SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHO
O artigo 75-E prevê que o empregador deve instruir os empregados, de maneira expressa e ostensiva, quando às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes do trabalho, prevendo o parágrafo único que o empregado deve assinar termo de responsabilidade comprometendo-se a seguir as instruções fornecidas pelo empregador.
O dispositivo legal, todavia, deve ser interpretado à luz do artigo 7º, XXII, da CRFB, que garante aos trabalhadores a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”.
Assim, não basta que o empregador simplesmente instrua o empregado, no ato da sua contratação, quanto às precauções a ser tomadas, sendo imprescindível que o empregador acompanhe o efetivo cumprimento de normas de segurança e medicina do trabalho, nos termos do artigo 157, I, da CLT, também aplicável ao teletrabalho, por força do artigo 6º da CLT e, ainda, em razão do dispositivo constitucional acima referido.
Afirmar que o artigo 75-E da CLT é exceção ao artigo 6º da mesma consolidação importa em interpretação em desconformidade com a Constituição, pois se estaria aumentando (em vez de reduzir) os riscos inerentes ao trabalho.
A propósito, pondera Luciano Martinez que “apesar da distância naturalmente existente entre o empregador e teletrabalhador, a responsabilidade patronal pela sanidade ocupacional permanece exigível”.
Com isso, não se quer dizer que o empregador possa adentrar a residência do empregado sem a concordância deste (o direito à inviolabilidade domiciliar também tem estatura constitucional – artigo 5º, XI).
O que se quer dizer é que é dever do empregador acompanhar as condições de trabalho, tais como mobília, iluminação e ventilação, podendo solicitar periodicamente ao empregado informações quanto às condições dos equipamentos, fazendo a adequação quando estiverem em desconformidade com as normas de segurança e saúde do trabalho.
De igual modo, deve o empregador, na medida do possível, instruir e acompanhar as pausas eventualmente necessárias durante a realização dos serviços, a exemplo dos empregados que trabalham com digitação (NR 17, item 17.6.4, alínea “d”).
Sobre o assunto, veja-se a contribuição de Denise Fincato:
“No entanto, este dever de orientação para a higiene, saúde e segurança do/no trabalho, não pode se resumir à elaboração e entrega ao empregado de um manual de boas práticas, genéricas e estáticas. Ao revés, a instrução a que alude o dispositivo deve ser entendida de forma mais abrangente e protetiva à relação, gerando garantias ao empregado e ao empregador. Assim, instruir deve ser compreendido como um conceito dinâmico e constante, de conteúdo mutante, tanto quanto o ambiente e os métodos de trabalho. Daí concluir-se que, de tempos em tempos, deva o empregador realizar alguma inspeção do ambiente laboral, assim como deva se precaver dos acidentes e doenças laborais decorrentes, prevendo e registrando atitudes necessárias nesse sentido em uma gama ampla de documentos, tais como o Programa de Prevenção de Riscos Ambientais – PPRA e o Programa de Controle Médico e Saúde Ocupacional – PCMSO, entre outros”.
Situação interessante é a possibilidade de acidente no âmbito doméstico. Para a sua caracterização como acidente de trabalho, nos termos dos artigos 19 a 21 da Lei n. 8.213/91, é indispensável a análise do caso concreto, pois o mesmo ambiente é utilizado como local de trabalho e como residência.
Se, por exemplo, o empregado contrai doença na coluna em razão da inadequação do mobiliário utilizado (fornecido ou não pelo empregador, pois é sua obrigação, como dito acima, o fornecimento dos equipamentos de trabalho), constatado em exame pericial o nexo causal entre a utilização de mobília ergonomicamente incorreta e a lesão, ao meu sentir, não há dúvida de que se estaria diante de acidente de trabalho atípico, cabendo ao empregador indenizar os prejuízos materiais e imateriais daí decorrentes.
Por outro lado, se o empregado, em uma pausa durante o trabalho, se desloca à cozinha da sua casa para beber água e, ao pegar o copo no armário, derruba um prato em sua cabeça, causando-lhe ferimentos, não estará caracterizado o acidente de trabalho, pois não há nenhum nexo causal entre o trabalho e a lesão.
Além do mais, o empregador nada podia fazer para evitar o acidente, pois não tem o dever (e tampouco o direito) de cuidar da cozinha da casa do seu empregado.
JORNADA DE TRABALHO
A Lei n. 13.467/2017 incluiu o inciso III no artigo 62 da CLT, afastando a aplicação do capítulo referente à duração do trabalho aos empregados em regime de teletrabalho.
Assim, pela disposição legal, os teletrabalhadores não fazem jus ao recebimento de horas extras.
