podendo comprometer a total neutralidade do profissional na prescrição.
Há denúncias que apontam que médicos falam, em eventos científicos, favoravelmente sobre drogas de laboratórios que estão patrocinando sua viagem e hospedagem, sem citar o conflito de interesses, embora sejam obrigados pela Resolução do CFM nº 1.595/00[III]; que receberiam “salários por fora” de laboratórios a título de colaboração pela participação em congressos ou outros eventos; que aceitariam presentes, dinheiro e convites de viagem patrocinados por laboratórios, receitando remédios dos patrocinadores como contrapartida; que laboratórios interfeririam na pauta de eventos e de publicações médicas em troca de patrocínio, e por aí vai.
Dispõe a ANVISA/RDC 102/00 verbis:
Art. 19 É proibido outorgar, oferecer ou prometer, prêmios, vantagens pecuniárias ou em espécie, aos profissionais de saúde habilitados a prescrever ou dispensar medicamentos, bem como aqueles que exerçam atividade de venda direta ao consumidor. Parágrafo único: Os profissionais de saúde habilitados a prescrever ou dispensar medicamentos, bem como aqueles de atividade de venda direta de medicamentos ao consumidor, não podem solicitar ou aceitar nenhum dos incentivos indicados no caput deste artigo se estes estiverem vinculados a prescrição, dispensação ou venda.[8]
Há relatos, ainda, de laboratórios que utilizariam dados sigilosos das receitas para pressionar profissionais, oferecendo bonificação para que os atendentes das drogarias substituíssem medicamentos, bem como informassem se o médico "patrocinado" efetivamente prescreveu o remédio daquela empresa, o famoso "selo", com seu código, que o balconista coloca em cada medicamento vendido[9].
Ou seja, a imposição de receita médica parece nada significar em termos de segurança para o enfermo; muito pelo contrário, haja vista a existência de interesses muito mais poderosos e escusos, estando a saúde para estes, infelizmente, em último plano.