A questão, todavia, é polêmica, havendo quem defenda a inconstitucionalidade do dispositivo legal, por ofensa ao artigo 7º, XIII, XV e XVI da CRFB.
Com efeito, a Constituição da República garante aos empregados duração do trabalho não superior a 8 horas diárias e 44 semanais, assim como descanso semanal remunerado e remuneração do labor extraordinário com acréscimo de no mínimo 50% ao valor da hora normal.
E o inciso III, acrescido pela Reforma Trabalhista ao artigo 62 da CLT, diferentemente dos outros dois incisos, não se reveste de proporcionalidade para afastar os dispositivos relacionados à jornada de trabalho às relações de teletrabalho.
Isso porque, ao contrário do que ocorre com os trabalhadores externos e os detentores de cargo de gestão, não há incompatibilidade entre o teletrabalho e o controle de jornada.
Ao contrário, no regime de teletrabalho, como o empregado está virtualmente presente no estabelecimento empresarial, é possível ao empregador controlar a jornada, o fazendo pelos meios telemáticos, como controle de acesso aos sistemas corporativos (controle de logon e logoff, assim como o controle de inatividade da sessão).
Sobre o assunto, pondera Homero Batista Mateus da Silva:
“O ponto central da discussão é saber, afinal, se o teletrabalho é ou não é incompatível com o controle de jornada, ou seja, se está ou não ao alcance do empregador mensurar a produção e a atividade do empregado”.
Acrescenta o Juiz do Trabalho paulistano que:
“Havendo meios acessíveis de controle de jornada, por unidade de produção, por fiscalização direta, por meios eletrônicos, não se deve impressionar com o fato de o trabalho ser realizado à distância, em dependências estranhas ao empregados”.
E conclui que “o art. 62, III, merece a mesma interpretação restritiva, dada a excepcionalidade, dos demais incisos, quer dizer, o teletrabalho somente retira o direito às horas extras e congêneres se for incompatível com o controle de jornada”.
No mesmo sentido é o pensamento de Henrique Correa:
Caso comprovado que o empregador tinha condições efetivas de controlar e fiscalizar o trabalho realizado pelo empregado, pela utilização dos meios informatizados, como e-mails, whatsapp, facebook, GPS, telefones, entre outros, é plenamente possível o controle da jornada de trabalho do empregado por aplicação do princípio da primazia da realidade. Não haveria, portanto, justificativa para a exclusão desses trabalhadores da jornada de trabalho, tendo direito à jornada limitada de 8 horas diárias e 44 horas semanais e ao recebimento dos adicionais de horas extras, intervalos e adicional noturno.
Portanto, pode-se afirmar que, a despeito do artigo 62, III, da CRFB, se constatado ser possível ao empregador controlar a jornada do empregado, fará este jus ao recebimento de horas extras, se prestadas.
Entender de modo diverso seria estimular os empregadores a exigir dos empregados volume de trabalho sabidamente superior ao atingível em oito horas diárias, cientes de que não precisarão pagar mais pelo excesso de trabalho.
O FENÔMENO DA “DESLOCALIZAÇÃO” DA EMPRESA. ANALOGIA COM OS TRABALHADORES DA NAVEGAÇÃO
Como visto alhures, o home office é objeto de preocupação pela doutrina em diversos fatores, ressaltando aqui o fenômeno da “deslocalização” da empresa, pelo qual esta altera o local de seu estabelecimento, mudando para outra região com menos proteção trabalhista, com vistas à redução dos custos sociais.
Concomitantemente à mudança de domicílio, a empresa dispensa seus empregados presenciais e contrata novos empregados pelo regime de teletrabalho (quiçá da mesma região de origem), os quais, independentemente do seu domicílio, estarão vinculados às normas coletivas vigentes no novo local de domicílio da empregadora, já que o empregado estará virtualmente presente e vinculado ao estabelecimento da empresa.
Assim, hipoteticamente, o empregador pode fechar uma unidade em um local cujas normas coletivas aplicáveis preveem diversos direitos aos trabalhadores e piso salarial de R$3.500,00, e abrir nova unidade em outro local, onde as normas coletivas não preveem os mesmos direitos e o piso salarial é de apenas R$1.100,00, contratando teletrabalhadores da região primitiva, mas que, por estarem virtualmente vinculados à sede da empresa, estariam submetidos ao regime das normas coletivas daquele local, e não as do local da sua residência.
Há evidente redução de custos.
Trata-se de manobra que busca aumentar a competividade empresarial à custa da redução de direitos trabalhistas, em notório retrocesso social, o que configura dumping social.
Não se duvida que dita manobra é uma fraude aos direitos trabalhistas, invocando a aplicação do disposto no artigo 9º da CLT, in verbis:
“Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”.
Convém assentar que o Direito do Trabalho já convive com situação similar na seara dos empregados em empresas de navegação e de transporte aéreo internacional, sendo que a solução jurídica adotada naqueles casos pode ser emprestada para solucionar o caso de dumping social acima exposto.
Antes, relembre-se o postulado de que para situações similares se aplica a mesma razão jurídica.
A legislação aplicável aos trabalhadores em navios mercantes é a do país do pavilhão, nos termos dos artigos 274, 279 e 281 do Código de Bustamante, abaixo transcritos:
Art. 274. A nacionalidade dos navios prova-se pela patente de navegação e a certidão do registro, e tem a bandeira como signal distinctivo apparente.
Art. 279. Sujeitam-se tambem á lei do pavilhão os poderes e obrigações do capitão e a responsabilidade dos proprietarios e armadores pelos seus actos.
Art. 281. As obrigações dos officiaes e gente do mar e a ordem interna do navio subordinam-se á lei do pavilhão.
Todavia, diante da regra de direito internacional privado, algumas empresas, visando reduzir seus custos sociais, embora realizem seus negócios preponderantemente no país da sede, abrem filiais em países com pouca ou nenhuma proteção social e registram seus navios nestes países.
A essa prática de dumping social a doutrina deu o nome de bandeira de conveniência (ou bandeira de favor).
Sobre as bandeiras de conveniência ensina José Carlos de Carvalho Filho que:
“As bandeiras de conveniência nascem como forma de burlar regras que possam burocratizar o transporte garantindo a agilidade que os armadores e proprietários das embarcações necessitam quando se trata de comércio exterior. Atrelada a essa questão estão às condições subumanas que os tripulantes são expostos já que não há regras que previnam que maus tratos sejam evitados e a eles sejam garantidos direitos e deveres como qualquer outro trabalhador”.
Em situações deste jaez, em busca de evitar que a fraude perpetrada pelo empregador alcance seus objetivos, a doutrina criou a teoria do centro de gravidade, afastando-se a aplicação da lei do pavilhão e determinando-se a aplicação da legislação do país onde o empregador realiza as suas atividades empresariais, de modo preponderante.
Sobre o assunto, cita-se a contribuição de Fabiano Coelho de Souza:
“Na realidade, o empregador do trabalhador marítimo é o armador, e não o navio. Não bastasse, ocorre do armador eleger seu centro principal de negócios localidade diversa do registro da embarcação. Nestas situações, a lei do pavilhão deve ser relativizada, de modo a aproximar a situação com a regra geral da territorialidade, definindo a regência normativa do contrato pelas leis do local em que o empregado fica habitualmente à disposição do empregador antes ou depois da realização das viagens.
Caso esteja evidenciada a intenção fraudulenta, a questão resolve-se pelo art. 9º da CLT, a impedir a frustração dos direitos trabalhistas conferidos ao empregado brasileiro, aplicando-se a legislação nacional. É o que ocorre para as situações de ‘bandeiras de favor’, amplamente denunciadas no Direito Marítimo, prática pela qual o navio é registrado intencionalmente num determinado país em razão de legislação mais permissiva a uma determinada conduta (geralmente considerada irregular nas legislações nacionais), pretendida pelo empresário”.
A tese do centro de gravidade também já foi adotada em julgado do Colendo Tribunal Superior do Trabalho, conforme ementa abaixo transcrita:
TRABALHO EM NAVIO ESTRANGEIRO - EMPREGADO PRÉ-CONTRATADO NO BRASIL - CONFLITO DE LEIS NO ESPAÇO - LEGISLAÇÃO APLICÁVEL. 1. O princípio do centro de gravidade, ou, como chamado no direito norte-americano, most significant relationship, afirma que as regras de Direito Internacional Privado deixarão de ser aplicadas, excepcionalmente, quando, observadas as circunstâncias do caso, verifica-se que a causa tem uma ligação muito mais forte com outro direito. É o que se denomina "válvula de escape", dando maior liberdade ao juiz para decidir que o direito aplicável ao caso concreto. 2. Na hipótese, em se tratando de empregada brasileira, pré-contratada no Brasil, para trabalho parcialmente exercido no Brasil, o princípio do centro de gravidade da relação jurídica atrai a aplicação da legislação brasileira. Processo: ED-RR - 12700-42.2006.5.02.0446 Data de Julgamento: 06/05/2009, Relatora Ministra: Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 22/05/2009.
A solução apresentada para os casos de trabalhadores em navios mercantes pode perfeitamente ser aplicada para os casos de empregadores que alteram o local do seu estabelecimento empresarial para região com normas coletivas menos protetivas, contratando empregados em regime de teletrabalho, para o fim de vincular as relações de trabalho às normas autônomas vigentes no local onde a empresa de fato centraliza os seus negócios.